O domínio da região de Lourenço Marques era crucial para a Grã-Bretanha. Ela implicaria o completo isolamento dos estados boers, roubando-lhes a sua natural e única via de acesso ao mar. Mas os governos portugueses, para grande desgosto da “nossa mais antiga aliada” – designação oficial e pouco verosímil… – mantiveram com as novas nacionalidades de cepa holandesa uma relação de cordialidade, chegando ao ponto de com elas firmar convénios de mútua cooperação. Tais acordos apontavam para a construção de vias férreas que poderiam converter o porto de Lourenço Marques no acesso marítimo de excelência do Estado Livre de Orange e da República do Transvaal. Conhecedor destas disposições, a governação britânica visou Portugal com o fogo nutrido das suas objecções e reticências. Por outro lado, eram antigos os desígnios ingleses de se apoderarem de restingas costeiras e zonas adjacentes à povoação de Lourenço Marques, embora não fosse contestada a soberania portuguesa sobre o povoado. Em 1860, o vice-almirante britânico Keppel fizera uma demonstração de força em Delagoa Bay – nome pelo qual a região era designada em Inglaterra – aí irrompendo com uma fragata de guerra. O assunto só ficou resolvido em 24 de Julho de 1875, quando uma sentença arbitral de Mac-Mahon, presidente da República francesa, reconheceu os direitos portugueses sobre os territórios em disputa. Manteve-se, contudo, a pressão inglesa. Para a atenuar, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Andrade Corvo, acabaria por aceder à assinatura do tratado de Lourenço Marques. Negociado no decurso de 1878, as suas cláusulas foram conhecidas pela opinião pública em 1879. Tratava-se, verdadeiramente, de um pacto leonino. O que aí se dispunha configurava literalmente uma situação jurídica de condomínio e reduzia Portugal a um simples instrumento da estratégia britânica. Exagero? Tamanho era ele que o próprio Times escrevia que o tratado mais não era do que «uma cedência de Portugal à Inglaterra»! Os publicistas republicanos denunciaram o escândalo com a maior vivacidade. Teófilo Braga, escrevendo no jornal A Vanguarda, qualificava o acordo como «a página mais afrontosa da nossa história no século XIX». O nosso republicanismo voltou a ser, neste contexto, o defensor dos brios patrióticos e o depositário da honra de Portugal.
6 de maio de 2009
MEMORIAL REPUBLICANO XVIII
Esta caricatura, de Rafael Bordalo Pinheiro, representa D. Luís-Laocoonte e os seus "filhos" Fontes e Braamcamp a serem martirizados pelas roscas das serpentes, figuração satírica das dificuldades da época. Na perna esquerda do monarca o aperto remete para "Lourenço Marques", numa clara alusão ao escândalo do Tratado com esse nome.
XVIII - O Tratado de Lourenço Marques : antecedentes e consequências
Portugal, na sua demanda comercial africana, de início meramente costeira, instalara pelos finais do século XVI umas tantas palhotas na zona correspondente à baía de Lourenço Marques. Os indígenas davam o nome pomposo de feitorias a esses acampamentos improvisados. O lugar era aprazível e proporcionava um fácil acesso às zonas mais interiores, possibilitando um comércio muito lucrativo: alguns metros de tecidos baratos e coloridos, um punhado de missangas ou umas dezenas de litros de destilados alcoólicos eram permutados por marfim, âmbar, mel e mão-de-obra escrava. As vantagens estratégicas e económicas do lugar vieram a despertar cobiças por parte de outras potências colonizadoras europeias, de tal sorte que holandeses e ingleses, aproveitando a negligente e frequente omissão da presença lusa, passaram a disputar encarniçadamente as adjacências da baía, tentando firmar com os régulos da região acordos de protectorado, nomeadamente nas regiões de Temba e de Maputo. A Inglaterra, sob a férrea e puritana mão da rainha Vitória, viria a traçar, no decurso do século XIX, um arrojado programa de domínio colonialista, o qual, pelo que à África respeitava, assumia as proporções de um quase-monopólio. Esta imensa ambição, alargada ao tamanho de todo um continente, não poderia deixar de sofrer o confronto e a concorrência de outros intervenientes. Pelo que respeitava aos territórios africanos meridionais, os súbditos britânicos travaram uma longa disputa com os boers, descendentes dos antigos colonos holandeses da África do Sul, que lá se haviam instalado sob os auspícios da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Os boers, gente rija e indómita, salvaguardaram as suas notas de identidade, tanto em relação à língua como aos costumes e tradições. Contrariaram o mais que puderam os desejos hegemónicos britânicos, sobretudo nos anos cruciais que antecederam 1815, data em que a Holanda cedeu à Grã-Bretanha a colónia do Cabo. Contudo, a coexistência das duas populações viria a revelar-se tão conflituante que a colónia boer, sobretudo a partir de 1835, decidiu emigrar, na direcção do norte. Por aí vieram a florescer soberanias anglófobas, sob a forma de Estados livres e republicanos. Orange, o Natal e o Transvaal constituíram as provas insofismáveis deste espírito de resistência e deste formal desafio à monumental cupidez vitoriana. A partir desta situação, desenhar-se-á todo um jogo de provocações diplomáticas e militares e de ardidas emulações, mais protagonizadas pelas cobiças da chancelaria britânica do que pelas provocações boers. Estes novos Estados encontravam-se perfeitamente conscientes da sua impreparação para neutralizar o colosso inglês.
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