31 de maio de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO

LI - D. Carlos patrocina a ditadura

O governo que João Franco organizara foi, nele próprio, uma contradição e uma mentira. Patrocinado por José Luciano de Castro, cuja doença e velhice lhe obstava a natural chefia, e levado ao terreno por João Franco, cujo partido por ele inventado era um arremedo de grandeza política, tal governo foi desdizendo tudo o que prometera. Franco declarara ser uma “ignóbil porcaria” a lei eleitoral que o seu antigo chefe regenerador preparara contra si; mas, mal se apanhou no Poder, não tomou a menor iniciativa para a substituir. O mesmo Franco prometera reformas e liberdades, dizendo querer “governar à inglesa”, constitucionalmente, e confessando intuitos de “caçar no mesmo terreno dos republicanos”, impulsionando Portugal para a modernidade e para a tolerância; porém, tornavam-se notórios os seus esgares de impaciência nas casas do Parlamento e fora delas, como se lhe fosse de todo impossível escapar à sua antiga sina de irritável déspota.

Aquele governo era também um enigma perante a opinião pública. Esta interrogava-se sobre se seria o franquismo a tomar conta do Partido Progressista, se seria este a absorver aquele, ou se cada um deles, servida a opípara refeição governativa, seguiria tranquilamente o seu caminho. Era isto que Hintze Ribeiro perguntava, utilizando as seguintes palavras: os dois partidos “ fundem-se e consubstanciam-se ou só se juntam, em termos eventuais, para um momento de acção governativa?”.

A crise, previsível devido aos tumultos que a “questão dos adiantamentos” provocara na Câmara dos Deputados, declarou-se sem disfarce quando os ministros da Justiça, José Novais, e dos Estrangeiros, Luís de Magalhães, apresentaram as suas demissões. Uma só pessoa, em tais circunstâncias, poderia propiciar uma continuidade aceitável de governo. Era necessário que o velho José Luciano de Castro lançasse a João Franco a bóia da salvação. Era forçoso que ele viesse dizer que a concentração liberal estava ali para durar e que o seu Partido Progressista ajudaria novamente o franquismo a aguentar-se no mando. Mas quando João Franco pediu ao patriarca do Palácio dos Navegantes alguns dos nomes mais sonantes para restabelecer o crédito do governo, a resposta que obteve foi um não rotundo, peremptório. João Franco naufragava. Ficava só, irremediavelmente só, nos termos previstos pela Carta Constitucional.

Foi aqui que emergiu um novo comparsa para uma farsa que iria terminar em tragédia. Esse comparsa foi o rei D. Carlos, Vencido suplente e admirador secreto de soluções rijas, musculadas. O monarca iria patrocinar a ditadura de um só homem contra todas as forças políticas organizadas de um Reino. É esta cegueira que torna tristemente espantosa tal decisão. D. Carlos sabia, tão bem ou melhor do que João Franco, que a ditadura deste iria desencadear-se contra a totalidade do pequeno mundo político lusitano: contra os regeneradores, que não perdoavam a cisão; contra os progressistas, que tinham posto fim à concentração liberal ; contra os dissidentes de Alpoim, que abominavam tanto o rei como o valido do rei; contra os republicanos, por motivos óbvios; contra os socialistas e os anarquistas, por razões ainda mais evidentes. Certamente poderia agradar a D. Carlos uma “vida nova”, tal como a previra Oliveira Martins, nos seus papéis de literato, de sociólogo e de economista … todo teórico. O penúltimo dos Braganças iria viabilizar o franquismo em ditadura, escrevendo ao chefe daquela escassa patrulha uma carta pessoal, datada de 9 de Maio, onde podia ler-se: “(…) continuemos serenamente, com calma, mas com firmeza a nossa obra. Neste caminho encontrarás tu e os teus colegas todo o meu apoio o mais rasgado e o mais franco, porque considero que só assim, dadas as circunstâncias em que nos encontramos, poderemos fazer alguma cousa boa e útil para o nosso País”. D. Carlos queria continuar serenamente, quando ia reunir todas as razões para a instabilidade; e falava também na nossa obra, como se tivesse sido acometido de uma amnésia súbita, olvidando que um monarca constitucional reina, mas não governa.

Seguiu-se a tudo isto o decreto de 10 de Maio de 1907, encerrando o parlamento e inaugurando, com toda a explicitude, a ditadura de João Franco, antecâmara de uma tragédia que não demoraria a chegar.

28 de maio de 2010

UM JORNALISMO NAUSEABUNDO


O jornal “Sol” converteu-se definitivamente na comadre de soalheiro do jornalismo português. Ele mete o olho (não sabemos bem qual) no buraco da fechadura; ele espiolha SMSs privados com a voracidade própria dos polícias de costumes e com o puritanismo hipócrita dos “portuga” mal lavados; ele espezinha tudo o que é inerente a códigos deontológicos ou a regras básicas de jornalismo escorreito, para se preocupar só com o desforço, com a desforra odienta que quer obter sobre a figura de um Primeiro-Ministro que, não sendo grande coisa, merece ser tratado como qualquer outro concidadão.

Imaginemos que um meu inimigo me quer tramar. Há processos limpos e processos sabujos para conseguir este efeito. O processo limpo é o da inquirição à minha vida pública – por isso é que ela é pública – e o ataque às insuficiências da mesma. As acusações poderiam ser desta natureza: o Professor Fulano falta às aulas e ensina mal ; o Professor Fulano recebe dinheiro para passar ou chumbar alunos; o Professor Fulano retira dividendos indevidos da sua profissão. Tudo isto, desde que devidamente provado, integra a esfera pública da responsabilidade individual e pode – deve, até – ser publicitado em jornais de higiene capaz. Vamos agora supor que um meu inimigo, para me esquartejar, passa a vigiar o meu telefone privado, o meu telemóvel privado, a minha residência, o barbeiro onde eu vou, o café que eu frequento e grava as minhas conversas, as minhas observações, as minhas frases, as minhas dicas, os meus desabafos: aquelas dicas e aqueles desabafos que eu livremente expendo, por me sentir cidadão livre num país livre e por ter como certo, talvez ingenuamente, que a pulhice ainda não está entronizada nos órgãos de comunicação do meu país como sistema normal de colheita de informações.

Agora, o jornal “Sol” quer tramar o nosso concidadão Sócrates com base num SMS que ele teria recebido do nosso concidadão Vara. A questão obtusa não está em saber se Sócrates ou Vara são flores de bom cheiro. O cerne do problema está em saber se o cidadão Sócrates, o cidadão Vara, o meu barbeiro, o gajo que me traz a bica, o presidente da Câmara da minha cidade, o presidente da Junta da minha freguesia, o presidente da Direcção do meu grupo recreativo, o jogador de futebol da minha equipa, o meu colega de trabalho, numa palavra, o universo dos habitantes de um país chamado Portugal, têm ou não um território de convivência asseada, uma reserva de privacidade, ou, pelo contrário, uma nitreira toda pública, todos os dias revolvida por jornalistas iguais aos do “Sol”. E a diferença entre o asseio da primeira hipótese e a matéria fecal da segunda hipótese está em saber se existe ou não uma coisinha elementar ONDE REPOUSAM TODAS AS LIBERDADES e que se chama o REDUTO PRIVADO DA CIDADANIA.

Num país decente, o Senhor jornalista do “Sol” iria malhar, mais dia, menos dia, com o costado na prisão. Neste, é natural que ele acabe por conseguir o seu objectivo mais pertinaz: a demissão do concidadão Sócrates com base num miserável espiolhamento dos actos privados da sua vida e dos actos privados da vida dos seus amigos.

Isto está a passar-se em Portugal, no ano da graça de 2010, cem anos após a proclamação de um regime que terá de ser digno, limpo, valorativo e transparente para merecer o nome que lhe foi dado por Homens dignos, limpos, valorativos e transparentes: o nome de República Portuguesa.


18 de maio de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO L

L - A GREVE ACADÉMICA DE 1907

No dia 4 de Dezembro de 1906 foi conhecido o manifesto académico Ao País. Dos estudantes revolucionários de Coimbra, muito severo para os poderes vigentes, o qual invocava o antecedente da “forte geração dos estudantes republicanos de 90”. Tal documento fora redigido por António Granjo, Ramada Curto e Carlos Olavo, todos republicanos, cursando a Faculdade de Direito. Eram numerosos os discentes universitários que subscreveram esse texto, contando-se entre eles algumas personalidades que viriam a ter lugar destacado no posterior republicanismo, tais como Campos Lima, Marques Guedes, Abranches Ferrão, Carlos Amaro, Bissaya Barreto, Alberto Xavier, Pinto Quartin e muitos mais. O manifesto utilizava uma linguagem de implacável rudeza, referindo a Casa de Bragança como uma “dinastia de beatos, traidores e cobardes” e João Franco como um “epiléptico ignorante e mal-educado”.

Em 27 e 28 de Fevereiro de 1907 foi discutida na Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra uma tese de doutoramento, redigida por José Eugénio Dias Ferreira, filho do político monárquico José Dias Ferreira, na qual o candidato adoptava uma metodologia claramente positivista, que certamente teria desagradado aos membros do júri. Por outro lado, esse trabalho científico era explicitamente dedicado ao ideólogo republicano Teófilo Braga, presumindo-se que também isto tivesse concitado alguma animosidade contra José Eugénio. Como se tivesse divulgado na cidade que o júri tencionava infligir ao candidato uma reprovação inapelável, a Sala dos Capelos encheu-se de gente. Foi com pasmo que os presentes assistiram a interpelações extremamente agrestes por parte dos examinadores, um dos quais chegou ao cúmulo de mandar calar José Eugénio quando este fez menção de se defender. Logo que foi conhecida a decisão unânime da reprovação do doutorando, uma considerável multidão de estudantes, concentrada no Pátio da Universidade, vitoriou o candidato e soltou brados de indignação contra os professores, a Faculdade de Direito e o autoritarismo do ensino catedrático. Alguns estudantes, na noite da decisão do júri, foram fazer arruaças à porta das residências dos doutores Álvaro Machado Vilela e Guilherme Alves Moreira, com apedrejamento das janelas. Nessa mesma noite, a assembleia magna da Academia deliberou uma greve às aulas do dia seguinte, em todas as Faculdades. Na continuação deste agitado momento, certos estudantes cometeram desnecessários excessos. João Franco respondeu a tudo isto com a sua proverbial precipitação autoritária: mandou suspender os exames universitários, fomentando o alargamento do protesto estudantil contra a instituição universitária e os seus métodos de ensino.

Pressentia-se que a contestação encetada contava com a benevolência – senão mesmo com a discreta cumplicidade – de professores que davam mostras, nesta conjuntura, de uma maior modernidade pedagógica e de uma mais requintada bonomia no relacionamento social. Estavam neste grupo os docentes Bernardino Machado, Pedro Martins, Ângelo da Fonseca, Sidónio Pais, Daniel de Matos e Caeiro da Mata. Uma representação de estudantes, já com a Universidade encerrada, deslocou-se a Lisboa para explicar ao governo os seus pontos de vista. Receberam da parte de Malheiro Reimão, ministro das Obras Públicas, uma resposta cortante: o governo só tomaria conhecimento das reivindicações se os estudantes regressassem incondicionalmente às aulas. António Granjo desforrou-se, lendo ao presidente da Câmara dos Deputados uma exposição onde se dizia taxativamente: “A Universidade é uma fábrica de cretinos”.

Coube sobretudo à vigorosa oratória de António José de Almeida a defesa da causa estudantil na Câmara dos Deputados. Assim, declarava este tribuno, em 5 de Março de 1907, que o movimento académico apenas pedia que “se reformem os estudos e se varra da Universidade esse velho espírito inquisitorial, que ainda se abriga na solidão dos seus claustros”. Guerra Junqueiro entrou também na liça, através de uma missiva dirigida a um conclave de estudantes, em reunião no Porto, em 18 de Março. Lia-se nela esta demolidora passagem: “(…) a nossa triste Universidade, embora com homens de valor, julgada em globo, na sua organização, na sua estrutura e nas tendências, só realmente, queimando-a, nos daria luz. Não a queimem, nem a desloquem, reformem-na”. Cerca de uma semana depois, Bernardino Machado declarava no Centro Republicano Escolar de Belém que se fossem expulsos estudantes da Universidade, ele consideraria que as portas universitárias também estariam para si encerradas.

A sentença do Conselho de Decanos foi conhecida em 2 de Abril, expulsando da Universidade por dois anos os estudantes Ramada Curto, Campos Lima e Carlos Olavo, indigitados como principais instigadores, e por um ano Alberto Xavier, Pinho Ferreira, Gonçalves Preto e Pinto Quartin. A unidade estudantil voltou a manifestar-se quando João Franco teve a veleidade de reabrir a Universidade, uma vez que a greve geral persistiu. A instituição universitária iria mudar de reitor e o conflito conheceria novos rumos quando uma comissão de pais se organizou , chegando mesmo a ser recebida pelo rei D. Carlos.

Mas foi já em plena ditadura franquista que o contencioso se resolveria. O governo aliciou os estudantes com as promessas de lhes evitar a perda de ano escolar, pressionando indirectamente os pais a tomarem medidas “persuasivas”. Foi assim que numa Academia de pouco mais de mil estudantes universitários os famigerados exames vieram a ser requeridos por oitocentos e oitenta e seis pupilos de Minerva … Ficaram de fora cento e sessenta relutantes, os quais passaram a ostentar com orgulho a designação de “Intransigentes”. Um desses “intransigentes” dava pelo nome de Fernando Baeta Bissaya Barreto Rosa!

Em 26 de Agosto, vogando nas águas turvas de uma ditadura cada vez mais descomposta, o governo franquista substituía as expulsões por “repreensões” e “censuras” e estendia aos “Intransigentes” a admissão a exames. Chegava ao fim a crise académica. Mas estava por resolver a questão do regime, agora cada vez mais à deriva, sob a autoridade instável, nevrótica e imprevidente de João Franco, o delfim e “valido” de D. Carlos de Bragança.

10 de maio de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLIX

XLIX - JOÃO FRANCO E OS "ADIANTAMENTOS À CASA REAL"

O consulado franquista, que conduziu inevitavelmente ao drama do regicídio, desenvolveu-se em duas fases nitidamente diferenciadas: a fase de observância constitucional, entre Maio de 1906 e o mesmo mês de 1907, e a fase assumidamente ditatorial, que irá culminar com o assassinato de D. Carlos e do príncipe real, em 1 de Fevereiro de 1908. Como chefe de um gabinete heterogéneo, João Franco dependia estritamente da continuidade da coligação liberal, isto é, da boa-vontade de José Luciano de Castro. Se este lhe retirasse o patrocínio, o governo perderia as condições de continuidade, uma vez que era o aval do Partido Progressista que lhe conferia o horizonte de futuro. A verdade é que a confiança progressista acompanhou o primeiro desenvolvimento do franquismo, permitindo uma partilha de ministérios entre os seguidores de José Luciano de Castro e os adeptos de João Franco.

Após uma primeira agitação verbal de simples demagogia, argumentando que o país não poderia continuar a ser “ludibriado” pelo rotativismo das formações históricas, João Franco apresentou ao país um simulacro de arrependimento. Viria a declarar, explicitamente, que o seu passado ditatorial tinha sido um erro e que não tencionava reeditá-lo. O que se lhe impunha doravante era “governar à inglesa”, com a instituição parlamentar a exercer a sua acção fiscalizadora e com o contraditório de argumentos que quadravam a uma situação de pluralismo político. Contudo, sob esta farpela de cristão-novo reconvertido à pressa ao credo constitucionalista, aflorava, a espaços, a carranca franzida do antigo estudante coimbrão que esfolava gatos e espavoria caloiros com o cacete despótico da violência gratuita. E era assim que perante o altear das críticas, oriundas sobretudo das fileiras republicanas, este converso liberalizante de fresca data ia rosnando, num discurso feito no seu Centro Marques Leitão, este mimo “pacifista”: “ Os republicanos estão a pedir peixe-espada (ou seja, uma carga de sabre policial) como pão para a boca! ”. Esta flutuação de disposições e cálculos, entre a cruz da brutalidade e a caldeirinha da contemporização, haveria mais tarde de ser caricaturada nos versos com que Luís Galhardo, na revista Ó da guarda, de 1907, o caracterizava, sublinhando-lhe o provinciano sotaque beirão : “Eu xou liberal, eu xou liberal, // E xou casmurro, // Eu xou liberal, eu xou liberal, // Como um burro !”…

As eleições de 19 de Agosto de 1906 levaram à Câmara dos Deputados quatro representantes do Partido Republicano que viriam a demonstrar uma excepcional envergadura tribunícia. Eram eles Afonso Costa, António José de Almeida, Alexandre Braga e João de Meneses. A oposição, no seu todo, era ainda alentada por trinta regeneradores e três dissidentes alpoinistas. Com uma inépcia política verdadeiramente pasmosa, João Franco introduziu na discussão parlamentar um tema incendiário: o dos “adiantamentos à Casa Real”. Tal matéria, jazendo esquecida nos arquivos das memórias históricas, consistia numa prática usual, desde há muito radicada, de serem pedidos pelo monarca e pelos seus familiares directos, aos diversos Ministros da Fazenda, vários reforços de verba para solver compromissos de natureza vária, para os quais a chamada “lista civil” – ou seja, o montante orçamental previsto para as despesas da realeza – se revelava insuficiente. Confessando que havia contas a liquidar entre a Administração da Casa Real e o Estado, João Franco oferecia às oposições, sobretudo à republicana, a oportunidade de ver questionada não apenas a legalidade de tais empréstimos mas até a honorabilidade de quem os solicitava. Era trazer ao terreiro da publicidade e do debate político a própria dignidade do Trono!

Os deputados republicanos não deixaram fugir tão soberana oportunidade. Dois deles, Afonso Costa e Alexandre Braga, foram expulsos da respectiva Câmara devido à dureza das observações produzidas. O primeiro, comparando o colapso da monarquia francesa, iniciado em 1789, com a vaga de descrédito que agora sentenciava o Trono lusitano, atreveu-se a declarar que “por menos do que fez o Senhor D. Carlos, rolou no cadafalso a cabeça de Luís XVI”. Por seu turno, Alexandre Braga ousou declarar, visando a Casa Real, que havia quem recebesse “adiantamentos por debaixo da mão nesta Falperra de manto e coroa”. O Partido Republicano aproveitou o incidente das expulsões para lançar uma campanha sistemática de solidariedade em relação aos correligionários excluídos, a qual não deixou de ser também uma solene advertência contra as arbitrariedades da monarquia.

João Franco cumpria a sina dos homens coléricos que dão de si uma imagem de força concentrada e de arremetida agressiva. Foi esta aparência que lhe foi proporcionando as simpatias de sectores intelectuais relevantes: Ramalho Ortigão e Eugénio de Castro, entre vários outros, depositaram no franquismo esperanças de resgate que não viriam a confirmar-se. Muito mais certeiro era o cantarolar que se ouvira no Porto, cidade de vigorosa tradição liberal, onde soara, em forma de verso de pé quebrado, a condenação implícita assim formulada: João Franco veio ao Porto // De botinhas amarelas; // Vai-te embora , João Franco, // Senão tu ficas sem elas.

4 de maio de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO XLVIII

XLVIII - A TOMADA DO PODER POR JOÃO FRANCO

As relações pessoais entre Hintze Ribeiro, chefe do Partido Regenerador, e José Luciano de Castro, figura maior do Partido Progressista, nunca se elevaram à superação dos pequeninos ódios e das pueris emulações. Se o primeiro não herdara o sólido pragmatismo de Fontes Pereira de Melo, o segundo nada aprendera com a fina complacência de Anselmo Braamcamp. Por outras palavras: ambos se alheavam de passados paradigmas históricos sobre os quais repousara, apesar de tudo, o alicerce sólido de um rotativismo sem grandes sobressaltos. José Luciano sabia, de ciência certa, que ultrajaria intoleravelmente o seu opositor se distinguisse com o menor gesto de boa vontade o rebelde João Franco, trânsfuga do redil regenerador. Por seu turno, Hintze também não ignorava que qualquer patrocínio concedido a Alpoim, desertor do ninho progressista, seria visto como indesculpável pelo alquebrado ancião progressista. A ironia está em que a demolição do edifício monárquico deveu muito menos, nos seus primórdios, à acção revolucionária do republicanismo militante do que ao jogo maldizente, de soalheiro, destas duas comadres desavindas, incapazes de sobrepor os interesses do regime – que diziam servir - à ingénua fogueira das correspondentes provocações subjectivas.

A crise do rotativismo revelar-se-ia, na plena luz das suas contradições, quando os regeneradores liberais de João Franco concluíram com os progressistas de José Luciano de Castro uma concentração liberal contra o gabinete que Hintze formara, em Março de 1906. Não foram necessários dois meses incompletos para que o governo se despenhasse, tendo crescido a exasperação e os desejos de desforra dos regeneradores. Neste hiato temporal insubordinara-se a marinhagem do cruzador D. Carlos e o desgarrado Partido Republicano aproveitara o ensejo para desferir sobre a monarquia cargas cerradas de críticas, em comícios muito concorridos. Também se realizaram, ainda sob o governo dos regeneradores, as eleições de 29 de Abril ou “do Peral”, tristemente famosas pela manipulação que suscitaram. Dera-se o caso de Afonso Costa poder reunir condições de eleição para a Câmara dos Deputados, se as urnas não expressassem uma sólida maioria alternativa. Era um cenário de pesadelo para o poder instalado, dado que aquele candidato concentrava o mais depurado ódio do poder vigente. Para obstar a tamanho risco, o governo ordenou descargas cerradas de votos em Bernardino Machado, também candidato republicano, mas muito mais suportável para as sensibilidades realengas. Porém, Bernardino, que fora considerado eleito, declinou o mandato e denunciou a torpeza da chapelada. A dignidade do gesto calou tão fundo no grémio republicano que o denunciante da manobra teve em Lisboa, na estação do Rossio, uma apoteótica manifestação, a qual lhe foi prestada pelos correligionários, quando aí chegou, a 4 de Maio. Mas essa colectiva demonstração de apreço não se concluiu pacificamente. As forças policiais irromperam na gare e reprimiram com toda a brutalidade os espavoridos manifestantes.

Dois dias depois realizava-se uma tourada no Campo Pequeno. A família real ocupou o seu camarote sem que se tivessem suscitado especiais aplausos. Pelo contrário, o aparecimento de Afonso Costa nessa praça originou uma trovoada entusiástica de palmas e de aclamações. Foi um comportamento colectivo especialmente deprimente para os habitantes do Paço. Não foi, contudo, uma lição bem aprendida. Quase de seguida, D. Carlos recebeu no seu palácio João Franco e com ele conferenciou durante duas horas. Quando Hintze Ribeiro solicitou ao monarca a dissolução da Câmara dos Deputados, condição que considerava imprescindível para continuar a exercer a governação, D. Carlos negou-lha. Argumentou que a opinião pública não aceitaria esse interregno ditatorial e que nenhuma vantagem se alcançaria com o acirrar de novos factores de crispação. Não restava a Hintze outro caminho senão o de pedir a demissão. Depois disso, o rei apressou-se a escrever a João Franco, formulando-lhe o convite para a chefia de um novo governo. Era isto curial? Só o era porque Franco, chefe de um pequeno e frágil partido político recém-formado, se escorava na concentração liberal negociada com o velho José Luciano. Este selara a agonia do modelo rotativo. As dissidências extra-rotativas eram débeis demais para constituírem, por si mesmas, um obstáculo intransponível à normalidade constitucional. Bastava, para tanto, que as chefias tradicionais se decidissem a perpetuar-lhes a marginalidade. Infligindo a Hintze a afronta de se coligar com João Franco, José Luciano não se limitava a homologar uma traição. Introduzia também na racionalidade do sistema um elemento anómalo, quebrando em definitivo a sua lógica bicéfala. O Partido Progressista vingava, com este procedimento, os favores eleitorais que Hintze dispensara ao grupelho de Alpoim. E José Luciano podia agora ter a doce compensação da vingança, enquanto o gato da sua predilecção ia ronronando, em gozo felino, no seu colo e sob o seu afago.