22 de dezembro de 2010

NATAL 2010


Um dia, dois amigos desesperados consideraram gravemente a hipótese de se suicidarem ao mesmo tempo. Tinham reconhecido a inocuidade da vida, a fragilidade do barro humano, a frustração do que ficara por fazer, a debilidade das relações afectivas e a ausência de sentido de tudo o que se pudesse julgar nobre e grande. Porém, antes da consumação desse decisivo e desesperado acto, os dois amigos entenderam que deveriam fazer uma grande viagem pedestre. Era a forma de se despedirem um do outro, marchando, lado a lado, por aquilo que poderia ser visto como um caminho sem fim. Partiram nos fins de um Outubro já frio e deliberaram que o caminho deveria ser feito em linha recta, sem que nenhum olhasse uma só vez para trás, dado que essa concessão poderia obstar ao firme propósito de acabarem com a vida. Tinham ouvido algures que não deveriam preocupar-se com os actos elementares de subsistência, pois as flores do caminho não lavravam e não laboravam e , apesar disso, apresentavam-se mais bem vestidas do que os brocados que teriam coberto a Rainha de Sabá ou Salomão.
No princípio da viagem, um perguntou ao outro de que coisa iria ele sentir mais saudades, depois de se suicidar. E a resposta foi a seguinte: - De uma Mulher fecundada e de um Homem conformado; porque, uma Mulher fecundada é uma promessa de Vida e um Homem conformado é o equivalente a uma brisa que afaga sem maldade e decide sem agressão. Logo a seguir, o caminhante que respondera perguntou ao companheiro que interpelara de que animais iria ele sentir-se mais saudoso no exacto momento que iria anteceder a sua despedida da vida. E ouviu esta resposta : - De uma junta formada por uma vaca e por um boi; porque eles serão um para o outro, no reino da vida irracional, o que uma Mulher fecunda e um Homem conformado são também, quando podem ser, um para o outro. E também um jumento, sem parelha possível. Isto porque um burro, cinzento e sumamente paciente, é o símbolo da dádiva à Mulher fecundada, pois a transporta, e ao Homem conformado, pois o segue obedientemente, sempre que este último lhe puxa a arreata. ~
Depois desta conversa, ambos concluíram que estando a mulher grávida, um menino haveria de nascer. E que estando os animais cansados, um estábulo urgia descobrir. Fez-se então entre os dois um longo silêncio, apenas quebrado pelos passos sincopados com que um e outro pisavam o caminho por onde circulavam, perto de uma localidade chamada Amor, na terra silenciosa da Lusitânia. Foi então que o primeiro disse ao outro : - Se vamos acabar com a vida, ao menos que lancemos um último olhar ao céu, para que os luzeiros insignificantes e trémulos, que nos observam, saibam que cabe na nossa alma muito mais do que uma Mulher fecundada, um Homem paciente e mais uns tantos animais irracionais, que nem por o serem deixam de existir como criaturas. E ambos olharam, então, a cúpula distante e estrelada que pairava, tão longínqua, tão ignorada, por cima das suas cabeças.
Foi nesse preciso instante que se cruzaram com uns pastores ciganos, sem rumo nem porquê, como todos os ciganos do mundo e como todo o mundo dos ciganos. E um deles disse : -“ Olhai, caminheiros, quereis vir ver os nossos reis ciganos? Um chama-se Belchior e é um exímio lançador de facas; o outro, dá pelo nome de Gaspar, e é contorcionista; o último recebeu o nome de Baltazar e tira coelhos de uma cartola preta.” Foram. Ao entrarem na tenda que lhes foi indicada, encontraram lá uma cigana jovem, acabada de parir, com um filho nos braços. E também um ancião de olhar parado e ausente, como se estivesse a mais no enredo. E ainda uma vaca, um boi e um burro, bem como uma chusma de galinhas poedeiras, todas muito acachapadas num molho de palha. Depois de saírem da tenda, os dois homens olharam um para o outro, com perplexidade e enleio. Um deles disse ao outro : - Para que é que nos havemos de matar se neste vasto mundo por onde se perdem e ganham os nossos passos há quem sobreviva rompendo as dores do parto, há quem queira existir para além da própria dúvida da paternidade, há irracionais maltratados, sovados, esqueléticos, que apenas aguardam sem revolta o quinhão das suas rações, há reis imaginários que lançam facas, contorcem músculos e executam actos de prestidigitação? Que teremos nós de tão especial, se as esferas celestes giram e voltam a girar em rotações imperceptíveis e se apenas divisamos, como fenómenos ridiculamente imensos, a convulsão das nossas pequenas almas? Como é possível que nós, tendo decidido seguir em linha recta e sempre em frente, sem olhar para trás, nos queiramos suicidar, e que esta ciganagem esfarrapada, andando sempre às voltas, preserve as ciganas parideiras da sua condição?
Olharam-se, amistosos, e – como se estivessem combinados – passearam o olhar pelas coisas visíveis da terra e pelas coisas apenas pressentidas do céu. Decidiram então pedir asilo e agasalho àquela itinerante comunidade cigana. E ambos passaram a palmilhar, por obrigação de nomadismo, os poeirentos caminhos deste pequeno mundo. Até hoje.

19 de dezembro de 2010

NATAL NA TERRA


O menino que nasceu, envolto em roupa feia

Não trazia um pecúlio, nem sequer uma Ideia.

Filho de prostituta e de um carpinteiro,

Ninguém lhe atribuiria estatuto divino.

Não era mais que aquilo, apenas um menino

Que do mundo colheria o quinhão derradeiro.

A mãe, de vermelho vestida e pouco virtuosa,

Afagava seu filho com ternura mimosa,

Como se nele repousara a salvação do mundo.

E era tudo tão vero, tudo era tão fundo

Que o próprio pai, no seu carpinteirar

Se imaginava autor dessa arte de amar

E simulava esquecer o tempo da prisão

Por crime consciente, delito sem perdão.

E o menino dormia, dormia sossegado

Numa alcofa de vime, em casebre ignorado,

No regaço do tempo em eternal avanço.

A mãe, virgem não era, mas vendo-o tão manso

Julgou poder erguê-lo ao cume do resgate;

E o pai deu-se a pensar não poder ser dislate

Que um malfeitor qualquer pudesse ser autor

Da maravilha dos dias e do calor do amor.

E o menino dormia, dormia descansado

Junto da alcofa um cão, à beirinha dum prado.

E foi assim, só assim, tal qual como é contado

Que homens de carne e osso, mulheres de bem e mal

Reprimindo desgostos … criaram o Natal.

14 de dezembro de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LIX

LIX - D. MANUEL II , O REI BREVE (2)


Com a chegada de Março, o ambiente toldar-se-á. Agora, as questões mais vivamente debatidas irão ser de teor económico. A opinião pública havia sido agitada com notícias, vivamente secundadas por órgãos de imprensa de todas as oposições, segundo as quais estariam a fazer-se abonos ilegais e discriminatórios a certos funcionários, políticos e instituições privadas. Importará recordar que as sucessivas administrações monárquicas tinham sido acusadas, num passado recente, de opacidade na distribuição de verbas e de favorecimentos financeiros ilegais a diversas entidades, entre as quais enfileirava a própria família real. Ainda estava bem viva na memória de todos a questão dos “adiantamentos à casa real”, que originara, no decurso do consulado de João Franco, inacreditáveis tumultos e incendiárias batalhas verbais no interior da Câmara dos Deputados. Também nesta estava agora sob o fogo das críticas o ministro Espregueira, cuja actuação era questionada por muitos e para cujos actos se pediam rigorosos e esclarecedores inquéritos. A maioria parlamentar acorreu prontamente em defesa do ministro, opondo-se a quaisquer inquirições ou demandas. Tudo isto envenenará o relacionamento mútuo dos deputados, fazendo do parlamento uma casa de permanentes tumultos e de reiteradas recriminações. A tensão persistiu até aos últimos dias de Março. No mês seguinte, iria fazer-se mais uma experiência governativa, sendo o poder entregue a Sebastião Teles. Não se tratava de uma escolha feliz. Alguns “marechais” monárquicos, como Júlio de Vilhena – eterno candidato à chefia do Partido Regenerador – , argumentavam que a vontade do rei estava aprisionada, encontrando-se completamente dependente do conselho e da vontade de José Luciano de Castro. E a verdade é que este alquebrado chefe do Partido Progressista se alcandorara ao estatuto de uma verdadeira “eminência parda” do regime. Sobrava-lhe em experiência política o que lhe faltava em clareza de métodos de acção. Como a sua saúde era desde há muito periclitante, impedindo-lhe um protagonismo directo e pessoal, o matreiro José Luciano julgava poder influenciar decisivamente os jogos de poder através de interpostos comparsas. A sua influência não fora estranha, no passado, à corrente de acontecimentos que culminaram nos disparos dos regicidas. Fora ele quem entregara o mando governativo a João Franco, chefe de um insignificante Partido Regenerador Liberal, com quem celebrara uma equívoca aliança política, fundamentalmente destinada a afrontar e desconsiderar o rival Hintze Ribeiro, timoneiro do Partido Regenerador. Fora ainda ele quem negara ao franquismo as condições mínimas de sobrevivência no quadro do constitucionalismo vigente, dando por findo esse pacto quando melhor lhe pareceu e obstando a que João Franco pudesse recompor com credibilidade o seu exausto gabinete. Desta maneira, fora a maquinação política de José Luciano de Castro que atirara João Franco para os braços liberticidas de D. Carlos. A ditadura franquista tivera-os a ambos, rei e valido, como progenitores; mas fora indirectamente apadrinhada por um José Luciano incapaz de prever, qual aprendiz de feiticeiro, o potencial nefasto da sua manobra. Mesmo agora, praticamente imobilizado pela doença e senectude, continuava a mobilizar em proveito da “sua gente” o crédito que lhe outorgavam D. Manuel II e a viúva Dona Amélia. Assim, ao seu palácio da rua dos Navegantes, onde vivia, continuavam a acorrer os maiorais do seu partido, prontos a colher da boca daquele ancião, de manta e gato sobre os joelhos, as directrizes a executar no terreno concreto da luta política. Por isso, todos viram na escolha de Sebastião Teles para a chefia de mais um elenco governativo a mão oculta de José Luciano, convicção reforçada pelo facto de se tratar de um seu amigo indefectível.

Por seu turno, o Partido Republicano, escudado sobretudo na sua vereação lisbonense, continuava a difundir os valores que lhe eram próprios. Foi por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa que se realizou na capital, em meados de Abril, um imponente Congresso Municipalista. Às acusações anti-republicanas que sublinhavam o pendor daquele partido para certa versão de jacobinismo intolerante e de maniqueísmo cego, respondia o município de Lisboa com um evento que bem poderia ser apontado como exemplar, quer na sua explícita mensagem patriótica, quer na sua implícita demonstração de convivência plural.

A 23 de Abril, data em que abriu em Setúbal um importante congresso do Partido Republicano, um violento terramoto abalou o país, afectando especialmente a região ribatejana: Benavente, Samora Correia e Salvaterra de Magos foram lugares especialmente sacrificados, ficando arrasadas sem remédio numerosas edificações. E logo o radicalismo católico mais empedernido veio à liça, para sustentar que entre a convocação da assembleia republicana e a catástrofe natural que derrocara grande parte do Ribatejo subsistia o nexo de uma punição divina, o laço de uma vingança transcendente … Não poderemos saber, pelo menos por enquanto, se Jesus se preocupava assim tanto com a cartilha e com a cartada jacobina do republicanismo português. O que não poderemos negar é a importância das resoluções saídas do Congresso de Setúbal. Chegara a hora de um render da guarda. Os que, como Bernardino Machado, persistiam em considerar vantajosa a adopção de métodos graduais e de meios pedagógicos e eleitoralistas viram-se claramente ultrapassados pelos que defendiam a utilização imediata de dinâmicas revolucionárias. A revolução não era para ser teorizada, discutida e escalpelizada – era para ser feita, no mais curto prazo. É este o significado da eleição de um novo directório sem Bernardino, mas com José Relvas, Basílio Teles, Eusébio Leão, Cupertino Ribeiro e Teófilo Braga. Com excepção deste último, homem de gabinete, estudioso todo recolhido aos labores da sua produção bibliográfica, os demais rendiam culto à acção, ao envolvimento directo, à intrepidez requerida pelos momentos decisivos. O evolver do tempo afinara o tripé revolucionário com que se contava para arrebatar o poder das mãos da dinastia de Bragança: Sebastião de Magalhães Lima garantia a fidelidade maçónica e a retaguarda ideologicamente mais consistente; Machado Santos, Luz Almeida e António Maria da Silva ofereciam a operacionalidade das forças carbonárias, tanto mais temíveis quanto instruídas no culto do messianismo republicano e na disciplina de um verdadeiro exército paralelo e secretíssimo; finalmente, o directório recém-eleito recebia o aval dos que já não toleravam novas dilações.

10 de dezembro de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LVIII

LVIII - D. Manuel II , o Rei Breve

Um rei imberbe, vacilante e tutelado por sua mãe, a rainha-viúva; quatro gabinetes governamentais – os de Campos Henriques (vindo do ano anterior), Sebastião Teles, Venceslau de Lima e Veiga Beirão – que se sucedem de modo pouco pacífico, gerando nos próprios arraiais da monarquia uma tempestade de recriminações, ressentimentos e amarguras; uma oposição republicana que se prepara para todas as eventualidades, pronta a aproveitar as oportunidades que vierem a suscitar-se, de modo espontâneo ou preparado, para desencadear contestações e paradas públicas de força; a Autarquia lisboeta com a presidência entregue, desde Novembro do ano anterior, a Anselmo Braamcamp Freire, um antigo servidor do Paço, que a desilusão atirara para os braços do republicanismo; uma sociedade corroída por suspeições de honorabilidade em relação à gestão das finanças públicas e ao escrúpulo do seu pessoal político; um sector religioso, talvez minoritário mas muito activo, defensor de um catolicismo afectado por princípios radicalmente conservadores e por ânsias de intervencionismo bem distantes do simples “serviço das almas” ; um quotidiano só aparentemente tranquilo, mas na realidade desconfiado da “acalmação” que lhe fora prometida após o rei D. Carlos e o príncipe-herdeiro terem sido assassinados, no pretérito primeiro de Fevereiro do ano de 1908 – eis uma sucinta súmula das notas caracterizadoras do ano de 1909.

Passemos ao detalhe.

Debruçando-se sobre a figura de D. Manuel II nas suas Cartas Políticas, João Chagas declarou, com manifesta crueza, que o monarca o tinha sido quando já não era preciso. Com efeito, o regicídio escrevera o epitáfio da monarquia em Portugal. O que sobejava era uma Corte em estado de descrença, onde apenas a voz do Conde de Arnoso – secundada, no exterior, pela do plebeu Ramalho Ortigão – se elevou para exigir que as responsabilidades homicidas do drama do Terreiro do Paço não ficassem impunes. Porém, é de presumir que o novo rei tivesse sido aconselhado a moderar o seu envolvimento nesta matéria, deixando para o inquérito judicial a imputação definitiva das culpas. D. Manuel II estava manifestamente impreparado para as responsabilidades da alta função em que se viu investido. Não fora educado para tal, e o seu próprio feitio, reservado e fugidio, contrastava em tudo com o mundanismo loquaz e com a fortaleza de convicções de que o seu pai dera provas. Por isso, não surpreende que se tenha entregue à vigilante tutela que lhe foi oferecida por sua mãe, a rainha Dona Amélia. O drama familiar recentemente vivido concorrera, quanto a esta, para fazer compensar a recente viuvez com o enfeudamento recorrente à vivência religiosa. Dona Amélia rodeou-se de directores espirituais jesuítas, dominicanos e lazaristas, tornando também o seu filho excessivamente permeável a tipos de mentalidade em que preponderava a devoção beata. Quando os primeiros revoltosos puderam penetrar nos aposentos privados do rei deposto, após o triunfo da revolução de 5 de Outubro de 1910, foram aí encontrar uma decoração de sacristia, onde abundavam as imagens sacras, as estampas pias, os oratórios, os terços, etc. As restantes individualidades que também o aconselhavam, como José Luciano de Castro, Venceslau de Lima ou o Marquês de Soveral, não souberam ou não quiseram antepor os mais determinantes interesses nacionais às vantagens de casta, de grupo ou de partido.

Logo em Janeiro de 1909, o jornal O Mundo, de marcada orientação republicana, divulgava uma entrevista, concedida por Bernardino Machado (outro trânsfuga das fileiras monárquicas …), onde esta declarava que os erros passados e actuais da monarquia tornavam inevitável a eclosão de manifestações revolucionárias em Portugal. O que tornava tal depoimento especialmente significativo era o facto de Bernardino Machado, professor da Universidade de Coimbra, ser conhecido como um dos mais contemporizadores militantes republicanos. Ele não secundara, num passado não muito distante, a estratégia de ruptura e de imediata confrontação que, após o Ultimato inglês de 1890, fora insistentemente preconizada, nomeadamente, por João Chagas, Alves da Veiga, Felizardo de Lima ou Basílio Teles. Durante anos, o seu discurso irritara visivelmente muitos dos seus correligionários, ao propugnar uma lenta evolução de mentalidades, resultante de uma pedagogia pacífica, persuasiva e demonstrativa da superioridade da república sobre a monarquia. Bernardino Machado não poderia ignorar os avanços que a organização revolucionária fizera desde os tempos rigorosos da ditadura de João Franco. Não lhe eram desconhecidos, sobretudo, os progressos da Carbonária, que se vinha singularizando como o verdadeiro braço armado de uma futura revolução republicana. O lente coimbrão não lhe conhecia detalhadamente todos os meandros. Aliás, nem sequer os bons primos das choças carbonárias entravam na posse de conhecimentos relativos a toda a estrutura organizativa. Só os directores da Alta Venda, como Machado Santos, António Maria da Silva e Luz Almeida, dominavam os segredos desta força armada, deste exército de sombras, que cooptava os seus futuros combatentes com a maior reserva, os vinculava a juramentos iniciáticos e os recrutava sobretudo junto das mais baixas patentes militares. Não será aventuroso sustentar que a entrevista de Bernardino Machado ao jornal O Mundo simbolizava o irreversível reconhecimento do futuro papel das armas, mais do que do raciocínio pedagógico, na mudança iminente das instituições e dos poderes.

Os próprios círculos oficiais não ignoravam totalmente estes aliciamentos, pressentindo que a revolução rondava por perto. Em Lisboa, corria à boca pequena que a propaganda republicana derramava a sua sedução pelo conjunto das forças armadas monárquicas, embora se dissesse que a marinha era deveras permeável ao fascínio do “barrete frígio”. À cautela, António Cabral, ministro da Marinha e Ultramar do gabinete Campos Henriques, que então vigorava, ordenou em Fevereiro à tripulação do cruzador D. Carlos que seguisse para Port-Said, não fosse o diabo tecê-las …

Apesar disto, o mês de Fevereiro de 1909 não se apresentou como especialmente nefasto para as esperanças da monarquia constitucional, caso tal juízo abonatório seja feito apenas a partir da retumbância de certas solenidades exteriores. Foi no decurso deste mês que, irmanados por ideais comuns e por similares imperativos de sobrevivência, D. Manuel II de Portugal e Afonso XIII de Espanha conferenciaram demoradamente em Vila Viçosa. Por outro lado, teria sido com júbilo que se divulgou, na Corte, a notícia de que o ramo miguelista renunciava à sua pretensão de reivindicar a coroa portuguesa. A sucessão de D. Pedro IV passava a deter, de acordo com tal renúncia, o exclusivo da legitimidade dinástica. Foi também por então que se inaugurou em Lisboa o monumento ao marechal Saldanha, esse irrequieto enfant terrible, agora perenizado na estatuária , mas que tantos amargos de boca causara a Dona Maria II e a D. Pedro V.

5 de dezembro de 2010

EPITÁFIO EM MEMÓRIA DE MANSILHA



Transcrevo aqui um dos últimos testemunhos que recolhi de Afonso Ribeiro de Mansilha, ancião de boas letras, que esteve para ser padre, mas acabou por ver recusados os confortos proporcionados aos agonizantes pela Santa Madre Igreja, quando os olhos se lhe fecharam. O Senhor Afonso gozava de má reputação nas redondezas, sendo-lhe imputados vários crimes de sedução e de corrupção da juventude, que nunca chegaram à barra dos tribunais. Aqui fica o traslado fiel que dele pude colher, seis meses e dezoito dias antes de ter aparecido defunto no seu quarto, cercado por incontáveis garrafas de vinho (maduro tinto, do bom, senão mesmo do muito bom, talvez até do excepcional, segundo enólogos capacitados).

Fala Afonso Ribeiro de Mansilha, varão e beberrão:
“Aquilo que mais me agradava era morrer irreversivelmente ébrio, quando chegasse a minha vez. Bem sei que esta confissão deslustra o estatuto que alguns forcejam por me outorgar. Mas – tem paciência! – (dizia ele, fitando-me de través) – tenham todos muita paciência, uma bebedeira magnífica, rente à hora da morte, é a melhor coisa que pode acontecer a um ser humano. Mário de Sá Carneiro, esse magnífico esquizóide, muito preocupado com o facto de ser gordo e duvidosamente sexuado, pedia que batessem em latas, quando se finasse, que rompessem aos saltos e aos pinotes, que fizessem estalar no ar chicotes, que chamassem acrobatas e que o seu caixão fosse sobre um burro ajaezado à andaluza. Tudo volições respeitáveis e sumamente exequíveis, bem sei. Mas eu não peço tanto. Por mim, quererei morrer atulhadinho de vinho maduro tinto, escorrendo-me como um rio pela goela abaixo. Na escolha das castas e dos sumos de uva, eu poderia mandatar alguns amigos do peito, que fizessem por mim o que eu me neguei a fazer por eles, quando, em reiterados carnavais gastronómicos, me furtei ao convite casuístico e honesto : “Mas então não bebemos mais um copo?”. A morte deveria ser o que não é: o gesto final da autenticidade, homérico, no qual os iminentes finados pudessem dizer ao mundo verdades definitivas. Tais como: a) os filhos da puta (por extenso) que tiveram de aturar; b) os amores que ficaram por consumar ; c) as emoções que houveram de suster; d) os vícios ocultos que ficaram no armário; e) as grandezas imensas que lhes sacudiram as almas, sem que ninguém tivesse dado conta de tal ; f, g, h … z) os gritos de confissão e de afirmação que só podem arvorar-se e desarvorar-se com uns litros de excepcional vinho tinto (maduro) no bandulho, na hora em que nos preparamos para entregar às divindades do Olimpo (e de preferência a Diónisos) aqueles restos de “anima” ou de “psyché” que não puderam revelar-se aos “quinzinhos” desta Terra. Está visto! Gostava muito de me finar com um “pifo” imenso. E, já agora, a ler aos repelões, ditados pela convulsividade etílica, os sensatos desejos finais de Mário de Sá Carneiro”.

Afonso Ribeiro de Mansilha, mais conhecido pelo “Vinha-de-Alhos”, deixou inúmeros testemunhos iconoclastas, que eu recolhi contritamente, não porque me revisse na doutrina, mas porque, dado a homenagem que o Vício acaba sempre por prestar à Virtude, me posso assim louvar nas pias advertências das criaturas de bons costumes, que tanto e tão justamente execraram a sua memória e o seu génio.

1 de dezembro de 2010

POR CAMINHOS E CÉUS



Voando assim mansinho

Sob o céu, sobre a casa e rente ao ninho

Assim se vai…

Ai aves minhas de asa larga

Com aromas de erva amarga

E cheiros subtis de rosmaninho

Por entre estevas de perdido caminho

Assim se tem

Cada uma ( e todas)

Como um bem.

Terra minha e dos meus avós

Eu hei-de beijar os nós

Dos trocos ressequidos

E tentar dar-lhes a seiva

Do torrão e da leiva

Olhando sempre os céus

P’ra vos ver renascidos

Quando adeus, adeus , adeus

Um dia vos disser

E bem vos souber ler.