28 de setembro de 2009

DERROTAS ELEITORAIS

Agora é a vez dos analistas. Serão muitos e de colorações variadas. E todos dirão, em concordância com o seu interesse ou a sua inclinação partidária, que o partido deles ganhou as eleições. Mesmo quem agora perdeu vai juntar a vitória antecedente ao previsível triunfo futuro, dizendo, com prosápia e entono: “Nós ganhámos, claro! Podíamos lá perder! ”.

Serão poucos os comentadores, analistas, autores de artigos de fundo, escribas de ocasião, articulistas e quejandos que se atreverão a fazer incidir a opinião dos leitores numa pequena particularidade que, só por ela, condena sem remédio e desqualifica sem retorno o actual regime. Refiro-me à taxa da abstenção eleitoral, que saltou dos 34,9% de 2005 para os 39,4% do ano em curso. É ela que torna pirrónico o triunfo dos que dizem ter ganho e faz insignificante a derrota dos que alegam não a ter sofrido. É ela que severamente repudia os farisaicos beneficiários do descalabro cívico a que assistimos.

Bem sabemos que o tempo estava bom e convidava a sair. Este argumento chegou a ser aduzido por alguns. Se tivesse chovido, seriam os mesmos preciosos opinantes a declarar que os eleitores, temerosos do frio, haviam decidido ficar em casa. A opinião pública vai julgando e condenando cada vez mais esta fórmula que alguns designam por “democracia representativa”. A questão toda está nisto: ou o regime não é digno do nome que ostenta, por não haver “democracia” que resista ao desprezo dos cidadãos, ou os representantes são indignos da “democracia” que dizem servir, humilhando-a sistematicamente, por sua culpa e responsabilidade.

Há razões, poderosas, inegáveis, conhecidas de todos, que esclarecem e justificam este voluntário afastamento das assembleias eleitorais por parte de quase meio “país legal”. Os responsáveis estão identificados e sobre eles já impendeu o infamante veredicto colectivo. Sabe-se, até, que a maleita não é apenas nossa, não se confina exclusivamente ao pátrio torrão, não é escalracho que apenas medre em agro lusitano. A Europa denuncia, no seu todo, este mesmo estado comatoso. O que mais espanta é que todos façam “vista grossa” à mortal doença, jogando com artifícios de simulação que já não são bastantes para esconder o desastre. Que se espera afinal? Que daqui a uns anos a abstenção suba a 75% ? E, depois disso, os estados-maiores da partidocracia instalada irão continuar a cultivar o autismo imbecil e o narcísico isolamento, reiterando incansavelmente, para a família, para a vizinhança, para o compadre, para o correligionário: “Afinal, bem vistas as coisas, lá ganhámos !”?

Por mim, prefiro declarar, sem alegria, mas cada vez com menor paciência: “39,4% de abstenção numas eleições legislativas? 39,4% num dia soalheiro e cálido? Não há dúvidas possíveis: perdemos todos!”.

25 de setembro de 2009

HOMENAGEM A UM AMIGO

O Autor deste blogue e o Dr. Alberto Vilaça

A sala de leitura da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra enferma, contra a sua própria função, de uma deficiente iluminação natural. Apenas as fiadas de mesas de leitura do fundo, mais próximas de uma uniforme superfície envidraçada, recebem com maior generosidade a luz do astro-rei. Uma boa parte dos leitores que aí acorre vê-se na necessidade de recorrer a candeeiros eléctricos laterais para poder ler com menor mobilização de esforço.

Recordo-me que numa certa manhã nevoenta, em que tive de a frequentar, deparei com uma silhueta de homem em pose singular, que me impediu, nos primeiros instantes, o reconhecimento inevitável, caso o rosto desse leitor se apresentasse em atitude normal. Não era, porém, assim. Estava ali alguém que demonstrava a concentração de um esforço tenso, tenaz, sacrificado, no livro que o absorvia completamente. Mal se lhe lobrigava a face, tão próxima era a distância entre ela e as folhas do volume aberto sobre o tampo da mesa, artificialmente iluminada. A imagem que até mim chegava era a da mais completa unidade entre o livro e o leitor. E ela denunciava que quem assim lia se encontrava com enormes dificuldades de visão, embora também testemunhasse que nem por um momento teria perpassado pela vontade daquele leitor a hipótese de capitulação ou de desistência. Era como se ele nos dissesse, numa mensagem sem palavras, envolta na impressão das atitudes unívocas: “Enquanto eu puder, enquanto eu puder e até ao limite dos limites, aqui estarei para te decifrar”. Para quem gosta de livros, estava ali vertida a forte simbologia que acompanha as dádivas incondicionais da existência. E também as servidões da vida, nascidas do défice associado ao correr implacável do Tempo. Essa imagem percepcionada tocava-me do modo mais pessoal, uma vez que eu próprio sofria e sofro das consequências de um grave acidente de visão, que me deixou sequelas irreversíveis. O respeito que senti por aquele leitor (até então anónimo) foi tamanho, que nem me atrevi a caminhar normalmente. Como tinha de lhe passar ao lado, desloquei-me mais lentamente, quase suspendendo a respiração, para não o incomodar, e pedindo ao soalho e aos sapatos que não rangessem. Não fui bem sucedido. Ao rasar a carteira de leitura daquele homem amoravelmente dobrado sobre as páginas, ele – talvez por fadiga, talvez por curiosidade – levantou a cabeça e deu-se a conhecer. Era o Dr. Alberto Vilaça, aquele Amigo que tanto admirei e venerei, como Intelectual, como Escritor, como Político e como Cidadão.

- Então, Senhor Doutor, por aqui? – interpelei-o eu, omitindo quaisquer referências ao facto estranho de não o ver ocupar uma mesa mais próxima das vidraças do fundo da sala.

- É verdade. É verdade. Foi preciso vir até cá, para verificar uns dados necessários ao meu próximo livro. E como os dicionários bibliográficos e as enciclopédias ficam além, naquela estante, pedi que me fosse distribuído este lugar. Estou mais perto do que preciso.

Trocaram-se mais umas palavras de circunstância e despedimo-nos com a costumada cordialidade. Ao afastar-me, olhei para trás. A figura voltara à forma inicial: arqueada sobre o volume, como se o quisesse abraçar ou o estivesse a beijar. E não sei que estranho génio, que singular vibração, que oculto testemunho me trouxe, a partir daquela mesa, palavras ciciadas que diziam, em oração laica: “Enquanto eu puder, enquanto eu puder e até ao limite dos limites, aqui estarei para te decifrar”.

18 de setembro de 2009

OS BOBOS


O “regime que felizmente nos rege”, presidido pelo Cidadão Cavaco Silva, entrou decididamente na fase do delírio esquizofrénico. O diagnóstico é fácil de fazer. Imaginemos que o Presidente Cavaco tenha visitado em 2008 esse oásis de “democracia”, “liberdade” e “pluralismo” chamado arquipélago da Madeira ( é arquipélago, sim, porque há por lá as Desertas e as correspondentes cagarras, que, segundo parece, apreciam irrestritamente a governação do Dr. Alberto João Jardim). E imaginemos ainda que na comitiva presidencial se tenha integrado – ou por convite ou por imposição protocolar – um assessor governamental chamado Rui Paulo de Figueiredo. Eu não conheço – felizmente! – nem o Presidente Cavaco, nem o Grande Democrata Alberto Jardim, nem o assessor Figueiredo. O que se conta, “si vera fama”, é que no decurso do voo, ou mesmo já nas floridas e libérrimas terras madeirenses, o assessor Figueiredo teria sido surpreendido, agora por um outro assessor do PR chamado Fernando Lima, no flagrante delito da conspiração anti-presidencial. Aqui chegado, diversas e terríficas hipóteses se desenham. Quais teriam sido as cavilosas e subterrâneas maquinações do Figueiredo, predisposto a devassar a intimidade sacrossanta de Cavaco?

Aqui, as opiniões dividem-se: há quem sustente que Figueiredo teria colocado no copo de leite do PR um minúsculo microfone, para lhe surpreender as esclarecedoras conversas com a Primeira-Dama, que consta ser, no mínimo, tão inteligente como ele; há quem diga que o famigerado Figueiredo, portador do vírus H1 N1 teria explicitamente espirrado para o prato de ovos mexidos do pequeno-almoço presidencial; há ainda quem assevere que o terrível Figueiredo se teria mancomunado com o Demo para incitar o PR a tentar fazer aquele humor inteligente com que ele deslumbrou os jornalistas (consta que estes se fartaram de rir, mas ninguém se atreveu até hoje a dizer de quê !...).

Contudo, nenhuma das arteiras conspiratas do maquiavélico assessor governamental teriam escapado ao olho de lince de Fernando Lima, o Ladino, mui digno e perspicaz assessor presidencial. O que se jogou foi uma pugna de assessores: de um lado Lima, com as armas de Boliqueime, do outro lado Figueiredo, com o elmo rosa e as armas da Universidade Independente. Claro que o PR Cavaco, devidamente instruído pelo seu staff, não bebeu o leite, rejeitou os ovos e negou-se, formal e firmemente, a contar anedotas. Um Grande Presidente é sempre capaz de Grandes Feitos. Foi isso que aconteceu.

Havia agora que tecer as malhas do contra-ataque: Lima “passou a pasta” a um tal Luciano Alvarez, editor de política (ena!) do jornal Público, que por seu turno instruiu um tal Tolentino Nóbrega (mais lhe valera ser Nicolau Tolentino) , correspondente do jornal das cagarras, perdão, do Jornal da Madeira (ena!), para que este derrancasse, sem apelo nem agravo, sem remissão, sem o menor pingo de complacência, o horripilante “penetra”, o ostensivo imitador luso de Bin Laden, o Figueiredo portador da gripe porcina.

Não tenho mais nada a contar. Os episódios seguintes vão ribombar a seu tempo, mas com a estrídula veemência dos guizos dos bobos medievais, que eram uma mistura de parvos, loucos e videntes.

Olhem lá, Concidadãos, querem que eu leve ISTO a sério? E, nesse caso, quem irá pagar-me os tratamentos do manicómio?

17 de setembro de 2009

ORIGENS DA TOLERÂNCIA

Quando Cronos e Rea decidiram partilhar o Universo pelos seus três filhos, entregaram o céu a Zeus, o mar a Poseidon e a região subterrânea a Hades. Este deus das cavernas e das lamas abissais raptara Perséfone, sua sobrinha, e fizera dela sua mulher. E ambos desconheciam a clemência, sendo ambos surdos aos pedidos de indulgência. Reinavam eles sobre os danados, que se acantonavam, rangendo os dentes e retorcendo as mãos, nas várias e terríveis plataformas do negrume impenetrável. Só eles viam distintamente as formas do seu reino, imersas na gótica babugem das profundezas. Mas viam-nas como se todas fossem iguais, reduzindo-lhes a diversidade a uma idêntica e redundante mesmidade. Hades e Perséfone abominavam o diferente. Era sobretudo esta intolerância que os tornava implacáveis, aplicando suplícios inenarráveis e castigos crudelíssimos, quase sempre gratuitos, a todos os que apresentassem pequenas ou grandes variações de aspecto ou de conduta. Os restantes deuses, os heróis afamados e os frágeis mortais evitavam pronunciar o nome de Hades, temendo despertar-lhe as cóleras e disfarçando o pavor provocado pela insuportável invocação. Um dia, no mais fundo recesso dos abismos, ergueu-se a voz trémula de um maldito agrilhoado, de um suplicante desprezado, e essa voz proferiu a heresia definitiva: “O Inferno, para Hades, é o Diferente. Mas para nós é o Igual. Se tentarmos todos nós, os supliciados destas infernais grutas, ser o que Hades não é, ele não poderá ver-nos, nem perseguir-nos, nem punir-nos, porque o seu mundo só através da mesmidade ganha na sua vidência obscura a nitidez que nós não vemos”. Ouviu-se então o som ribombante das imprecações de Hades e o silvo agudo da raiva de Perséfone: “Quem disse isso? Quem é o aleivoso? Quem se permite fazer estremecer as colunas do nosso reino de trevas, os frontões do nosso território sem limites?”. Logo depois, Hades e Perséfone mergulharam no desespero dos deuses inúteis: tinham deixado de ver as fronteiras do seu próprio domínio e choravam de raiva, agarrados um ao outro.

14 de setembro de 2009

DEUS DINHEIRO

A actual configuração do regime saído do triunfo burguês de 1789 e da revolução industrial do século XIX – alguns chamam-lhe democracia e outros até o grafam com maiúscula – gerou cidadãos de duas naturezas. Uns dominam a ribalta da economia, da política, da sociedade e da cultura e consideram, na proporção desta sua especial notoriedade, que o regime em causa é muito bom. Vão mesmo buscar a fala de Churchill, segundo a qual esse modo de planear (ou planificar?) a sociedade é a menor das maldades, o que equivale a dizer, trocando-lhe as ideias por trocos (e não por cédulas bancárias), que ele constitui, sem contradita, a maior das bondades possíveis. A cidadania dita “democrática” passou a ser tratada, segundo este dogma, tão católico como os da Igreja de Roma, como uma espécie de fundo de garantia ou caução de sobrevivência dos maiorais beneficiários do sistema. É singular que o Ocidente liberal considere satânico o fundamentalismo religioso do Islão (houve um Herr President que até falou em “Eixo do Mal” …) quando ele próprio segrega no quotidiano das suas gentes a subliminar mensagem de ser este o melhor de todos os sistemas. Assim se pratica a equivalência política do radicalismo corânico, sendo certo, contudo, que aquele outro não se divulga a partir das mesquitas ou das escolas do turbante mas a partir das grandes Entidades bancárias, certamente mais assépticas, e dos conluios da Alta Finança, seguramente mais criminosos. Os cidadãos de segunda classe, afastados de todas as culminâncias, são todos os dias condicionados, como o cão de Pavlov, a salivar pelas benesses em que se espojam os que, por malas-artes, regem o sistema. A dona de casa que conta os tostões de ceias escassas, o trabalhador por conta de outrém que reivindica nos triunfos do seu clube de futebol as vitórias que nunca serão suas, o miúdo da rua, que se afundará numa próxima dependência tóxica porque os pais só chegam a casa ao fim da labuta diária, mortos de exaustão, em suma, essa inumerável massa de humilhados esperançosos, encontra-se formatada, programada e crente. Há quem zele por isso, desde os estúdios de televisão às parangonas dos jornais, sem esquecer o suave bálsamo das revistas cor-de-rosa. O desespero é esconjurado pelos maiorais minoritários do varandim ocidental todos os dias e, especialmente, todos os fins-de-semana. É por isso que aqui, neste magnífico Ocidente “democrático”, em vez de rebentarem dúzias de bombas hebdomadárias, troam os números … do Euromilhões. Glória ao Deus das Alturas: chama-se Deus Dinheiro e anda agora com gripe suína, o pobrezinho.

10 de setembro de 2009

HOMENAGEM A WIM WENDERS


Quando Damiel e Cassiel volitavam

pávidos ou impávidos pelos céus de Berlim

e quando a pobre gente sofredora

por saber que morreria na mortalha da manhã

em certo dia, em dada hora, em contado tempo

na tumba antecipada de Berlim

quando toda essa legião de proscritos

do tempo de Berlim esventrado quis saber

se Damiel e Cassiel eram ou não apenas

imagens furtivas de cúpulas doiradas

ao sol ambíguo de Berlim

e perguntaram aos ventos, à trapezista,

ao acidentado, ao suicida, aos bandos

de estorninhos de Berlim (mas seriam

estorninhos mesmo a sério ou só a alma

dum cansado caminheiro a soltar-se da largueza

do sobretudo velho?)

quando enfim todos quiseram saber se

depois de cada agonia – diferida mas inexorável –

cada um poderia vir a ser um Damiel relutante

ou talvez um Cassiel reticente, anjos volitantes,

anjos expectantes, anjos mutantes de sítio e de sentido

na patrulha sem fim do chão contorcido de Berlim,

Wenders inseriu a expressão

PARA SER CONTINUADO ´

no fim do fotograma.

Foi então que todos e cada um procuraram na cama,

no sono do cansaço e da porfia

que chega sempre enxuto, exausto ao fim do dia,

o enigma indecifrável, guardado a sete chaves

nos sete céus afogueados de Berlim.

Vai Damiel ! ( se é que apresentas provas de existir)

Voa Cassiel ! ( se é que tens penas nas asas p’ra subir)

rasgai névoas e guerras

ide por todas as terras

anunciando como certas, em telhas altaneiras,

as improváveis e fagueiras promessas de Berlim.

8 de setembro de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXXIII

João Chagas, o jornalista revolucionário por excelência

XXXIII - O JORNALISMO PORTUENSE E A REVOLTA DE JANEIRO

A organização do republicanismo portuense no início de 1890 era muito deficiente. Algumas das suas mais representativas individualidades, como Rodrigues de Freitas, Alexandre Braga e Ricardo Jorge, faziam alarde do seu distanciamento em relação a um envolvimento militante. Os elementos mais activos recrutavam-se agora em franjas menos credibilizadas e com menor reconhecimento público. Desde 1888 que o Porto dispunha de um incendiário órgão da imprensa, o periódico O Radical, entregue aos arroubos de Felizardo Lima e de outras figuras subalternas. Chegou até a criar-se na Cidade Invicta um Partido Republicano Radical, saudado em Lisboa por Manuel de Arriaga e por uma comissão provisória que pretendeu, sem êxito, criar na capital uma associação política congénere.

Quando a Liga Patriótica do Norte se dissolveu, cresceu o inconformismo de um núcleo de publicistas e intelectuais que se reuniam em torno do jornal portuense A República. Era um núcleo valioso, composto por gente do quilate de Basílio Teles, José Pereira de Sampaio (Sampaio Bruno) e João Chagas, que nos artigos aí insertos não se cansava de protestar incessantemente contra o rei, de interpelar sem cerimónias os políticos monárquicos e de repudiar às claras as instituições. Este grupo, partilhando embora com Felizardo Lima a ideia da necessidade de protestos mais enérgicos, recusava identificar-se com fórmulas excessivas ou demagógicas, opondo-lhes um igual inconformismo, mas reivindicando uma abordagem mais intelectual das questões. Os manifestos mais agressivos dados a lume no jornal A República eram assinados por João Chagas, outrora talvez afeiçoado à monarquia, mas agora de alma e coração com a República, em consequência da apaixonada comoção do Ultimato. Nele imprimiu Chagas o artigo “Basta!”, que se traduzia numa verdadeira exortação à desforra pelas armas. O autor foi querelado pelo ministério público e, por seu turno, os proprietários do jornal não aceitaram de bom grado a co-responsabilização na demanda judicial. Tornava-se necessário continuar o acerto de contas noutro poiso. Por isso, esta verdadeira vanguarda jornalística republicana entendeu abandonar A República. Mas iremos encontrar os mesmos redactores, com redobrado vigor, no novo jornal A República Portugueza (sic), o qual recebia o patrocínio financeiro de três pequenos industriais portuenses.

Os escritórios d’A República Portugueza passaram a ser frequentados por soldados, cabos e sargentos, convertendo-se num foco permanente de sedição e de descontentamento das patentes militares mais baixas. Mas esse lugar não era apenas a sala de visitas das casernas em ebulição. Era também a caixa do correio de numerosas declarações colectivas de desagravo, firmadas invariavelmente por homens humildes das diversas unidades do país. João Chagas e os seus companheiros não trepidavam em exarar nas colunas do jornal esses apelos ao brio guerreiro e à necessidade de suprimir definitivamente o regime vigente, recorrendo a meios distantes daqueles que o eleitoralismo proporcionava. Outras mensagens de protesto provinham de estudantes e de populares sem especiais qualificações. A maior parte delas acabavam estampadas neste irreverente órgão da imprensa. A alma de toda esta maquinação de imprensa foi incontestavelmente João Chagas.

Publicava-se também no Porto uma outra folha, muito desafecta à Monarquia. Tratava-se d’A Justiça Portugueza, a qual teremos de colocar nos antípodas daquelas que vimos referindo. Dirigida por Santos Cardoso, A Justiça Portuguesa foi um simples jornal de tricas pessoais e de escândalos públicos, sem programa ideológico e sobretudo sem dignidade cívica. Santos Cardoso fez dessa publicação o vazadouro das suas fanfarronadas e o instrumento das suas simpatias ou antipatias subjectivas. Mas é inegável que o jornal corroborou o esforço dos seus congéneres, uma vez que as diatribes verrinosas e de baixo nível de Santos Cardoso alvejavam frequentemente os poderes instalados e as forças sociais mais próximas da realeza. O Directório de Lisboa, enquanto esteve nas mão de Elias Garcia, chegou a reconhecer os préstimos deste miserando plumitivo.

A próxima revolta portuense de 31 de Janeiro de 1891 nutriu-se destes antecedentes. Desta forma se preparava, num subsolo de valia –mas também de opróbrio – a mais simbólica tentativa para a exautoração pela força do liberalismo monárquico.

3 de setembro de 2009

INFÂMIAS "BEM INTENCIONADAS"


O espírito caritativo preponderou entre os portugueses noutras e mais recuadas eras. Dizia-se frequentemente, deste homem ou daquela mulher: “Tem bons sentimentos. É pessoa condoída e esmoler”. Partilhar a dor com outrém, nem que fosse sob a forma de uma humilde moeda, dar esmola aos pobres, sem ostentação, era um generoso impulso de corações humanos que batiam à cadência da solidariedade.

Depois, lentamente, vieram doutrinas e teorias inovadoras que foram cavando a ruína das almas dadivosas. Uns disseram que a esmola não deveria ser dada porque “atrasava a Revolução”. Vantajoso e perfeito era que os pobres sofressem, sofressem sempre e muito, pois seria assim que eles iriam alimentar a sua revolta, nutrindo, logo que possível, o mais cedo possível, as fileiras uivantes de proletários vingativos e vingadores. Era uma argumentação directamente ou indirectamente colhida dos textos de Lenine e Estaline, dos romances de Máximo Gorki, dos filmes de Eisenstein ou, muito mais simplesmente, da perversidade de autojustificações pulhostres. Outras facções, mais moderadas mas não menos pragmáticas, foram desenterrar a figura do Estado Social para sustentar que a correcção das assimetrias e o combate ao pauperismo deveria necessariamente caber aos governantes e só a esses, “pois era para isso que se cobravam impostos”. Lenine, Estaline, Gorki e Eisenstein esticaram a passadeira vermelha a Bernstein, ao Senhor Matias do talho e a quejandos, permitindo a citação do exemplo escandinavo ou da política concreta de Willy Brandt.

Os espíritos caritativos, dadivosos, condoídos, passaram a interrogar-se, imputando a si próprios o pecado da ingenuidade, a desprevenção da inocência, a cedência a impulsos irracionais e facilmente manipuláveis. Poucos se aperceberam que não eram apenas os pobres a perder; eram também os suficientes, abastados e ricos a ficarem mais pobres e mais indignos da sua condição de seres humanos, precisamente porque passavam ao lado do sofrimento efectivo, através do esconjuro de razões idiotas ou crassamente inverosímeis.

Hoje, aqui e agora, prossegue a almoeda dessa original inocência, que fazia sorrir quem dava e quem recebia, numa cumplicidade envergonhada, envolvendo dador e pedinte. Alinham-se, agora, novas ou reformadas razões: "Pobres? Quais pobres? Está tudo a viver à grande. Pobre sou eu e ninguém me dá nada. Se forem às barracas, lá verão televisões de boas marcas e automóveis à porta; o governo enche-os de comida e subsídios; etc, etc".

Pretende-se, a todo o custo, provar que todos os pobres são falsos pobres. Um dia passaremos por crianças a agonizar nos passeios, macilentas, desfiguradas, a cair de fraqueza, desviaremos o olhar e diremos, contentinhos de nós mesmos: “Diacho, o governo não está a cumprir o seu dever…”. E ouviremos no interior do poço da nossa perdida humanidade – se ainda formos capazes desta derradeira contrição – a pedrada dos nossos motivos a falhar o seu alvo. Virá depois a opressão de um grande silêncio de luto, chorando pelo que já não somos.