30 de janeiro de 2008

NA PISTA DOS SORRISOS

É uma subtil tarefa, esta de discriminar formas de prazer risonho. Uma das mais primárias, o cómico, opera por simples desfasamento em relação aos trilhos usuais da vida, fazendo-se acompanhar de um propósito de anárquica “desconstrução” do real. O cómico, em regra, usufrui da minimização dos outros. Encontramo-lo nos guizos com que os bobos medievais aturdiam as malfeitorias das dignidades feudais; vemo-lo nos desfiles carnavalescos e em certas figurações caricaturais; reconhecemo-lo no primarismo com que as crianças mofam dos tiques de adultos mais graves.
A ironia, por seu turno, encontra-se no degrau superior do cómico. Tem com ele relações de contiguidade, é certo. Mas assenta no princípio da contradição, da antífrase, praticando uma espécie de “coincidência de opostos” ; assim, passa um anão na rua e as almas mais rudes e descaroáveis dirão para o casual acompanhante: “Olha-me aquele gigante!”. E que dizer do humor ? É o irmão melancólico dos outros dois. Há nele o subtil reconhecimento das debilidades humanas e das fragilidades do vivido. O humor destila um pouco o perfume do barroco, do elaborado sofridamente nas profundezas do Eu. Trata-se aqui de uma melancolia combativa, como a desse condenado à morte que avança para o cadafalso numa segunda-feira e desabafa para o verdugo: “ Óptimo! A semana começa bem!”.
Pois é! Não basta rir. Urge conhecer a linhagem e os parentescos das diversas formas de riso. Saibamos sondar-nos através dos risos e sorrisos.

20 de janeiro de 2008

URGÊNCIA

É urgente que venhas
Vem depressa e já
Bichos estranhos
Invadiram por cá
O quintal dos afectos
Roem tudo (os danados)
Dos legumes aos fetos

Vem, vem sem detença
É urgente que tragas
Da despensa
A tal erva cheirosa
Que acrescentas
Airosa
À comida sem sal

Quando vieres (se vieres ...)
Por tardinhas inundadas
De sol
É urgente que inventes
É forçoso que infundas
No cansaço dos anos
No quebranto do corpo
Algo de vivo e novo
Um alento qualquer
Dos que tu sabes dar
Quando em ti não ressoam
Memórias do passado
Que tanto te magoam

E dá-me (se puderes ...)
A mansa
Confiança
Do teu amor adulto
Assim farás cessar
O meu tumulto

Quem poderá viver
Em morno adiamento
Como se fora
(Vê tu !)
Um requerimento
Jazendo e morrendo
Sem deferimento
Numa repartição
À portuguesa ?

Vem pois por mim
Solene, ilesa
É urgente que saibas
Agora e sempre
Que tudo estranhamente
Perde encanto
(E quanto !)
Se não chegas


É urgente que venhas
Fremente
Carente
E donairosa
Tal como a rosa
No fresco rocio
Da manhã
Enfim calma
Enfim silenciosa
Como virgem vestal
De tempos transitados
Coladas as bocas
Os corpos colados
No lamento
No fingimento
Na simulação
Na convicta
Inconvicção
Do que não é eterno
Mas tomado como pórtico
Final
Mas vivido como se fora
Imortal



14 de janeiro de 2008

PROTÁGORAS E CHE



Foi no século V a.c. que Protágoras de Abdera lançou ao mundo a perspectiva do seu relativismo antropológico: “O Homem é a medida de todas as coisas; das que são, enquanto existem, e das que não são, enquanto não existem”. Este enunciado, um pouco nebuloso à primeira vista, pretende apenas salientar que só há validação de realidade com referência aos que a vivem. Imaginemos um Cosmos totalmente desabitado, radicalmente entregue a si próprio, à sua radical e insuperável materialidade. Imaginemos um silêncio de sepulcro, a transmitir-se de galáxia em galáxia, afundando-se, como chumbo, no vórtice absorto da Infinidade. Imaginemos um mundo-coisa, sem consciência, sem alteridade, sem outra justificação que não fosse a da omnipresença face a si mesmo. Faltando-lhe o Homem, faltava-lhe tudo o que lhe poderia conferir significado. Ora, por maior que seja o significante, este fica aprisionado à sua raiz sem uma entidade de referência. O Homem é a referência do mundo significativo, do mesmo modo que este é a possibilidade daquele.
Houve um dia uma ilha, nas lânguidas Caraíbas, onde alguns guerrilheiros, descidos da Sierra Maestra, fizeram uma revolução. Vieram todos para La Habana, de charuto nos queixos e esperanças na alma. Um deles ganhou a palma dos favores das massas: chamaram-lhe o Che. Mas com ele arribaram também a uma capital de opereta Camilo e Castro. Este último foi El Comandante de tal empreitada. Certo dia, numa ocasião em que El Comandante arengava às massas, na presença avalizadora ( ou avaliadora?) de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir, um fotógrafo ladino, Alberto Korda, fotografou o Che sem que o próprio disso se tivesse apercebido. Apanhou-o melancólico, aparentemente concentrado, com uns restos do cabelo ondeante a surdir por debaixo do boné revolucionário, onde marcava lugar a lendária estrela dos continentes a conquistar. Na altura, poucos teriam reparado na beleza datada daquele efebo fardado. Os jornais do dia seguinte nem sequer escolheram aquela imagem para ilustrarem o loquaz comício; preferiram Castro, com uma granada na mão e cenho colérico, sanguinário, a prometer ao populacho a liquidação do vizinho inimigo imperialista. Passados uns anos -- já o Che houvera sido assassinado,na Bolívia, por um tarimbeiro militar de meia-cana, semi-analfabeto e boçalóide -- o mundo reparou que alguém morrera por ideias. Foi o deslumbramento. Deixar-se alguém matar, não por redondezas de economia, ou por venalidades de sexo, ou por regalos de tripa, mas por fidelidade a um credo? Podia lá ser! Podia lá ser!! E esse mesmo mundo, coçando o piolho da má-consciência hedonista, fez do Che um ícone. Mas um ícone de quê? Da Revolução? Do Ideal? Da Justiça? Dos Pobres? Qual quê! Estamparam-lhe a fronha em t-shirts, em cuecas de senhora, em cinzeiros, em copos de uísque, em anúncios de compota, em tacos de basebol, em luvas de boxe, em chapéus de palha e em mil truanescas e delirantes mercadorias de consumo.
Hoje, talvez naquela mesma desoladora e desolada Praça da Revolução, em La Habana, (talvez…) possa fazer-se ouvir, uma e outra vez, a voz profética de Protágoras de Abdera, decretando ser o Homem a medida de todas as coisas. Ficaria assim provado que os desígnios dos homens são, tal como os dos deuses, verdadeiramente imperscrutáveis.

7 de janeiro de 2008

CULTURA KITSCH


A degradação actual de quase todas as formas mais estruturadas de pensamento conduziu-nos ao culto do improviso e da facilidade. E a mercantilização da vida oferece hoje à mediocridade uma aparência de realização que decorre de simples exercícios de contrafacção. Não são apenas as calças ou videocassetes de marca falsificada que se propõem ao consumo, em feiras de ciganos. Na grande tenda do consumo cultural português, toda a mercadoria que constitui, no seu conjunto, o espólio superior do Espírito, se encontra em almoeda. Daqui resultaram modalidades de cultura kitsch, com muito aparato e pouca substância, que forcejam por passar incólumes ao crivo da crítica exigente. No romance, na poesia, no teatro, no cinema, em todas as modalidades de comunicação valorativa (ou pseudo-valorativa), nos vão aparecendo anõezinhos de jardim ou grossas louças das Caldas, apresentados como se fossem peças de Míron ou faianças de Rafael Bordalo Pinheiro. Como é evidente, nada disto poderá enganar o especialista informado e o verdadeiro estudioso. O português escrito por Camilo Castelo Branco, por Miguel Torga ou por Aquilino Ribeiro distinguir-se-á sempre, aos olhos do mais desprevenido, da rudeza linguística e da impropriedade lexical da loquacidade galega. Queiramo-lo ou não, a produção e a fruição cultural mais intensas e acabadas estarão prometidas, como sempre, ao reduzido número dos que sabem, dos que se aplicam, dos que não se poupam ao esforço do conhecimento. Sobrarão depois, para os preguiçosos ou para os apaixonados pelo kitsch, esses delambidos romances róseos, esses vaporosos espectáculos de cinema holywoodesco, esses entremezes de fácil populismo, esse jornalismo de pacotilha, essas revistas de fado choradinho, esses desprimores de bom-gosto e de bom-senso.
E Antero de Quental terá outra vez razão, em Portugal, neste ano da graça de 2008.