28 de dezembro de 2007

PEDRO PESCAVA HOMENS


Pedro pescava homens e limos velhos
Na borda dum infeliz lago galilaico.
Alguém o avisara que por cada alma
Filada, escorchada e ao sol espalmada
Um Deus viria pregar-se numa cruz
Com Mãe e Madalena e soldadesca ébria
A compor o quadro choradinho do Calvário.
Pedro fizera farta pescaria de fadigas sem fim
Mas só lograra arpoar um vagante madeiro
Que boiava na babugem aquosa e penitente,
Na borda do infeliz lago galilaico.
Pedro imaginou então que os restos do pútrido
Madeiro mais não fossem que os restos pecaminosos
De homens refractários ao quadro choradinho
Daquele Calvário sem Mãe, sem Madalena
Sem soldadesca ébria a jogar dados.
Pedro, então perplexo, perguntou aos céus
Ou a si mesmo, ou mesmo a ambos, se mais sagrado
Seria o Calvário composto por Mãe, Madalena
E ébria soldadesca ou a podridão dos restos
Do madeiro, onde teriam pregado não um macerado
Deus mas a chusma orgiástica, pecaminosa
De transviados e terrenos penitentes.
Pedro, o pescador de homens e limos velhos
Passou então a querer filar na borda
Dum infeliz lago galilaico o mais sofrido de todos
Os homens, tendo como certo que assim poderia
Pescar o maior de todos os Deuses, na borda desse lago
Sem Mãe e sem Madalena, mas com a infinda compaixão
Do maior dos Calvários, onde agoniza a humana condição.

22 de dezembro de 2007

NATAL 2007

Ninguém sobrevive sem mitos ou, pelo menos, ninguém prescinde do mito de si-mesmo. Este confunde-se, no limite, com a auto-estima. Se é assim com os sujeitos individuais, também assim é com os sujeitos colectivos, quer se lhes chame corporações, sindicatos, grémios, associações ou nações. Importa sublinhar que cada um destes sujeitos colectivos engendra, a partir de si mesmo, formas típicas de representação. Elas decorrem de todo um acumular de experiências, belas ou feias, arrebatadoras ou vexatórias, imanentes ou transcendentes, imediatas nuns raros casos, mediatas na maior parte dos mesmos. Tanto faz que estes momentos de identidade sejam designados por paradigmas, símbolos ou padrões; é indiferente que uma turbamulta de bem-pensantes os negue ou vitupere; é ocioso que façamos de conta que eles não existem. A sua força ontológica é tamanha que se nos impõe sem contradita, com a mesma naturalidade das montanhas ou das estrelas.
Somos ocidentais, europeus e cristãos – queiramo-lo ou não. E, ao sê-lo, por muito grande que possa ser a nossa indiferença religiosa ou até a nossa militância ateísta, o tema do Crucificado vem até nós e subjuga-nos – ao menos uma vez por ano.
Na história do pensamento ocidental foram feitas as mais esforçadas tentativas para a aniquilação desta espécie de mito identitário, sempre sem resultados. Referindo apenas a Época Contemporânea vislumbramos, como momentos supremos de negação, a tentativa dos revolucionários franceses de 1789 e os cultos de substituição nessa altura encetados, desde a Teofilantropia ao Culto Decadário, passando por todas as modalidades de Panteísmo ou de Religião Natural; veio também Augusto Comte e a sua Religião da Humanidade; apareceram seguidamente Marx e Engels e os diversos ateísmos radicais do século XX. O Supliciado do Gólgota resistiu. Parece até que resiste tanto mais quanto maior é a visível decadência institucional das suas Igrejas. Por que acontece então isto? Porque Cristo é o perfeito emblema simbólico do drama humano. Ele recolhe os vagidos inocentes do nascimento – e faz-se Natal ; depois, acompanha a história da luta pela sobrevivência das nossas mais convictas verdades – e faz-se Pastor; e é ainda Ele o depositário de todas as nossas fragilidades, de todas as nossas dores, de todas as nossas decadências, de todas os nossos pressentimentos de finitude – e faz-se Paixão. Assim, como emblema do que fomos sendo na multissecular estrada do Ocidente, a história de Cristo deixa de ficar contida em si mesma para passar a ser o elo de suporte entre todos e cada um.
Escrevo isto porque sou religioso? Não. Sei-me agnóstico. Escrevo isto porque sou, como quase todos nós, um cristão do Ocidente.

8 de dezembro de 2007

O NÚMERO DA BOLA

Na loja do João Vendeiro compravam-se, naquele tempo, rebuçados coloridos. Vinham em caixas oblongas, já a ameaçar ferrugem, embrulhados em papéis baratos. Sabiam a açúcar mascavado e faziam apodrecer os dentes. Mas era neles que vinham enrolados os cromos dos jogadores de futebol, que deviam ser colados numa caderneta a adquirir, como instrumento excedente da colecção a fazer. Era um jogo aliciante e um desafio que durava muitos meses. Quando faltavam cromos mais difíceis, os interessados interrogavam persistentemente outros coleccionadores e propunham-lhes trocas de mútua vantagem. O objectivo não consistia apenas em preencher todos os lugares destinados às vedetas do futebol. Um dos números era dificílimo, dado que dele só existia um solitário e esquivo exemplar. Dava pelo nome do “número da bola”, uma vez que a caderneta completa significava a automática entrega de uma fascinante bola, em couro autêntico, novinha em folha, a fazer negaças de uma das prateleiras da venda do João. O que se estranhava era que o “número da bola” e o prémio previsto contemplassem sempre os rebentos da família do João Vendeiro.
Só hoje me apercebo que aquele episódio menor da minha existência infantil condensava uma parábola de vida. Dou comigo, desde sempre, a tentar completar o meu “puzzle” ; apercebo-me que há graus diferentes de dificuldade, na porfia pela obtenção dos rectângulos coloridos; reparo que este mundo está repleto de Vendeiros pérfidos na sua duplicidade e na sua molúria; acho que o “número da bola” acabará por ser entregue a um qualquer afortunado traste, que nem sequer teve de se esforçar para concluir a sua colecção; e sei que, apesar de tudo isto, continuarei a acalentar no meu peito o desejo de conquistar aquela bola fatídica, ainda agora a contemplar-me de uma das prateleiras da tasca do João Vendeiro.