16 de outubro de 2009

OLÍMPIA ( OU A VERDADE )


Mais do que a Vénus de Urbino de Ticiano, muito mais do que a Maja Desnuda de Goya, a Olímpia de Manet é o radical e violento desafio que o espírito laico e carnal lançou ao pudor católico e tradicionalista. A tela foi executada entre 1863 e 1865 e nela o pintor rompe estrondosamente com um passado de pequenas vergonhas e de pudorzinhos castamente postiços. A mulher está ali, reclinada como uma odalisca do serralho ocidental, e diz, diz claramente e sem equívocos, que é meretriz. O seu olhar fita-nos, inquire-nos num desafio de provocação desencantada. É como se nos estivesse a interpelar: - “Eu sei quem sou, mas sei muito melhor quem são vocês, homens de respeitabilidade suspensiva. Eu sei que o meu corpo vos incita cobiças inconfessáveis. E conheço – oh, se conheço! – as interdições insuperáveis, as surdas dogmáticas inibitórias, os protestos imaginários a que estais sujeitos, desde os do padre-mestre aos da envergonhada esposa, desde os da Bíblia que nunca foi por vós meditada aos do negócio, que vos exige as aparências da reputação imaculada. Reparai, no entanto, que a vossa verdade virtual está comigo, deita-se aqui, nesta chaise-longue onde desaguam os suspiros que omitis e as impotências que esconjurais”.

Lá fora, no mundo da conveniente mundanidade, estava um Segundo-Império francês ao qual se aplicava, sem remissão, a advertência de Karl Marx. E, também aqui, era como se o teórico do socialismo alemão soprasse ao ouvido de Napoleão III : - “Ouve, trambolho sofredor da próstata, ouve, sobrinho espúrio, dessorado, do Grande Napoleão de Iena e Austerlitz, ouve, cangalho físico do clister, putativo esposo de uma putativa e bela esposa: a História repete-se duas vezes, mas em versões diferentes. A primeira vez em tragédia e a segunda em farsa. Ainda não entendeste que és a farsa?”.

Para além de tudo isto, Olímpia, a meretriz, fita-nos desassombradamente, com a castidade da desilusão. Nos cabelos uma flor, no pulso a jóia de um mais generoso amante, no pescoço um laço de gato ao qual falta chocalho, só porque Olímpia já não necessita de atrair atenções e de dizer: - “Estou aqui!”. Sobra ainda a serviçal negra – mas vestida de branco – com um açafate de flores do último e açodado pretendente. Olímpia nem o olha, nem faz menção de esticar a sua mão cansada, que repousa sobre o triângulo púbico. Olímpia limita-se a estar ali, recostada no farto e alvo travesseiro, que talvez lhe venha sussurrar, nos raros momentos de solidão: - “Esta é a natureza humana. Humana e livre, livre e humana. A única liberdade possível é a do instinto. Entendeis? Tudo o mais é quebradiça convenção”.

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