24 de fevereiro de 2011

COIMBRA, MIL E NOVECENTOS E SESSENTA E TAL

-- Lembro-me, sim, lembro-me. Era uma jovem arruivada, muito de bem consigo e com a vida, uma filha-de-família, está bom de ver. Chegou a casar com o Marcelo? Esse dado biográfico não me escapa. Já te conto. Sei que era requestada pelo Marcelo, esse tal que andava sempre com um emblema na lapela que se assemelhava grosseiramente com a efígie de Lenine, mas que gostava sobretudo de ceias opíparas. Era uma estampa, tal pedaço de mulher … Usava os cabelos apanhados e , em pleno café-restaurante “ Mandarim” , mesmo nas barbas dos “pides”, passeava-lhes nas ventas os livros de Luckacs, Gorki, Althusser, sei lá eu que mais de herético. E os gajos, pesados como a roda da mó, olhando-lhe as redondezas dos seios e o torneado das pernas , oh meu amigo, queriam eles lá saber da luta de classes, da fascismo, do comunismo, do Lenine e do materialismo dialéctico, até mesmo do ressono pesado do Salazar!

O Marcelo era o candidato mais viável, sim. Mas lembra-se do Sampaio? O Sampaio não frequentava, em regra, o “Mandarim”. Era um rapaz reservado, magro, quase ascético. Andava sempre de capa e batina. Ia às nove e meia em ponto para a Praça da República, fazendo “piscinas” de um lado para o outro, só para a ver passar. Adorava-a de longe, como se ela não fosse uma colega como as demais, mas uma “madonna” da Renascença. Ao Sampaio não se lhe conhecia preferência política, embora se soubesse que o pai era secretário de Finanças numa vilória do interior e a mãe não tivesse outro camarote de distinção para além do que lhe estava reservado pela condição de doméstica. O Marcelo nem sonhava que o Sampaio lhe disputava discretamente a presa. Por isso, apesar de passar rés-vez pelo Sampaio nos serões primaveris da Praça da República, nem lhe passava pela cabeça provocá-lo. Era como se bordejasse uma vinha já vindimada. Entrava no café-restaurante, como um César triunfador, e ia postar-se numa posição estratégica, a partir da qual a pudesse deslumbrar. Às tantas, a partir do oitavo copo de cerveja, o Marcelo subia para cima da cadeira, espantando toda a gente, e orando assim, “urbi et orbi” : “ Eu quero aqui assinalar todos os centenários que a Ilustre e Sábia Academia de Coimbra venera e celebra: o centenário da Sebenta, o tricentenário de Camões, o centenário do Marquês de Pombal” – e acrescentava, virado para a mesa dos “pides” – “tão do agrado daqueles senhores; o centenário do Hilário, e também o centenário de todos os corações amigos e amantes da Beleza” . Esta última arrancada era posta em destaque com um olhar intencional, dirigido para a tranquila mesa onde se encontrava , a saborear um “pingado”, de companhia com outros, uma jovem de cabelo cor de cobre, apanhado em tótó, como o das velhas da Beira.
Nesse dia, o Sampaio seguira a estátua da sua adoração e ficara de pé, reservado, pensativo, muito só, num ângulo do café, com o copo da água sem gás consumido à metade. Atentíssimo, também. Quando o Marcelo concluiu a diatribe, o Sampaio, muito calmo, dirigiu-se à mesa do colega depoente e disse : - Senhores meus colegas, este Marcelo é uma burla monumental; ele é tão comunista como eu sou Rei da Abissínia. Está morto por ser preso por aqueles funcionários da “pide”, transigirá até com a vergonha de apanhar uns tabefes, para ganhar o estatuto que lhe permita transitar, como um Deus, pelas cuecas de todas as colegas que lhe interessam. E eu sei quem lhe interessa sobremaneira”.
Segiu-se o pandemónio. O Marcelo atirou-se ao Sampaio como os cristãos se aplicaram a dar murraças nos mouros. Os da “pide”, completamente ultrapassados pelos acontecimentos, só tartamudeavam “mas que é isto? mas que é isto? Ordem! haja Ordem, senão vai tudo preso”. O Talina, empregado de mesa, metido num casaco largo e impecavelmente branco, repetia, como um fonógrafo estragado, “isto nem parece dos senhores doutores, dos senhores doutores”. E a causa eficiente da balbúrdia, a jovem bela e leitora, pagou ao Hugo - também ele fun cionário do “Mandarim” - a despesa da mesa e saiu a sorrir, imperturbável, mas não sem que antes, ao cruzar-se com o Sampaio, lhe tivesse murmurado baixinho : “Não esteve mal. Mas, sabe, há cuecas e cuecas…”.
Eu ouvi toda esta evocação, procurando exumar, dos arcanos da memória, o Sampaio, os “pides”, o Marcelo, o Talina, o Hugo e “tutti-quanti”. Depois, dirigi ao meu amigo a pergunta óbvia: -- Olha lá, com quem é que ficou a pequena? E fiquei varado, quando ele me respondeu: -- Ora essa, comigo. Comigo! Pois se era eu que nesse dia estava na mesa com ela… Tinha vindo de Abrantes para a rever. Amiga de escola, sabes? Eu dediquei-me ao negócio do turismo e abri um hotel de vinte quartos nos arredores de Tomar. Casei com ela logo a seguir à formatura em Geografia, por ela tirada em Coimbra. Achei piada, porque o Marcelo foi nosso cliente do hotel, onde pernoitou há uns meses . E foi ela que o atendeu no balcão da portaria. Nem sequer se conheceram. Tive de ser eu a refrescar-lhe a memória, perante o nome, depois do tipo ter desandado. Mas o que me deu mais gozo foi o facto do Marcelo trazer na lapela , muito visível e embandeirado, o emblema do PSD. Típico, não ?
-- E o Sampaio? – perguntei.
-- Desse nunca mais ouvi falar. Já deve ter morrido.

23 de fevereiro de 2011

OS PENITENTES


Os penitentes saem das casas ao lusco-fusco

E ao lusco-fusco caminham por estradas sem distância.

Os penitentes levam na mão um nodoso bordão

E na alma uma incomensurável Fé

E fazem sempre muitos calos no pé.

Os penitentes são de muitas cidades e de muitas idades

E de condições plurais ; e não soltam ais

Quando os músculos já doem

Quando as pernas vacilam

Quando os corpos se encharcam

Em Deus e em suores devotos; e também

Em inevitabilidades de carne viva.

Os penitentes gostam de orar nos longos caminhos

Muito sofridos e onde carinhos não abundam.

Por vezes, automóveis arquejantes em velocidades impiedosas

Matam os penitentes piedosos e os jornais do dia seguinte

Anunciam que morreu atropelado um penitente

E que não foi realizado o teste alcoólico

Porque o penitente trazia no bornal um papelinho

Dobrado em quatro vincos onde dizia que perdoava,

Que perdoava tudo a todos ( e também obviamente

À carripana desarvorada). Os penitentes morrem então

De excesso de octanas e de míngua de código da estrada.

Tenho pena de nunca ter sido um penitente.

Por agora, limito-me a ser um resistente

Já não é mau. Resisto ao Tempo. Que esse

Mata mesmo e sempre. Mata sim, sem contrição

Por força de trânsitos a que não demos atenção

E também, como nem sempre convém,

Por míngua de octanas de saúde

E ainda por decretos do Divino, daquele Divino

Sempre honrado, finalmente,

Pelo peregrinar do penitente.

Lastimo nunca ter sido penitente

Mas cumpro a minha jornada lealmente

Contra o Tempo, a destempo

Procurando evitar o contratempo inevitável

Não sei bem se do Motor Imóvel de Aristóteles

Se daquele Anjo Caído, Mefistófeles,

O monstro, o transviado, o grande cão

Que continua a peregrinar

( e a guiar, valha-nos Deus)

Sem carta de condução.

15 de fevereiro de 2011

SINA DE "PORTUGA" ...

"Descansa, rapaz! Vais continuar aí dependurado por mais cem anos..."

Existem duas Europas : a católica e a calvinista; a normativa e a anárquica; a res-publicana e a res-mafiosa; a construtora de Futuro e a nostálgica do Passado; a laboriosa e a parasitária; a previdente e a dissipadora. A primeira corresponde geograficamente à Europa Central e à Europa do Norte; a segunda ocupa, em termos amplos, a fatia mais próxima da bacia mediterrânica. Estas duas Europas nunca irão conseguir uma aliança de boa-fé. A segunda jamais apreciará o rigor administrativo e a seriedade decisória da primeira. Um cidadão da Europa consistente terá sempre presente que os seus índices de bem-estar não podem ser alcançados à margem dos cómodos e das garantias que os demais concidadãos também tiverem. Um “cívico” da Europa “berluscónica” partirá sempre do princípio de que o Bem Comum é uma treta e de que quem não tem “padrinhos” morre mouro. Os princípios de solidariedade da primeira Europa foram na segunda substituídos pela expressão com que Alexandre O’Neill nos caracterizava : “vamos mas é fazer pela vidinha…”. A “vidinha” é, no pátrio poiso, o golpe do baú no casamento, a mão-de-finado no testamento, o videirismo na política, o suborno na Administração, o oportunismo no negócio, o “depois-de-mim- que-se danem” na partidocracia. É uma espécie de prodígio providencial que este país ainda não tenha desaparecido. A única razão para tal prodígio deve estar no facto de que, depois de nos tornarmos conhecidos, no nítido contraste das respectivas endogenias, ninguém nos quer. Fomos um rebanho disciplinado enquanto tivemos a ameaça das ditaduras a pesar-nos sobre os lombos: Salazar não foi uma fatalidade, mas o reflexo de uma imagem no espelho da idiossincrasia. Quem declara que precisamos de mais uma dúzia de Salazares tem a razão que provém da circunstância de reconhecer o seu fundo de bestialidade e de cerrada estupidez. E quem acredita que certo Presidente da República é honesto, cercado pelos Amigos que teve e tem, não é apenas ingénuo: é um Sancho Pança que passou pelas forcas caudinas de uma calda imbecilóide, onde foi mergulhado, à maneira de Aquiles, não para que se tornasse imortal, mas para que se convertesse para sempre num pobre-diabo.

Eu já nada espero do grito espontâneo da lisura patriótica. Espero tudo da Fome e da Miséria. Que já chegaram.

14 de fevereiro de 2011

HAVANA ; HAVANA ...

O que acontece é que só nos repetimos. Julgamos falar para o Universo, para todos os vivos e até para todos os mortos, quando afinal nos limitamos a dizer de nós, sempre e só de nós, como uma melopeia, a mesma cançoneta. É como se fossemos um daqueles solipsismos melódicos de certas canções cubanas, onde aparece sempre a voz metálica dum refrão a repetir incansavelmente as mesmas notas. Percebi isto, com muita clarividência emocional, em Havana, quando me consegui escapulir do guia que nos levava, como rebanhos, pelos recessos da cidade esventrada, na tentativa insólita de recuperar inutilmente a aura similar à de um Cadillac cataléptico e de cromados já amarelecidos. A receita turística dos Castros repetia-se incansavelmente : levavam-nos, de cambulhada, para uns pátios sem graça, onde se faziam ouvir as notas arrastadas de Carlos Puebla a celebrar o Comandante Imortal e depois se estorciam umas patéticas marafonas, de gâmbias desnudadas, procurando dar vida a uma cenografia virtualmente erótica, mil vezes repetida.

Fui passear para o Malecón. O Malecón não é mais do que um passeio rente ao mar, cheio de pescadores de canas improvisadas e de olhos fitos mais no além da América do que no picar improvável do peixe. No Malecón há desesperos. E putas para turistas. Ciranda-se por lá como se fosse um roteiro sem fim. Um autóctone, escuro e de bigode, interpelou-me, perguntando se eu poderia estar interessado em “donzelas virgens de catorze ou quinze anos”. A verdade é que me ouviu dizer que estava mais curioso da memória de Hemingway e que as meninas poderiam ficar para mais tarde. De Hemingway não sabia nada. Só de jovenzinhas. Ofereceu-me um “puro”, contra a eventual permuta de uma “gilette” descartável. Como não tinha comigo a “gilette”, fiquei também impedido de baforar o “puro”. Também me interrogou sobre se já tinha visto a Praça da Revolução. Disse-lhe que sim, que tinha estado lá, naquele terreiro vazio e calcinado, com a caricatura do Che desenhada com hastes de ferro na parede de um Ministério qualquer e com um fálico monumento a memorar o passado heroísmo dos barbudos da Sierra Maestra.

Havana afigurou-se-me como ponto nodal da relatividade da vida. É que a percepção da decadente nostalgia consegue ser tão forte, tão omnipresente, que nos damos conta que um dia, depois da pletora das forças vitais, todos nós iremos ser assim.

Fui a Havana duas vezes, em dois tempos diferentes. Eu, diferente também. Mas Havana igual a si mesma, das duas vezes. Das duas vezes vi velhas vestidas de branco a cobrar um ou dois dólares por fotografia que se lhes quisesse tirar. Das duas vezes peregrinei por lá, demandando as balas dos insurgentes em fachadas pulverulentas. Das duas vezes fui à Bodeguita del Medio, transitando por ruas fedorentas para beber um “mojito”, pretensamente intelectual, acotovelando gentes a baloiçar-se entre a fruição do exotismo e a libertação etílica.

Repetir Havana é ter a certeza de que somos tautológicos. Mas a vista geral da cidade, do cimo de um decrépito hotel de comprovada centralidade, é a evidente certeza de que continuamos, nós, os Cadillacs fanados da estranja, a perceber, para além dos prédios de pintura velha e descascada, e também das prostitutas e das velhas de charuto nos dentes, e do ridículo “cliché” oficial, e dos proxenetas do Malecón, que todos nós, todos, sem excepção, acolhemos nas funduras de nós próprios a esperança de que um dia tudo se recrie e renove, nas ruas, nas praças e nos lupanares de nós mesmos.