31 de outubro de 2009

DE TRANCOSO A S. PEDRO (2ª Parte)



Nos inícios da década de 50, S. Pedra do Sul circunscrevia-se em balizas acanhadas. A vila, pelo menos quanto à sua expressão estética, começava no Mirante, de onde se abrangia, em plenitude, o vale sereno e meigo. Pontificava nesse miradoiro a memória do poeta António Correia de Oliveira, celebrada em azulejos azuis e em fragmentos de versos alusivos: “Olha o Vouga entre verduras // Devagar, devagarinho // Parece que vai pasmado // Por ver tão lindo caminho”.

Cogumelo de casario que depois se alastrava em fiada paralela aos cursos de água, o bairro da Ponte, logo ali, salvaguardava uma distância orgulhosa em relação ao pequeno centro da urbe sampedrense. Era como se lhe pretendesse significar que aos direitos territoriais de pertença autóctone se acrescentavam pergaminhos de epidérmica especificidade, profundados no correr das gerações. Os outros limites definiam-se imediatamente a montante da Câmara Municipal, igualmente nas cercanias da estação ferroviária, servida pelo ronceiro comboio do “vouguinha”, findando o espaço habitado para os lados do largo da escola velha, hoje inexistente, à borda da estrada de saída para as Termas.

Tal como agora, S. Pedra do Sul rescendia aos aromas de nobilitações pretéritas. Certificavam-no os palacetes pré-republicanos dos Palme, dos Reriz e dos Paula, memórias vivas de sociabilidades aristocráticas, evocadoras de visitas régias, como as dos monarcas D. Carlos e D. Amélia, nesse já então distante fim do século oitocentista. Contudo, a pulsação vulgar sampedrense reproduzia o ritmo plebeu do seu pequeno comércio, dos seus serviços administrativos e dos raros operários fabris arregimentados pela indústria de madeiras dos Vieira da Cruz. Os únicos centros de convívio identificaram-se, durante anos a fio, com o Café Edgard, onde se mostrava aos domingos o “fato de ver a Deus”, e com o Clube, mais elitista no seu associativismo restrito. A cadência sonolenta dos afazeres quotidianos só era interrompida pela invasão dos feirantes, uma ou duas vezes por mês. No largo da Câmara estrepitava, então, a vozearia das vendedeiras de potes de barro, dos negociantes de gado, dos mercadores itinerantes de tecidos baratos, de sementes, de hortícolas, de cutelaria, de aprestos agrícolas, numa farândola desregrada de cores e cheiros, de exclamações e invectivas.

Trancoso ia ficando cada vez mais longe. Era um gelo a derreter, sem se deixar olvidar, ao calor de um sol estival que escorria lá de cima, da largueza do céu redondo e lento, glorificado em ocultações crepusculares, em revérberos de azul e em promessas de ouro carminado, quando as últimas radiações esmaeciam, tingindo os contrafortes da serra de S. Macário. Nesse tempo ainda eu não tinha aprendido que tais penedias serranas poderiam ter dado guarida, outrora, a sábios anacoretas, a penitentes frugais, a ascetas aflitos com os pecados e desvarios do mundo. Nesse tempo, o que garantiam os meus condiscípulos do berlinde e da gramática era que, chegado ao cocuruto montanhoso, poderia lobrigar-se, com visão firme e horizonte desimpedido, o topo da portuense Torre dos Clérigos.

26 de outubro de 2009

DE TRANCOSO A S. PEDRO (1ª Parte)



Lembro-me, ainda miúdo, de ter saído de Trancoso como o pássaro de Bernardim: morto de saudades. Um dia, o Pai chegou a casa e disse: “Vamos para uma terra chamada S. Pedro do Sul”. Talvez me tenha metido na cama, invocando o império fingido dum sono invencível para não me verem chorar. Eu podia lá abandonar Trancoso! Esse Trancoso, medieval e muralhado, frigidíssimo e mágico, com estalactites de gelo a escorrer por ramadas tingidas de neve, defendido por portas imponentes e por guaritas de pedra secular, ornado com um pelourinho de recorte gentil, habitado por gentes rudes mas amoráveis e por ciganos vagueantes, montados em cavalos brancos, alados… Esse Trancoso de feirantes e romarias de arredor, fora, para mim, o berço da consciência em formação. Mas era o Pai que dizia “vamos para S. Pedro do Sul” e a voz do bondoso progenitor ecoava sempre, para toda a família, como o decreto do Destino. Fomos.

Era tudo diferente: um clima muito mais ameno, um vale de verduras exuberantes, sem o arrimo de penedias escalavradas, um sol mais petulante, um céu menos cinzento, uma sociabilidade menos perplexa e – a falta que isso me fez! – uma inexplicável ausência de ciganos, vestidos a preceito, montados em cavalos brancos, alados … No princípio, a troca não me pareceu compensatória. Em Trancoso imaginava historietas que me tinham como herói, fábulas consentidas pela proximidade do castelo, mesmo nas traseiras da nossa casa, em protagonismos burilados pelos olhos brilhantes de ciganas novas, de saias compridas e corpetes exóticos, prontas a rezar uma “buena dicha” por dois tostões. Assim, ora me figurava como general guardador de uma utópica torre de menagem, armado com um espadalhão temeroso, feito de toro de couve, ora me considerava um Galaaz de opereta, amado por uma ciganinha de porcelana, contra os desígnios execráveis de um pai-cigano barbudo, mas no fim, contemporizador e complacente, finalmente rendido à minha valentia de soldado de fronteira. Se Trancoso foi o ninho do meu romantismo infantil, S. Pedro do Sul viria a ser o bastião do meu despertar para o mundo das realidades banais. A Mãe nunca mais pôde cobrir de maravilha o meu despertar, porque ficou impedida de me acordar com a cariciosa notícia que tantas vezes lhe ouvi: “Filho, está tudo branco”. Fugira-me a neve. Mas ela transformara-se num rio coleante, bordado de arvoredos em fuste, orlado de sebes tão graciosas como os colos de ciganinhas sonhadas. E a Mãe passou a perguntar: “Então hoje, filho, queres que te arranje os calções de banho para ires ao Lenteiro do Rio?” Também me recordo que uma das minhas primeiras curiosidades, acabado de chegar à escola primária do Professor Abílio Valente Negrão, consistiu em perguntar aos novos condiscípulos o porquê do nome de tal terra. S. Pedro? Está bem, lembra um patriarca de barbas brancas, nevadas, destituído de cortezanias ciganas, é certo, mas de porte respeitável e cenho justiceiro, figura venerável quanto bastava para empurrar, triunfal, a pesada chave da eterna Bem-Aventurança. Mas … do Sul? Um sul no centro-norte? É certo que a dúvida acabrunhante poderia ter sido posta à consideração do sabedor e competentíssimo Professor Valente. Mas isso iria custar-me um preço arrasador – o preço da verdade. E eu já aprendera que a verdade, ainda que necessária à gravidade dos homens ponderados, é sempre prosaica e chã, logo desinteressante e destemperada. Preferi, portanto, a fantasia dos companheiros de classe. E foi assim que pude apurar que uma tal imagem de S. Pedro fora roubada num lugar chamado Sul e posta a vogar no leito remansoso do rio Vouga. À deriva, como a cesta de Moisés-menino, viera depois encalhar na raiz de um amieiro, aí permanecendo até ser descoberta por um piedoso indígena. Desta sorte, era curial que este S. Pedro, que poderia chamar-se do Vouga, tivesse sido baptizado pelo rio, seu padrinho, como S. Pedro do Sul. Não era esta a verdade histórica, documentada, narrada em alfarrábios macilentos e em forais vetustos? Que importava isso? Pois se o Gaidão, o Tomé, o Baptista e o Rocha, “ceboleiros” dos quatro costados, nados e criados nos pegões do Vouga, expertos na pesca à mão ou na caça aos grilos, asseguravam tão espantoso sucesso, quem era eu, recém-chegado e tímido, para deles duvidar? Assim, o Vouga transformou-se, a meus olhos, numa tranquila estrada líquida por onde deslizavam santidades à procura do seu lugar natural. Passou a ser um pequeno Ganges doméstico, ofertando à pequenada, como lugar certo de culto e de lavagem purificadora, a rasura amena do Lenteiro.

21 de outubro de 2009

UM NOVO MOISÉS

Amostra avulsa do novo Monte Sinai

Era uma vez um escritor velho de um país ainda mais velho. E era um bom escritor num país de sol e mar bastante. O dito escritor era comunista dogmático. O país não era tal. Um dia, deram ao escritor um prémio Nobel. E o escritor imaginou-se maior do que o país, porque nele não havia outros prémios Nobel, na sua particular habilidade, além do seu. O escritor quis então submeter o país à sua particular visão do mundo. Como este tivesse resistido, o escritor ameaçou com a abdicação da nacionalidade, apregoando que melhor seria que o país fosse anexado pela nacionalidade vizinha. E como esse país fosse ainda católico, o escritor desatou a invectivar o Deus da crença dominante a torto e a direito. O escritor estava cansado do país; mas – valha a verdade – o país começava a ficar ainda mais cansado do escritor. Daí que, quando ele decidiu ir viver com a mulher estrangeira para uma ilhota qualquer, onde podia à vontade submeter os calhaus à sua soberana vontade e à sua filosofia privada, o país deixou-o ir, sem pestanejar, com um vago sentimento de alívio a vibrar dentro de si. Ninguém lhe implorou para que ficasse, como ele esperava. As velhotas não rasgaram os vestidos e os jovens não representaram aos Poderes Públicos para que o escritor velho ficasse nesse país de sol bastante e mar q.b. … O escritor não disse nada, mas guardou no fundo da sua alma uma cólera muito semelhante à do Deus Iavé, divindade que dizia aborrecer mais do que tudo. Foi então que o escritor tomou a irrevogável decisão de irritar o país todo, sempre que a ele regressasse. E como o iria conseguir? Através do método bíblico: ou seja, mediante a afirmação ribombante, o raio discursivo atroador, as trovoadas do Sinai lógico, por alturas da subida deste novo Moisés ao seu cocuruto. Ora ( “em verdade, em verdade vos digo”) o que o escritor velho mais desejava era trepar ao cimo desse velho país de sol e mar bastante, depois, receber das mãos ossudas e necrófilas da Santíssima Trindade (Marx, Lenine e Estaline) as tábuas da Nova Lei e trazê-las, por entre avés e hossanas, aos gentios relapsos e mansos que mansamente o deviam aguardar. Porém, a História, impassível, iria repetir-se. Descendo das culminâncias do Nobel-Sinai, o escritor velho encontrou toda a matulagem – novos, velhos, burgueses, operários, desempregados e meninas casadoiras – a adorar o Bezerro de Oiro, num verdadeiro chinfrim anti-dialéctico. E o escritor velho regressou, melancólico, aos calhaus rolados da sua inóspita ilhota, onde o aguardava a mulher estrangeira, que lhe sorvia cada palavra como se viesse da boca de Deus-Padre, convertendo em dogma eterno cada uma das suas afirmações. Era lá que o velho escritor melhor se sentia. A vida, assim, valia bem a pena! Mas nem isso o aplacou definitivamente. De si para si, prometeu solenemente: - Eu volto, país maldito! E, para a próxima, levas mais!

16 de outubro de 2009

OLÍMPIA ( OU A VERDADE )


Mais do que a Vénus de Urbino de Ticiano, muito mais do que a Maja Desnuda de Goya, a Olímpia de Manet é o radical e violento desafio que o espírito laico e carnal lançou ao pudor católico e tradicionalista. A tela foi executada entre 1863 e 1865 e nela o pintor rompe estrondosamente com um passado de pequenas vergonhas e de pudorzinhos castamente postiços. A mulher está ali, reclinada como uma odalisca do serralho ocidental, e diz, diz claramente e sem equívocos, que é meretriz. O seu olhar fita-nos, inquire-nos num desafio de provocação desencantada. É como se nos estivesse a interpelar: - “Eu sei quem sou, mas sei muito melhor quem são vocês, homens de respeitabilidade suspensiva. Eu sei que o meu corpo vos incita cobiças inconfessáveis. E conheço – oh, se conheço! – as interdições insuperáveis, as surdas dogmáticas inibitórias, os protestos imaginários a que estais sujeitos, desde os do padre-mestre aos da envergonhada esposa, desde os da Bíblia que nunca foi por vós meditada aos do negócio, que vos exige as aparências da reputação imaculada. Reparai, no entanto, que a vossa verdade virtual está comigo, deita-se aqui, nesta chaise-longue onde desaguam os suspiros que omitis e as impotências que esconjurais”.

Lá fora, no mundo da conveniente mundanidade, estava um Segundo-Império francês ao qual se aplicava, sem remissão, a advertência de Karl Marx. E, também aqui, era como se o teórico do socialismo alemão soprasse ao ouvido de Napoleão III : - “Ouve, trambolho sofredor da próstata, ouve, sobrinho espúrio, dessorado, do Grande Napoleão de Iena e Austerlitz, ouve, cangalho físico do clister, putativo esposo de uma putativa e bela esposa: a História repete-se duas vezes, mas em versões diferentes. A primeira vez em tragédia e a segunda em farsa. Ainda não entendeste que és a farsa?”.

Para além de tudo isto, Olímpia, a meretriz, fita-nos desassombradamente, com a castidade da desilusão. Nos cabelos uma flor, no pulso a jóia de um mais generoso amante, no pescoço um laço de gato ao qual falta chocalho, só porque Olímpia já não necessita de atrair atenções e de dizer: - “Estou aqui!”. Sobra ainda a serviçal negra – mas vestida de branco – com um açafate de flores do último e açodado pretendente. Olímpia nem o olha, nem faz menção de esticar a sua mão cansada, que repousa sobre o triângulo púbico. Olímpia limita-se a estar ali, recostada no farto e alvo travesseiro, que talvez lhe venha sussurrar, nos raros momentos de solidão: - “Esta é a natureza humana. Humana e livre, livre e humana. A única liberdade possível é a do instinto. Entendeis? Tudo o mais é quebradiça convenção”.

12 de outubro de 2009

MASACCIO OU A MINHA REVOLTA

Passei hoje pela pintura de Masaccio, Adão e Eva expulsos do Paraíso, um fresco do século XV (1426-1428), existente na capela Brancacci, de Florença. Um anjo avermelhado e vingador plana sobre as cabeças dos condenados pais da Humanidade. A espada que ostenta na mão direita é o símbolo do implacável veredicto divino, reforçado pelo gesto da mão esquerda, que lhes aponta o caminho sem retorno para o mundo agreste e bem diferente do Jardim paradisíaco das Delícias. Nu e atormentado caminha o Homem, de cabeça apoiada nas mãos e sexo pendente, encolhido (antes do restauro deste fresco o pudor eclesiástico tapara com uma pudica folha o membro viril deste ser danado); nua e vexada segue a Mulher, com a face voltada para os céus indiferentes, a boca escancarada e as mãos protegendo seios e vergonhas de entre pernas.

Confesso nunca ter entendido a noção de pecado original. Nunca! Nem sequer nos momentos mágicos, mais queridos do que quaisquer outros, coincidentes com a voz de veludo da Senhora minha Mãe – a única Madona da minha pintura de alma – explicando-me incansavelmente que Adão e Eva tinham desobedecido ao Senhor das Trombetas, do Infinito e das Tempestades e que, por tal facto, seriam doravante obrigados a gerar na dor a descendência e a regar a terra avara com o suor do rosto. Era um Senhor tirânico, este Deus. “Mas o que é que eles fizeram?”, perguntava a minha inocência aflita. E a Mãe – não a do Céu, mas a minha … - incansavelmente, explicava: “ Foram tentados pela serpente e, contra as ordens do Senhor, comeram a maçã da Árvore Proibida”. E eu repontava: “Mas diz-me, diz-me Mãe, não foi o Senhor que criou a serpente? Não foi Ele que plantou ou mandou plantar no Paraíso a Árvore Proibida? E não foi Ele a oferecer a Adão a sua tentadora companheira?”. Lembro-me que a única Senhora dos meus dias mortais suspirava, ou sorria timidamente, como se estivesse a pedir desculpa ao Altíssimo por ter parido esta dúvida em embrião. E, acariciando-me os cabelos, declarava com doçura tranquila: “Meu filho, ainda és muito pequenino. Há coisas que não podes entender. Verás que quando cresceres, tudo será mais simples, mais explicável”. E então eu sossegava, não porque tivesse varrido a fuligem do entendimento mas porque os dedos lentos da minha Mãe, movendo-se nos meus cabelos crespos, me diziam que o Paraíso estava ali, à beira dela, e que tudo se explicava pelo sentimento mútuo da carinhosa dádiva.

Hoje encontro novamente este Deus potente e o seu Anjo vermelho. E, recordando a suavíssima palavra da minha Mãe, digo muito baixo, para que ninguém me ouça: “Que Deus é este, que justiceira Potestade é esta, que nada explica, tudo esconde e leva para longe aqueles que amamos sobre todas as coisas?”

8 de outubro de 2009

DÚVIDAS DE CRONOLOGIA


O Diário do Minho, na sua edição de 8 de Outubro de 2009, divulga um livro do Senhor Cónego João Seabra, intitulado “O Estado e a Igreja em Portugal no início do Século XX. A Lei de Separação de 1911”, que reproduz, talvez mais condensadamente, a tese de doutoramento defendida pelo seu Autor em Janeiro de 2008, na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma. O Senhor Cónego não é um qualquer vulto ignaro, bisonho e anónimo. É licenciado em Direito, pároco da Encarnação (no Chiado de Lisboa), Promotor de Justiça e Promotor do Vínculo do Tribunal Patriarcal de Lisboa, além de Assistente Diocesano do movimento religioso “Comunhão e Libertação”. A propósito do seu livro, o Diário do Minho titula que “Bispos e Clero foram precursores da separação Igreja-Estado”. E porquê ? – pergunta a nossa espessa ignorância. O jornal explica: “Na tese recorda que foi o próprio Arcebispo de Évora da altura, D. Augusto Eduardo Nunes, quem manifestou a Teófilo Braga e a Afonso Costa, seus colegas estudantes em Coimbra, abertura da Igreja para rever o estatuto de que gozava na Monarquia e “que não se podia manter”. Confesso que desconhecia completamente que o estudante Augusto Eduardo Nunes, mais tarde Arcebispo de Évora, tivesse sido colega de Teófilo Braga e de Afonso Costa.

Teófilo Braga iniciou o seu curso na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vindo da sua ilha açoriana de S. Miguel, no ano lectivo de 1862-1863. Concluiu o 5º ano em 1867 e, tendo sido estudante aplicado, foi convidado a doutorar-se, pelo que se matriculou no 6º ano em Outubro de 1867, defendendo com êxito a sua tese em Julho de 1868. Como entretanto se casara, nesse mesmo ano de 1868 foi para o Porto, aí tendo vivido, na casa dos sogros, com a sua Mulher. Em 1872 concorreu com êxito à cadeira de Línguas e Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras e transferiu o seu domicílio para Lisboa.

Por outro lado, houve um Costa a formar-se em Direito em Coimbra em 1868. Mas não era o Afonso Costa da famosa “Lei da Separação” (1). Era antes o seu progenitor, Sebastião Fernandes da Costa. O Afonso Costa colega do mui distinto Arcebispo de Évora abria os olhos ao mundo pouco antes da mudança de Teófilo Braga para a capital. É que nasceu em Março de 1871. E, apesar de muito dotado, o futuro legislador republicano só se inscreveu no 1º ano da Faculdade de Direito no ano lectivo de 1887-1888, tendo concluído a sua licenciatura em 17 de Janeiro de 1895. Ou seja: é uma completa impossibilidade cronológica que Teófilo Braga tenha sido colega de Afonso Costa nos estudos jurídicos da cidade do Mondego.

Porém, já é absolutamente crível que o aluno Augusto Eduardo Nunes tenha sido colega dos dois. Mas, neste caso, tê-lo-ia sido em momentos diferentes. E isso poderia ter acontecido se o futuro Arcebispo tivesse frequentado as aulas entre os princípios dos anos 60 e os meados dos anos 90 do século XIX. E aqui, de duas uma: ou o aluno em causa era muito enfermiço, tendo interrompido constantemente os estudos para tratar das suas doenças, ou era cábula e “renitente de cabeça”. Inclinamo-nos para a primeira hipótese, pela muita consideração intelectual que nos merece a Igreja Católica Portuguesa.

Claro que o Senhor Cónego João Seabra nos irá explicar detalhadamente tudo isto. Ficamos a aguardar , com ansiedade, o imperioso e imperativo esclarecimento.

(1) - Fiz correcção desta passagem do texto no dia 10 de Outubro, após ter recebido do meu fraterno Amigo Doutor Bigotte Chorão a indicação do nome próprio do pai de Afonso Costa, o qual não dava pelo mesmo nome do seu filho, mas sim pelo de Sebastião.

6 de outubro de 2009

COIMBRA E A REPÚBLICA

A capa da revista Alma Nacional, dirigida por António José de Almeida, foi desenhada por António Augusto Gonçalves, nome memorável do republicanismo conimbricense. O texto que se segue foi propositadamente redigido para ser dito, como realmente foi, no Sarau Comemorativo dos 99 anos da implantação da República, o qual decorreu ontem, 5 de Outubro, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra.


Coimbra já foi Cidade. Sim, Cidade com maiúscula. No tempo das invasões francesas constituíram-se batalhões académicos para derrotar os invasores. E Coimbra deu à sorte das armas o que havia de melhor na sua Academia. Coimbra, aí, foi Cidade, Cidade grande, não acham? Julgavam-na a dormir, encostada à colina sagrada, toda espreguiçada nas vertentes coroadas pela torre do antigo Paço Real, aquele Paço que depois foi Universidade? Julgavam-na distraída, toda a cismar, olhando o Mondego como uma sonâmbula? Pois enganaram-se! Coimbra deu o melhor da sua juventude para combater os franceses. A Coimbra foi então Cidade com maiúscula, sim! Mais tarde, quando foi preciso travar o absolutismo de D. Miguel e proteger o liberalismo de D. Pedro, Coimbra voltou a vestir farda e a dizer que queria ser livre, para poder continuar a ser bela. Depois, esse mesmo liberalismo envelheceu. Tornou-se assenhorado, todo salamaleques, a beberricar chá e a comer bolinhos em salões da aristocracia, a ouvir versos sem sal e a fazer vénias palacianas. Era no tempo em que Garrett dizia: “Foge cão, que te fazem barão. Mas para onde, se me fazem visconde?”. Que gente aquela, que mundo aquele! Eu cá, meus Senhores e minhas Senhoras, que tenho costela futrica, eu que ainda fui de uma cidade onde existia uma ponte de pedra tão estreitinha que lhe foi preciso fazer um Ó numa ponta para se cruzarem duas carroças, eu cá, digo-vos em segredo, não gostava daquilo. E comecei por apreciar o Senhor D. António Alves Martins, o bispo de Viseu, que garantia que a religião se queria como o sal na comida, nem muita, nem pouca. Tempos depois, começou a falar-se em República em Coimbra. Era quase proibido, vejam bem. Como se fosse maleita grave gostarmos das coisas públicas – escolas, hospitais, creches, meios de transporte, monumentos, ruas, tudo isto bem nosso, porque tinha sido pago com o nosso dinheirinho. Ali entre 1878 e 1880 já em noites silenciosas se ouvia gritar, fora de horas, para que os polícias não viessem chatear: “Viva a República!”. Essas vozes tanto podiam partir do Penedo da Saudade como do ermo do Calhabé ou do Terreiro da Erva. “Viva a República!”. Umas vezes havia resposta igual, outras um silêncio. Mas era como se estivessem a escrever-se mensagens de fogo no ar. E Coimbra, fosse ela estudante ou fosse futrica, sabia que pela República respondiam pessoas de bem. Lembram-se de António Augusto Gonçalves, de Manuel Augusto Rodrigues da Silva, de Abílio Roque de Sá Barreto? Gente honrada, gente de qualidade, gente republicana. Quem sabe se numa dessas noites de silêncio e de prata no céu, não teria sido um deles a responder à voz de “Viva a República” com outro “Viva a República”? E lembram-se do professor universitário Manuel Emídio Garcia? Esse quase que meteu o ensino republicano dentro das aulas de Direito da Universidade. Um escândalo? Talvez! Mas um escândalo feito em boa hora. E recordam-se do grande José Falcão? Esse viu o seu lugar de lente por um fio, quando escreveu um folheto a favor dos revolucionários da Comuna de Paris. E também o quiseram expulsar quando desconfiaram que era dele a Cartilha do Povo, onde se ensinava que a vida dos homens, fossem pobres ou ricos, era para ser vivida de pé, sem ter que se rastejar perante esta ou aquela autoridade. É que a Pátria somos nós todos, não é assim? Pode lá ser de outra maneira… E quando os republicanos do Norte fizeram no Porto a revolta de 31 de Janeiro de 1891? Apanharam Coimbra a dormir? Mais uma vez, não. Dois jovens estudantes, que já tinham protestado por ocasião do Ultimato, prepararam as coisas com José Falcão para que este tomasse conta do poder civil de Coimbra, se o Porto fizesse a República. Querem saber como se chamavam? O estudantinho de Medicina dava pelo nome de António José de Almeida; o de Direito era o Afonso Costa. Havia um grupo de gente decidida a atacar o Quartel da rua da Sofia, se as coisas corressem bem no Porto. Correram mal? Pois correram. Mas julgam que Coimbra ficou a dormir? Era o que faltava! Coimbra fez a greve académica de 1907 contra o ditador João Franco. Nem valerá a pena contar tudo por trocados. E as resistências contra o Estado Novo? E a campanha do General Humberto Delgado? E as greves de 1962 e de 1969? Coimbra já foi e continua hoje a ser Cidade. Cidade com letra maiúscula. Cidade com gente limpa, honrada e republicana a fervilhar nas suas praças e ruas, a admirar os seus monumentos, a andar nos seus transportes, a estudar nas suas escolas, a defender as suas coisas públicas – que o mesmo é dizer : a preservar a sua República. E quando hoje, de Celas ou do Choupal, de Santo António dos Olivais ou dos Arcos do Jardim, por uma noite de silêncio prateado, alguém gritar “Viva a República”, tenham a certeza, Senhoras e Senhores, que uma Cidade, quase em peso, responderá: “Viva! Para sempre, Viva a República!”

2 de outubro de 2009

VARIAÇÕES SOBRE O ROSTO

- “Não vou com a tua cara”, disse-lhe ela. Esta frase continha, sem que ela o soubesse, toda uma tradição cultural, multissecular e perturbadora. É certo que nos é permitido invocar a advertência dirigida por Jesus Cristo a S. João, intimando-o a não julgar segundo o rosto. A verdade, porém, é que muito antes do nascimento do rabi da Galileia se organizavam tábuas empíricas de interpretação do rosto. Era como se este fosse o espelho mágico e enigmático de profecias temperamentais e de pendores de carácter. A cara, que os primitivos sabiam nunca poder ver directamente, que só se divisava pelo reflexo em águas paradas de regatos ou em lâminas líquidas de poças de chuva, esse rosto era, verdadeiramente, a revelação da pessoa. Por isso, ele encontrava-se de tal forma identificado com o mais fundo e radical de cada um, que todos o tratavam com reverência sacral. Ainda hoje, em certas comunidades primitivas, é forte injúria tentar retratar a face de alguém. É como se o fotógrafo estivesse a cometer uma profanação, um roubo à falsa fé, uma espoliação imperdoável. O período da Renascença foi especialmente permeável a certas “gnoses” interpretativas baseadas em indícios, em sinais, em augúrios. Apesar do seu pendor experimental e científico, o próprio Leonardo da Vinci foi ao ponto de proferir afirmações como estas: “Os que têm linhas muito acentuadas entre as sobrancelhas são irascíveis”; “Os que têm muito marcadas as linhas transversais da fronte são homens que não param de se lamentar, em público ou em privado”. Esta tradição, que remonta a textos aristotélicos autênticos e a outros que lhes são falsamente atribuídos, irá combinar os signos astrológicos, com a quiromancia e com análises exaustivas feitas à forma do nariz, à implantação das orelhas, ao volume das bochechas, à carnação dos lábios, à vastidão ou exiguidade da testa, ao volume e textura dos cabelos, etc. Na transição do século XVI para o século XVII, iremos encontrar a obra perturbante de Giambattista Porta, que no seu livro Da Humana Fisiognomonia, tentará abordagens de comparação sistemática entre as semelhanças dos traços humanos e dos focinhos animais, procurando descortinar nuns e noutros afinidades de carácter. Isto chegou até nós, em juízos zoológicos insistentemente invocados: “Ele é forte como um touro, manhoso como uma raposa, valente como um leão”. No século XVIII aparecerá a obra do monge suíço Johann Kaspar Lavater, com um estudo exaustivo da diversidade de perfis humanos, indagação que vinha animada de propósitos de diagnóstico científico. Ir do traço fisionómico à verdade mais funda do carácter, do sinal à intimidade do eu, nisto consistiu a questão que tanto entusiasmou certos círculos culturais europeus. Depois viria Gall e a sua frenologia ou craneoscopia, procurando retirar ilações do estudo das bossas cranianas. E, em pleno século XIX, os estudos de Lombroso levantavam a dúvida sobre se haveria um rosto típico dos criminosos natos.

“Não vou com a tua cara”. Uma simples frase pode conter um mundo de implicações; sem que, na maior parte dos casos, o autor do juízo se dê conta do mundo simbólico que lhe subjaz.