30 de junho de 2008

DIÁRIO DOS ABUTRES


Vem primeiro a notícia do acidente de viação, depois a do contrato milionário do tal jogador de futebol, a seguir a do tufão nos mares asiáticos e a do aluno que bateu no professor e a do afundamento das cotações na Bolsa e mais a da manifestação sindical e a do tigre à solta numa zona rural qualquer (que afinal não era tigre mas antes cão grande) e mais esta, e mais outra e mais aqueloutra, e mais, e mais, e mais.
O mundo é hoje uma orgia de informação : informação áudio-visual, na televisão, informação puramente auditiva, na rádio, informação virtual, via Internet, informação profissional, transmitida pelos nossos colegas de trabalho, informação social, naquele jantar de anos, informação, informação, informação.
Há um dito latino que nos diz que quod abundat non nocet – “o que abunda (ou o que está a mais) não prejudica”. Cremo-lo falso, quase perverso. O que abunda, o que está a mais, trivializa, cria a ilusão do espectáculo sem consequências. Tudo parece valer o mesmo, ou seja, muito pouco. A notícia é hoje mercadoria abundantíssima e, portanto, de baixa cotação. Foi isto que nos roubou, lentamente, a alma. Fizemo-nos máquinas registadoras de cifras e paisagens. Julgámos equivalente à informação meteorológica a comprovação do comportamento crapuloso dos nossos políticos ( que também são uma chuva de nulidades e um tornado de imbecis). Demo-nos a pensar que a informação do excesso de manteiga nos mercados europeus era tão insignificante como a da razia da tuberculose no Corno de África, ou a da malária na África húmida ou a dos bebés que morrem de fome num qualquer lugarejo do mundo que Cristo ignorou.
Acode-nos à mente a fotografia horrenda daquela criança negra, moribunda, a arrastar-se num chão seco, crestado, vigiada de perto por um abutre quase tão grande como ela, passarão ladino, predador, que aguarda, já impaciente, o último estertor da vida para a poder dilacerar, já morta. A criança talvez não soubesse, no exacto instante em que o repórter disparou a sua máquina, que iria morrer logo depois; mas sabia certamente que sofria e que o chão, indiferente à sua dor muda, era o último limite da sua solidão.
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“Bela foto, não é ? Parece que o tipo que a tirou vai ganhar um concurso importante de fotojornalismo”, dizem-me.

Ah, mundo, mundo imundo, mundo-abutre, mundo-pulha, por onde Cristo, Maomé, Buda e Confúcio não deixaram o menor vestígio de passagem …

27 de junho de 2008

PERGUNTEM A MALTHUS

Dizem as previsões demográficas que a população mundial chegará aos dez mil milhões de indivíduos no ano de 2050. E a questão coloca-se: há terra suficiente para tantos seres humanos? A esta pergunta, outras poderão juntar-se: as possibilidades de sobrevivência deste gigantesco formigueiro assegurar-se-ão com o actual sistema de partilha de riquezas? ; o capitalismo puro e duro, tal como o conhecemos, resistirá ao embate deste acréscimo de consumidores potenciais? ; e, a resistir, poderá tal sistema económico salvaguardar os fundamentos da democracia representativa e do individualismo, em que se tem estribado? ; esta imensa legião de estômagos gerará só o caos ou, por mediação dele, contribuirá para a definição de uma nova ordem internacional, nos planos económico, político-social, cultural, ético?; a dignidade do Homem e a integridade da Terra sairão incólumes deste tremendo desafio?
O crescimento da população mundial tem obedecido, desde os meados do século XVIII, às previsões sombrias de Malthus (1766-1834). Advertiu ele que a “lógica da penúria” era irreversível, caso não fossem tomadas medidas drásticas. É que, de acordo com a sua análise, o incremento dos recursos necessários à vida, sobretudo dos nutrientes, encontrava-se subordinado a um ritmo aritmético de progressão (2,4,6,8,10, etc), ao passo que a multiplicação da espécie obedeceria a um ritmo geométrico (2,4,8,16,32, etc). Por isso, Malthus aconselhava que as mulheres se decidissem a casar mais tarde, em idades menos férteis, recomendando ainda as práticas de abstenção ou de neutralização sexuais e até o recurso a fórmulas idênticas às que hoje se agrupam sob a designação de "planeamento familiar". Defendia ainda que as catástrofes naturais, as grandes epidemias e as devastações militares, longe de serem calamidades absolutas, deveriam ser vistas como “males necessários”, introduzindo correctivos moderadores nesta expansão populacional.
As previsões de Malthus foram tidas como excessivamente pessimistas ao longo do século XIX e durante a primeira metade do século XX. No entanto, a China – que irá ser a Super-Potência do futuro (se não o estiver já a ser no presente…) – adoptou sem hesitação uma parte substancial do programa de Malthus. Uma coisa temos como certa: a questão demográfica irá ser, sem receios de contradita, a mais decisiva, a mais estruturadora das realidades e a mais impositiva, no amanhã que se avizinha.

25 de junho de 2008

SOBRE A FEROZ SUBMISSÃO

Queria hoje falar-vos de uma experimentação psicológica singular, a qual provou até que inimagináveis limites de labilidade e de fraqueza pode o bicho-homem chegar, quando se vê confrontado com tudo o que possa simbolizar ou representar a Autoridade. Em que consistiu essa prova singular? Primeiro arranjou-se um grupo de cidadãos de ambos os sexos, com aquela credibilidade que é fornecida por um registo criminal limpo, um emprego estável, uma família “funcional” (mantenhamo-nos fiel à terminologia “técnica”…) e um registo de tributação identificador da classe média. Convenceram depois estes estimáveis exemplares da espécie humana de que iriam colaborar numa prova de transcendente interesse científico. Essa prova consistiria em premir um botão que comandava um conjunto de descargas eléctricas, progressivamente mais fortes, às quais estaria sujeita uma cobaia, também ela humana e sem abominações reconhecidas. Os “electricistas” foram esclarecidos previamente sobre o grau máximo da voltagem a que resistiria o paciente, para além da qual a sua vida entraria em risco. Mais: foi-lhes dito que uma só descarga de potência muito elevada, devidamente assinalada, de resto, no tabuleiro do disparo, seria inexoravelmente fatal. Depois meteram-lhes nas mãos o instrumento de tortura e pediram-lhes (ou ordenaram-lhes?) que obedecessem às instruções de uma voz-off oculta, nos devidos termos em que esse Grande Pai os instruísse. Ninguém, antes da prova se iniciar, questionou a legitimidade dela. Depois, todos cumpriram sem a menor hesitação as voltagens mais baixas. Continuaram a executar as descargas de risco, mas agora chamando a atenção para a possibilidade de colapso do paciente. Irei silenciar piedosamente a percentagem dos que, embora sob protestos e advertências puramente verbais, atingiram a bestialidade da voltagem fatal. Mas poderei assegurar que foram raros, muito raros, os que se negaram a assassinar o semelhante, reagindo com honra e dignidade à intimação de uma voz imperativa, autoritária, sonoramente coactiva. Claro que a aludida experimentação era um “faz-de-contas”. Mas as vozes dos tiranos que mataram por procuração ao longo da História não foram um jogo inofensivo ou uma ilusão. Falam por eles a memória de todos os torcionários e o testemunho de todos os morticínios.

23 de junho de 2008

AS CRIANÇAS

Não é verdade que as crianças sejam imaculadas e incorruptas. Não é verdade que elas correspondam aos paradigmas de inocência com que têm sido desculpabilizadas pelas visões românticas e por todas as mães desvanecidas. Não é verdade que as crianças desconheçam radicalmente a cupidez, a inveja, a hipocrisia, a violência, a crueldade. Mas é verdade que são elas o cadinho de um projecto de Humanidade que tanto poderá pender para o resgate do que temos de mau, no nosso ser mais íntimo, como para a anulação do que poderíamos revelar de bom, conforme o encaminhamento na estrada da vida. É por isso que as crianças são o mais precioso capital de esperança ou a mais nefanda promessa de danação. Está nas mãos dos adultos fazerem delas uma ou outra coisa.

21 de junho de 2008

PASSO A PASSO



Dizem os teóricos do saber antropológico que a imagem do humano foi três vezes humilhada, no arco de tempo que se contém entre a Renascença e o século XX. Primeiramente, teria sido Galileu a retirar o Homem do centro do Universo, ao colocar no eixo do seu sistema do mundo não a terra, mas o sol. Viera depois, bem mais tarde, Charles Darwin, negando-lhe o privilégio da criação divina e convertendo-o numa espécie de primata mais aperfeiçoado. Finalmente, na transição do século XIX para o século XX, as pretensões demonstrativas de Freud roubaram-lhe o orgulho da plena consciência dos seus actos, os quais seriam determinados, em última instância, não pelas directrizes de uma consciência soberana, mas pelas imposições incontroláveis do seu inconsciente dinâmico.
As arrumações do pedagogismo têm destas coisas: criam a ilusão do conhecimento, através do recurso a explicações de fácil digestão. O truque está em se encontrarem meia dúzia de imagens aliciantes, suficientemente coloridas e interiorizáveis sem esforço. Assim se consagra a eternidade de fórmulas ambíguas.
Afinal, falamos do Homem do Renascimento como se este se reduzisse ao escasso punhado de sábios dados às coisas da Astronomia. Pior: como se então estivesse verdadeiramente a nascer o postulado de uma racionalidade demonstrativa e triunfante. Mas não foi na Renascença que mais grassaram os fascínios da demonologia e as falsas promessas da Alquimia, da Cabala e dos mil “saberes subterrâneos”? E teria sido só com Darwin que se estabeleceu o princípio da filiação de todas as organizações vitais, homologação do princípio da unidade da Natureza? O sentimento da afinidade de todas as coisas e da transmutação de umas nas outras não se encontrava já em outros pensadores como em Heraclito ou em Leibniz e na Monadologia deste último? E não é também razoavelmente mítica a tal “descoberta do Insconsciente” por Freud, mesmo na sua dimensão dinâmica? Hegel escreveu as suas mais cintilantes páginas sob a influência do álcool; os românticos franceses da geração pertencente aos ciclos revolucionários de 1830 e 1848 abusaram do absinto e do ópio, justamente por saberem que os letargos alcoólicos e opiáceos lhes favoreciam a criatividade, a partir redutos pré-lógicos ou proto-conscientes. Desconfiemos sempre de reduções explicativas excessivamente peremptórias.

19 de junho de 2008

EXORTAÇÃO REPUBLICANA



O cidadão Licínio Granada, de Tomar, reporta-se à minha carta “A propósito do Centenário da República”, publicada no "Jornal do Fundão", em termos muito cordatos e elogiosos, que lhe agradeço, compondo por sua vez um texto através do qual declara não ir celebrar os próximos cem anos de República porque esta, em seu entender, “está inquinada por uma mácula permanente, qual seja, a de ter sido imposta pela força das armas e não pelo sufrágio popular”. Não tenho a menor intenção de abrir polémica com o meu correligionário Licínio Granada, também ele republicano. Gostaria apenas de tecer, acerca dos seus motivos de desgosto, algumas breves considerações.
A ideia de que toda e qualquer mutação socio-política tenha de ser sufragada, ou seja, sujeita a uma votação formal, é, no meu modesto entender, uma generosa, inviável e nociva ilusão. A ter de ser assim, o regime liberal nunca teria chegado a vingar. É que ele foi imposto, primeiro nos Estados Unidos da América, depois em França e logo a seguir numa grande parte dos países europeus, pela força das armas. Os votos só vieram a seguir. E nem de outro modo poderia ser. O absolutismo monárquico assentava em fundamentos históricos que não se conformavam com o eleitoralismo. Pois se nem sequer havia partidos políticos … É bom também recordar que a monarquia constitucional se impôs em Portugal, fundamentalmente entre 1834 e 1910, como efeito do desenlace de uma longa e cruenta guerra civil, travada entre os adeptos do absolutismo de D. Miguel e os partidários de D. Pedro, antigo Imperador do Brasil, estes últimos apostados em oferecer um trono constitucional à pequena Dª Maria da Glória, filha de D. Pedro. Como se sabe, também a monarquia, quer na sua versão absolutista, quer no seu mote constitucional, não foi legitimada por qualquer sufrágio universal. Nem antes, nem depois de implantada.
A minha honradez intelectual obriga-me a concordar com Licínio Granada num ponto: Portugal não era maioritariamente monárquico em 5 de Outubro de 1910. Era, isso sim, de uma ignorância empedernida e crassa; a taxa de analfabetismo ultrapassaria, segundo alguns historiadores credíveis (Oliveira Marques incluído), mais de oitenta e cinco por cento da população global!!! Era uma formação social que se via à margem do progresso geral do industrialismo europeu. Os campos rebentavam de fome. As cidades, como o registou Ramalho Ortigão (insuspeito monárquico), tresandavam, pois eram fétidas e sujas, por falta de saneamentos básicos e de recolha de lixos. As vias férreas – que na Grã-Bretanha já existiam desde o início do século XVIII e que já eram uma trivialidade na Europa dos primeiros decénios de Oitocentos – só surgiram entre nós em 1856, através de um pindérico troço de 25 quilómetros, inaugurado com pompa e fanfarra por D. Pedro V, entre Lisboa e o Carregado. A própria “democracia monárquica” era um embuste. A Carta Constitucional de 1826 só consignava direitos eleitorais censitários, isto é, só atribuía capacidade eleitoral, direitos de voto, a quem pagasse determinados montantes de imposto, imposto que na época era designado sob o nome de “censo”. Que significa isto? Isto significa que o voto se concentrava nas mãos de meia dúzia de terratenentes e de caciques. Após o Ultimato inglês de 1890, a corrupção financeira e política era verdadeiramente inimaginável. Quando Oliveira Martins foi ministro, no gabinete presidido por Dias Ferreira, fez questão de provar numa sessão histórica, em plena Câmara Legislativa, com documentos na mão, que o antigo ministro Mariano de Carvalho, do Partido Progressista (monárquico) havia roubado quantias vultuosíssimas. E ele replicou mais ou menos assim: “Pois sim. Mas fui a Inglaterra negociar um empréstimo e salvei Portugal da bancarrota”. Pasmoso episódio! E mais pasmosa se torna a credibilidade da Coroa portuguesa se pensarmos que pouco depois da denúncia de Oliveira Martins, não foi Mariano de Carvalho a ser preso, mas o ministro Martins a ser baldeado da sua pasta. É necessário dizer mais alguma coisa? Uma monarquia que chega a estas formas de vilania merece tombar através da indignação das balas.
Poderia aduzir muitas outras razões. Mas não quero cansar os leitores, nem abusar das colunas do prestigioso “Jornal do Fundão”. Exortarei, isso sim, – com a maior deferência e gentileza – o meu correligionário Licínio Granada, também ele republicano, a celebrar, com alegria e sem quaisquer restrições, os nossos cem anos de República.
Viva a República Portuguesa! “Saúde e Fraternidade”!

17 de junho de 2008

UMA EUROPA DOENTE

A Europa perdeu-se de si mesma. É hoje um continente esgotado, envelhecido e subserviente. A Europa trocou o estimulante mundo dos seus valores primitivos – a cogitação criativa da filosofia, de matriz grega, a ponderação dos princípios de equidade, de raiz romana, a forte alegria e exteriorização vital da latinidade – por modelos de vida e de pensamento importados a partir dos Estados Unidos da América. Ao fazê-lo, vendeu a alma. Prostituiu-se. Ninguém poderá esperar hoje desta Europa, vergada a modelos tecnocráticos e a evangelhos grosseiramente utilitaristas, ninguém deverá presumir que dela fluam directrizes de pensamento, escolas estéticas, correntes literárias, propostas musicais, inovações de palco, ousadias de imagem, que foram a sua “marca de água” desde os tempos originários. Ou, se houver de tudo isto um arremedo, um esgar, uma grosseira imitação, de tudo isto se poderá dizer que é o distante clarão de um incêndio pretérito. Com que sonha hoje a média da cidadania europeia “educada”? Sonha com automóveis, com operações especulativas e com hedonismos gástricos. A Europa quer, nos dias de hoje, comer como os americanos, vestir como os americanos, auferir salários “à americana”, viver como lá. Começa-se a falar na necessidade de se equipar militarmente. É a cereja no cimo do bolo: a Europa deseja também matar tão eficaz e discricionariamente como os Estados Unidos da América ! …

15 de junho de 2008

NATURA NATURATA


Às vezes, julgo-me transportado ao ventre da Natureza e imagino-me pertença da sua verdade essencial. Não vou até ela cheio de orgulho em mim, nem sequer dou como certo que nela desempenhe um papel fundamental. Pelo contrário, tenho o pressentimento de ter jorrado a partir dela como coisa muito humilde, como uma espécie de resultado secundário, como resultante, portanto, da íntima e avulsa combinação dos seus elementos básicos. Quando penso nisto que sou, nisto que somos todos, neste Ser-para- a-morte, julgo discernir em tudo o que nos rodeia uma espécie de nexo, de global simpatia, de universal afinidade. Imagino-me a subir, sob a forma de um fumo azulado, à transparência de um céu cheio de sol. E creio que tudo se descompõe e recompõe. As moléculas materiais que me geraram como complexidade, desatam-se de mim e são devolvidas à Natureza na sua mais despojada singularidade. Admito que haja neste meu perceber muito de Darwin. Mas há também muito de S. Francisco de Assis, que em cada madrugada saudava a irmã serpente e exaltava o irmão peixe. Depois, nesse ventre misterioso e fundo da Natureza haverá de recomeçar um processo, (inteligente ou não, casual ou determinista), de parto de novos seres. Gostaria de regressar? Certamente que sim. Não me importaria de vir a ser papoula, em campo onde não pastassem cabras. Talvez possa acabar, num qualquer futuro, na jarra florida de uma camponesa. De acabar? Não. De recomeçar sob a forma de húmus, acolhido e recolhido no ventre materno de onde vim.

12 de junho de 2008

BICHEZAS PEREGRINAS

Era um homem que se tinha dado à tarefa de coleccionar ideias. Mas cedo concluiu que para isso seria necessário abandonar os muros da casa onde vivia. Dentro dela colhera a ideia de um pequeno mundo, por onde passeava um gato siamês, um cão S. Bernardo e uma fiada de formigas, quando se esquecia dos restos do almoço na banca da cozinha. Passou então a percorrer a pé a sua cidade. Dentro dela colheu a ideia de uma pequena comunidade, por onde passeavam ao fim da tarde, junto ao rio, vários pares de namorados, muito enlaçados e a escorrerem ternura, dois varredores de lixo e um polícia. Entendeu então que deveria percorrer o país vizinho de automóvel. Dentro dele foi vendo passar praças de touros, lembranças do Quixote, fiadas de gente atrás de andores, em Semanas Santas roxas de crença, e Plazas Mayores atulhadas de gente e de calor. Colheu ali a ideia da alteridade próxima, ou seja, de algo de muito idêntico à sua cidade, mas tão proximamente idêntico que acabava por ser muito outro. Decidiu então correr o resto do mundo, mas reconheceu que só o poderia fazer de avião, sendo certo que não lhe sobejava o dinheiro para pagar tão distantes viagens. Voltou para casa, desgostoso. Recolheu-se à sua biblioteca e começou a ler. Leu muitas coisas: sobre os atavismos das formigas, os hábitos de higiene dos gatos siameses, as fidelidades pachorrentas dos cães S. Bernardo; leu depois romances românticos, textos sobre ecologia e regulamentos de polícia; nos meses seguintes releu o livro do Ingenioso Hidalgo e o poema de García Lorca “ A las cinco de la tarde/ Ay qué terribles cinco de la tarde!/ Eran las cinco en todos los relojes! / Eran las cinco en sombra de la tarde! ” ; nos anos que se sucederam aprendeu outras línguas ... e continuou a ler. Reconheceu, enfim, que podia coleccionar ideias sem sair de casa. Mas também concluiu, logo depois, que só num qualquer país concreto, à beira de um concreto rio é que os seres humanos se reconhecem como tais, sobretudo por fins de tardes namoradas, cheias de sol, quando é possível fazer correr, como na Bíblia, o leite e o mel da nossa promissão.

11 de junho de 2008

HERESIA Nº 2


Em certas portas, o Deus vingador
Mandou gravar um sinal de salvação.
Isto se passava no Egipto de então,
E a Civilização vivia o seu alvor.

Certa noite, o mesmo Deus soltou
Um vento gélido de maldição,
Contra filhos de outra geração
Que sem mínima clemência devastou.

Tal Deus passou a ser, desde então,
Um Deus ridículo e sem verdade,
Por todos despedido sem saudade
Do preceito moral em gestação.

4 de junho de 2008

HERESIAS

Foi então que ele me disse, num desabafo entre o tédio e a desilusão: - “Pois agora é que eu estava pronto e capaz para fazer de maneira diferente o que fiz de errado há quinze anos”. Quem não ouviu já isto? Pode variar o tema ou a tarefa, pode oscilar o tempo que medeia entre o agora por fazer e o ontem já feito, mas a verdade é que escutamos vozes que dizem, com alguma amargura: - “Agora é que eu estava maduro, preparado, sazonado (para isto ou para aquilo)”. É bom que evitemos este mau hábito. É como se a vida tivesse sido vivida provisoriamente, como se quiséssemos abafar todas as derrotas, superar todos os erros, emendar o caminho já feito. É como se concluíssemos, subitamente doridos e perplexos, que não foi nossa a escolha, nem a vontade, nem o risco, nem a vertigem do viver. Quanto a mim, trilhando como trilhei a estrada do existir, vivi sempre em risco e fui partindo o cristal finíssimo de várias ilusões nas veredas e penedias de pé posto por onde andei. Hoje, olho para trás e digo sempre que valeu a pena. As alegrias e compensações que tive, guardo-as no sacrário da alma e folheio-as de vez em quando, rejuvenescendo rostos antigos de sucesso, de amor, de carinho, de autenticidade. E às tristezas que colhi, às traições de que fui alvo, às maldições que me rogaram, vou sempre conferindo o sentido pedagógico que faz de cada praga uma lição e de cada impropério uma virtual demonstração sobre a verdade do que é capaz a natureza humana. Nunca tive dúvidas sobre o Jano-Homem, com o seu duplo rosto de anjo e de estupor. Aliás, - para que não haja alguma dúvida – eu próprio sou assim. Suspeito até que todos sejamos tais quais, esta mistura exótica, imprevisível, inquietante, de Luz e de Treva. E daqui derivam duas consequências que norteiam o meu proceder. A primeira está no facto de nunca ter amaldiçoado o Diabo, que imagino não ser tão mau como o pintam. A segunda consiste em jamais ter feito de Deus a Suprema Bondade, tendo-o apenas por “bom rapaz”, talvez demasiado atilado para o meu gosto. E, já agora, se quiserem uma terceira consequência, supranumerária, de tudo o que foi dito, então acreditem que eu me esforço sempre muito por não dizer “Hoje é que eu faria bem o que ontem não deu certo”.