26 de outubro de 2009

DE TRANCOSO A S. PEDRO (1ª Parte)



Lembro-me, ainda miúdo, de ter saído de Trancoso como o pássaro de Bernardim: morto de saudades. Um dia, o Pai chegou a casa e disse: “Vamos para uma terra chamada S. Pedro do Sul”. Talvez me tenha metido na cama, invocando o império fingido dum sono invencível para não me verem chorar. Eu podia lá abandonar Trancoso! Esse Trancoso, medieval e muralhado, frigidíssimo e mágico, com estalactites de gelo a escorrer por ramadas tingidas de neve, defendido por portas imponentes e por guaritas de pedra secular, ornado com um pelourinho de recorte gentil, habitado por gentes rudes mas amoráveis e por ciganos vagueantes, montados em cavalos brancos, alados… Esse Trancoso de feirantes e romarias de arredor, fora, para mim, o berço da consciência em formação. Mas era o Pai que dizia “vamos para S. Pedro do Sul” e a voz do bondoso progenitor ecoava sempre, para toda a família, como o decreto do Destino. Fomos.

Era tudo diferente: um clima muito mais ameno, um vale de verduras exuberantes, sem o arrimo de penedias escalavradas, um sol mais petulante, um céu menos cinzento, uma sociabilidade menos perplexa e – a falta que isso me fez! – uma inexplicável ausência de ciganos, vestidos a preceito, montados em cavalos brancos, alados … No princípio, a troca não me pareceu compensatória. Em Trancoso imaginava historietas que me tinham como herói, fábulas consentidas pela proximidade do castelo, mesmo nas traseiras da nossa casa, em protagonismos burilados pelos olhos brilhantes de ciganas novas, de saias compridas e corpetes exóticos, prontas a rezar uma “buena dicha” por dois tostões. Assim, ora me figurava como general guardador de uma utópica torre de menagem, armado com um espadalhão temeroso, feito de toro de couve, ora me considerava um Galaaz de opereta, amado por uma ciganinha de porcelana, contra os desígnios execráveis de um pai-cigano barbudo, mas no fim, contemporizador e complacente, finalmente rendido à minha valentia de soldado de fronteira. Se Trancoso foi o ninho do meu romantismo infantil, S. Pedro do Sul viria a ser o bastião do meu despertar para o mundo das realidades banais. A Mãe nunca mais pôde cobrir de maravilha o meu despertar, porque ficou impedida de me acordar com a cariciosa notícia que tantas vezes lhe ouvi: “Filho, está tudo branco”. Fugira-me a neve. Mas ela transformara-se num rio coleante, bordado de arvoredos em fuste, orlado de sebes tão graciosas como os colos de ciganinhas sonhadas. E a Mãe passou a perguntar: “Então hoje, filho, queres que te arranje os calções de banho para ires ao Lenteiro do Rio?” Também me recordo que uma das minhas primeiras curiosidades, acabado de chegar à escola primária do Professor Abílio Valente Negrão, consistiu em perguntar aos novos condiscípulos o porquê do nome de tal terra. S. Pedro? Está bem, lembra um patriarca de barbas brancas, nevadas, destituído de cortezanias ciganas, é certo, mas de porte respeitável e cenho justiceiro, figura venerável quanto bastava para empurrar, triunfal, a pesada chave da eterna Bem-Aventurança. Mas … do Sul? Um sul no centro-norte? É certo que a dúvida acabrunhante poderia ter sido posta à consideração do sabedor e competentíssimo Professor Valente. Mas isso iria custar-me um preço arrasador – o preço da verdade. E eu já aprendera que a verdade, ainda que necessária à gravidade dos homens ponderados, é sempre prosaica e chã, logo desinteressante e destemperada. Preferi, portanto, a fantasia dos companheiros de classe. E foi assim que pude apurar que uma tal imagem de S. Pedro fora roubada num lugar chamado Sul e posta a vogar no leito remansoso do rio Vouga. À deriva, como a cesta de Moisés-menino, viera depois encalhar na raiz de um amieiro, aí permanecendo até ser descoberta por um piedoso indígena. Desta sorte, era curial que este S. Pedro, que poderia chamar-se do Vouga, tivesse sido baptizado pelo rio, seu padrinho, como S. Pedro do Sul. Não era esta a verdade histórica, documentada, narrada em alfarrábios macilentos e em forais vetustos? Que importava isso? Pois se o Gaidão, o Tomé, o Baptista e o Rocha, “ceboleiros” dos quatro costados, nados e criados nos pegões do Vouga, expertos na pesca à mão ou na caça aos grilos, asseguravam tão espantoso sucesso, quem era eu, recém-chegado e tímido, para deles duvidar? Assim, o Vouga transformou-se, a meus olhos, numa tranquila estrada líquida por onde deslizavam santidades à procura do seu lugar natural. Passou a ser um pequeno Ganges doméstico, ofertando à pequenada, como lugar certo de culto e de lavagem purificadora, a rasura amena do Lenteiro.

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