31 de outubro de 2011

NOVA CANTIGA DE MALDIZER


O Dias era um huguenote duma crença qualquer.

Oh, quantos dias emergiam do ventre do Tempo

Em que tínhamos de aturar o Dias (oh, quantos dias)…

Mas houve um dia, perdido entre dias,

Em que o Dias se apaixonou por uma Puritana;

E o Dias deixou então, durante dias, de ser um huguenote.

O Dias, pobre dele, sofreu metamorfose e acordou parrana.

Dizem que os dias do Dias perderam a nota do edificante

E que a Puritana – que o era, a sacana – nada perdeu .

Ou seja, o Dias levou dias a pedir o que se sabe

Mas ela, arteira, dissimulada, sabidona, nada lhe deu.

Sim, porque o Dias tinha dias de doutrinações berrantes!

A ironia é que, apesar da paixão, ficou tudo como dantes …

Aqui temos durante muitos dias o Dias preso

À garridice contida de uma bem vivida Puritana

E não já a demonstrações racionais de muito peso.

“Dias, vê como correm os teus dias” , bem lhe dizia a mana.

O bom do Dias, que tinha sido um denodado huguenote,

Levou dias e dias a descobrir que certas formas de amor

Só nos tornam irrecuperável e miseravelmente pequenotes.

Isto de viver dias de grande Amor não é de todos os dias.

Sabes que mais, oh Dias ? até o Amor, velho gaiteiro, tem dias!

26 de outubro de 2011

APONTAMENTO SOBRE A CARICATURA

Pode dizer-se que a caricatura constitui a ilha de um continente muito maior: o continente da imagem satírica. Embora haja quem considere que toda a satirização plástica é caricatural, a verdade é que, tradicionalmente, a caricatura se aplicou à deformação e recomposição dos traços fisionómicos das pessoas. Tal como o riso pode comportar dois significados – o da integração simpática e o da exclusão antipática – assim a caricatura pode assumir a benevolência de nos apresentar um rosto indutor de reacções complacentes ou a implacabilidade de nos dar um rosto susceptível de um juízo de repulsa. Em regra, a caricatura política, por se encontrar fundada sobre um maniqueísmo valorativo, expressa-se através da indução do segundo daqueles risos, compelindo a respostas sardónicas e desqualificantes. A caricatura situa-se nos antípodas da doutrina de Jesus, o qual, explicitamente, de acordo com o testemunho dos Evangelhos, aconselhava os seres humanos a “não julgar segundo o rosto”. Mas o desígnio da caricatura é exactamente esse: o de permitir, através de uma “visão-outra”, que nos é trazida pelo sublinhado de alguns elementos morfológicos da face, o de consentir, mediante a descoberta de uma verdade interior, até então oculta, julgar através dum rosto. O caricaturista seria então uma espécie de mago, um adivinhador de signos e sinais, um profeta de morfologias antropológicas. Ele seria animado por uma sorte de feitiçaria, de talento de adivinhação, trazendo á superfície os segredos recônditos de uma personalidade. A caricatura, quando preenche efectivamente o lugar a que tem direito no mundo da Arte, quando se destaca da simples intenção do “fazer engraçado”, comporta pretensões demonstrativas evidentes. Por isso é que o trabalho, decerto honrado mas primário, dos chamados “caricaturistas de boulevard”, não atinge a craveira suficiente que imediatamente reconhecemos aos caricaturistas de corpo inteiro, como Daumier, Hogarth, Rafael Bordalo Pinheiro, Leal da Câmara ou João Abel Manta. A intencionalidade caricatural pode respeitar ao corpo todo. O exagero das grandes barrigas ou o rectilíneo das figuras esquálidas têm fornecido a inúmeros caricaturistas uma parte da matéria-prima do seu trabalho. Mas a alvo preferencial da caricatura é, inquestionavelmente, o rosto. Diz o saber popular que “o Mal e o Bem ao rosto vem”. Por isso, esse acto pictórico de olhar, a partir de fora, para o que está dentro, de divisar, a partir da altura da testa, da comissura dos lábios, do prognatismo ou da falta dele, da implantação das orelhas, do feitio do nariz, do rasgo dos olhos, de vaticinar, a partir do que “está aí”, o que “aí se anuncia”, esse sortilégio de auscultar os segredos do Animus absconsus, essa faculdade constitui, numa palavra, a grandeza da Arte: a grandeza de nos fornecer uma Verdade mais verdadeira do que aquela que é tão cerradamente manifesta.

22 de outubro de 2011

UM CLÁSSICO BANZÉ

Parece que Alcibíades se ofereceu a Sócrates. Sim, ofereceu-se-lhe fisicamente, tal despudorado ! Não sei bem se tal ocorreu no decurso do “Banquete” de Platão ou na ponte pênsil por onde transitava o pessoal que seguia para uma das numerosas festas dionisíacas. O que sei é que tamanha desvergonha foi muito comentada por gente que deambulava pela ágora de Atenas. Constou que Diógenes, o Cínico, mal se tornou sabedor de tal rumor, deu-se a acariciar o sexo, não se desse o caso de tal convite lhe poder ser também dirigido. Foi no dia em que Epicuro comia uvas bem sazonadas com ovas de peixe e uma amálgama de azeitonas sem caroço e de medronhos esmagados. Também por ali deambulava o satirista Aristófanes, congeminando já o entrecho a “Lisístrata”, peça futura na qual as mulheres negavam comércio carnal aos seus senhores guerreiros, a menos que eles deixassem de combater. Foi então que irrompeu, lépido, um seguidor de Heraclito, que forcejava por levar ao pasmo a maior parte dos que se pacientavam para lhe escutar a fala. Este só declarava, enfaticamente, mas tão repetido como o chiar das rodas dos carros: “Tudo muda, tudo muda; e o segredo do saber está no conhecimento da mudança”. As mulheres, sobretudo essas, acotovelavam-se, muito cúmplices, sem saber se esse cenário de mudança projectava um mundo de suspeitas sobre a veracidade da luxúria de Alcibíades ou sobre a mansa recusa de Sócrates. E diziam as mulheres umas para as outras: “ O Alcibíades deve desejar que Sócrates com ele pratique sexo anal ao mesmo tempo que lhe recita aquela história de se chegar à verdade através de partos mentais”; “nada disso”, declarava outra, “aquilo é um sofisma completo, bastando para tal a consideração da fealdade de Sócrates, a sua idade, e o equívoco convívio de Alcibíades com jovenzinhos de catorze e quinze anos”. Neste momento, Platão deu-se às vistas mais distraídas. Vinha grave, mas convencido, como sempre, que era o guardião dos costumes da Cidade e o garante de tudo o que de Belo nela pudesse ocorrer. Era por isso que se ouvia, vinda de dentro da barrica de Diógenes, a interpelação reiterada: “Platão, grande cabrão, vem mexer-me aqui co’a mão”. Nunca se sabia se era Diógenes a falar ou o cão que o habitava. O que se sabia, não por efeito de boato mas por audição de mútuos dichotes, era a fundíssima desavença que lavrava entre Diógenes e Platão, troçando um do outro o mais que podiam. Mas Platão fazia-o pedindo de empréstimo a Sócrates alguma "eironia" , enquanto Diógenes o escorchava roubando a Diónisos o vinho da ira e da descompostura. Quem anotava tudo, enchendo as palmas das mãos e a barriga de inscrições, traçadas a carvão, era Aristófanes.

Não tive tempo de conhecer o desenlace disto tudo. Parece que Sócrates foi condenado à cicuta, mas não por indulgências carnais; parece que Platão surgiu mais tarde, num quadro renascentista de Rafael sobre a “Escola de Atenas”, a apontar com o dedo o céu dos pardais, como se o Empíreo lhe pertencesse ; parece que Diógenes reencarnou, nos inícios da Modernidade, em Rabelais, transmitindo-lhe o segredo do alívio de ventos intestinais, o que ditou acumulações de más vontades e de cheiros fétidos; parece que os discípulos de Heraclito continuam, ainda hoje, como relógios falantes, a debitar a máxima segundo a qual o segredo do conhecimento consiste em dizer que tudo muda, silenciando, porém, a natureza e o sentido desse mudar; parece que Alcibíades já reivindicava, ao tempo, direitos de adopção sobre os meninos órfãos da ágora.

Nesta parlenda, a única conclusão segura é esta: Aristófanes escreveu mesmo a “Lisístrata” e as mulheres de todos os tempos conseguem suster todas as guerras masculinas, oferecendo aos machos o que têm entre as pernas.

14 de outubro de 2011

LIMÕES E LARANJAS


Na frente da minha casa

Limoeiro e laranjeira

Limões e laranjas dão.

Laranja da laranjeira

Tu que és assim brejeira

Não deixes cair no chão

O suco desse limão.

Mesmo no patim da casa

Limoeiro e laranjeira

Limões e laranjas dão.

Limão desse limoeiro

Não percas da laranjeira

A flor da sagração.

É que ao vê-la assim ligeira

Na flor da viração

Eu quis que de mim nascessem

Em frente da minha casa

Laranjas do coração

E também nesse patim

Sobre mim assim descessem

Sucos fortes de limão

Para tos dar mui cheirosos

Sucos florais, olorosos,

Na concha da minha mão.

Na frente da minha casa,

Junto ao patim, num desvão,

Limoeiro e laranjeira

Limões e laranjas dão.

10 de outubro de 2011

O RISO EXISTE

O homem ri dos outros sem que por vezes se aperceba que está a motejar acerca de si mesmo. Mas desde a mais remota Antiguidade aos nossos dias, o riso foi uma das suas emoções mais recorrentes. Riram sem atrição os deuses de Homero, num olímpico desconchavo, quando Vulcano, o coxo, os serviu à mesa, manquejando irreparavelmente. Riram os mimi romanos, os goliardos medievais e os actores facetos da commedia dell’arte, nos inícios da Renascença, já numa altura em que sobre o riso se abatia a censura do “parece bem-parece mal”, obrigando-o a abandonar as ruas e a refugiar-se nas páginas dos livros e nos palcos dos teatros. Que riso é o de hoje? Cremos ser menos espontâneo do que o que vibrava na ágora de Atenas, no Forum de Roma ou nos canais de Veneza. Sobre o riso do nosso tempo passaram duas grandes guerras mundiais e a percepção, em surdina, de que o único humor possível, o único historicamente justificável, é o humor inconsequente do Dadaísmo ou o “humor negro” de Breton e do surrealismo. “E, no entanto, move-se”, diria um Galileu de agora, estudioso das regras e modas que o comandam. Move-se? Sejamos menos ousados. Limitemo-nos a dizer que existe.

6 de outubro de 2011

ORAÇÃO REPUBLICANA


Mãe Nossa, que estais na Terra, bem abençoada seja a Vossa face, venha a todos nós a Justiça, a Igualdade sem demagogia, o sentirmo-nos gente entre gentes, capazes de fruir da Felicidade que o nosso Trabalho for capaz de conquistar, e seja feita a nossa vontade, nós que somos Obreiros do Tempo e da Charrua, da Pena e do Escopro, da Enxada e da Espátula, do Músculo e da Palavra. O Pão nosso de cada dia haveremos de o conquistar, contra o devorismo e a desmedida ambição, contra a manipulação e o Privilégio. Nós, que somos gente comum, sem deixarmos de ser Gente de suma importância nos caminhos do Futuro, nós que temos a universal certeza de que em nós reside o pão e a sopa quotidiana, o saciar da fome e a vingança da Iniquidade, nós, gente comum entre seres humanos vulgares, nós que somos a gota de água no deserto, o grão de trigo na Terra Inóspita do Sem Fim, nós que temos na palma da nossa mão o querer de uma vida mais séria e melhor, nós aqui vimos, junto da ara da Humanidade, colados à responsabilidade da Nossa precária Humanidade, para te dizeremos, Irmão de todas as estações, que não desistiremos de fazer a Justiça, de fazer a Liberdade sem licença, de edificar a Res Publica sem corrupção, para que as Crianças possam nascer em Paz e para que o Sol nascente nos ilumine a todos, nós aqui declaramos o nosso AMEN, como charneira de Salvação, como Arca de Aliança para todo o Sempre. Amen !"

1 de outubro de 2011

SACO PRETO COM CORES


Quando me despedi

Do meu país distante

Não sabia de mim.

Pintava-me de escuro

Havendo um muro

Que me mostrava o fim.

Havia apenas a pena

Do penar

E um saco preto

Onde meto

O que sobre em carmim.