30 de janeiro de 2012

AMANHÃ




VIVA A REPÚBLICA !

A GAZELA E O LEÃO




Na paisagem,
A gazela é a aragem
E o leão perseguidor
A dor
Que fica numa artéria
Mortal.
É coisa muito séria
Ser gazela
Perseguida
Como aquela
Que sente a vibração
Contida
Na pata implacável
Do leão.
É como se a vida
Estivesse toda resumida
Nessa perseguição.
É a gazela como a seta
Dum arco retesado
Assim lançado
Em busca da meta
Da final salvação.
Mas o leão salta valados
Solta rugidos
E arfa numa passada
Larga e refinada
Também ela volátil
Também ela vibrátil
A comer espaços
A sondar laços
Iminentes
Exigentes
Da sua refeição.
A gazela transpira
Resfolga e suspira
Buscando exausta
Sorte menos infausta.
Tudo será mais rápido
No fim.
Gazela morta
Assim
Como nós o seremos
No dia em que sejamos
Presas esgotadas.
A morte é apenas a solidez
Do músculo contumaz
Dum leão à procura
Na lonjura da vida
Duma gazela ferida.

26 de janeiro de 2012

O FERIADO DO 5 DE OUTUBRO E O SILVA-JOURDAIN



Parece que o Governo insiste no propósito de liquidar o feriado de 5 de Outubro, no dia que lhe quadra pelo calendário, argumentando que ele pode ser comemorado no domingo seguinte. Que este Governo insista nesta miserável proposta, não é, para nós, motivo de espanto. Quem nos governa é um pobre e descerebrado bando de apátridas, um rebanho tecnocrata e inculto de boçais, um coio de gentalha que nada sabe do País, da sua História, das suas raízes, da sua Verdade essencial e da sua matriz eterna. Por aqui, portanto, nada de novo. Mas o Governo não pode, só por si, levar por diante o seu projecto antipatriótico sem o aval da Presidência da República. O titular desta Suprema Magistratura terá de a confirmar, referendando o dislate governamental. E é aqui que a cena anima. Porquê ? Porque será uma singularidade digna de Molière espreitarmos o actual ocupante do Palácio de Belém no seu miserável acto de referenda. Este PR e todos os demais só ocupam o cargo, só são Presidentes da República, só detêm em si a sacralidade simbólica da suprema representação de Portugal porque , num certo 5 de Outubro de 1910, houve quem se tivesse batido de armas na mão, houve quem tivesse arriscado a vida, a fazenda e a liberdade, para que as Instituições pudessem mudar, dando origem às que hoje se encontram em vigência. Pelo que sabemos do Silva, temos como certo que ele nem pestanejará na concessão da sua concordância. Era exigir-lhe demais, se lhe fosse solicitado um acto de nobreza. Era uma demasia para a sua vileza endógena, para a reles liga somática e anímica de que é feito. Assim, aguardaremos sem expectativa mas com memória justiceira o dia em que o Silva, renegando o património de Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Bernardino Machado, Canto e Castro, Manuel Teixeira Gomes, Mário Soares, Jorge Sampaio e outros (para quem quiser outros evocar), o dia, dizíamos em que o pedinte (é-o, sem dúvida) de Belém, pagar ao Coelho e ao seu Governo o tributo da indignidade, fazendo-lhe a vontade. Não foi por acaso que evocámos Molière. É que foi ele que, através da figura imortal de Monsieur Jourdain, colocou no palco um ser humano que "fazia prosa sem dar por isso". O Silva, no dia em que empunhar a sua canetinha para "fazer o frete" ao Coelho, colocar-se-á exactamente na posição homóloga à de Monsieur Jourdain. Ele será então, de acordo com a sua vocação de sempre, Presidente da República ... sem dar por isso.

22 de janeiro de 2012

AS COISAS E O SEU REFLEXO



Um pássaro repousa no ramo duma árvore
Nua
Junto dum lago tranquilo a ladear
A rua.
E quando a luz
Da lua
Reflecte a árvore no lago
Por noites de macios
Cios
De delicado afago,
O pássaro, se ainda lá estiver,
Por muito que não queira ou que não deixe,
Transforma-se num peixe.
E então
Aquela árvore
Tão nua
Que assim ficava absorta
Junta daquela rua
Converte-se em retorta
De coisa bem viva, jamais morta;
Operando equivalências
De formas singulares
Em súbitas latências,
Inventados lugares.
E a noite chega, tranquila e mansa
Como se fora trança
De menina
Muito loira e pequenina
E vem dizer
Que não há nenhum nexo
Entre o que está
E o seu reflexo.

13 de janeiro de 2012

FENG-KAN E O TIGRE




Feng-Kan era um rubicundo patriarca que vivia na companhia de um enorme tigre domesticado. Nos jardins orientais tudo parecia obedecer às leis da levitação. Por isso, estranhamente, sendo Feng-Kan um obeso patriarca, cujas alentadas formas se recolhiam sob vestes vermelhas e redondas, o seu corpo parecia pairar por entre canteiros de flores aromáticas.
A história da domesticação do tigre ficará na memória de todos os vindouros. A província fora literalmente devastada pelas incursões de um felino terrível. Diziam uns que se tratava de um espírito maligno, de cenho sinistro e de ferocidade sem quartel. Declaravam outros que a razia não era produzida por um bicho mas por uma alma tresnoitada que, privada de amor, traduzira em fúria a própria solidão. Fosse como fosse, quando as piores narrativas chegaram aos ouvidos de Feng-Kan, ele limitara-se a encolher os ombros e a obtemperar, com oriental acomodação: “a morte não existe; o que há são eflúvios”. Naquela altura, ninguém o entendera. E até mesmo os sábios “zen”, reunidos em assembleia para interpretar o oráculo de Feng-Kan, não conseguiram mais do que longas arengas, onde aqui se semeava um tropo e mais além uma inverificada premonição.
Feng- Kan orgulhava-se de se deitar com as primícias das sombras e de se levantar com as últimas fugas dos sombreados em vigília. Os preparativos da sua higiene, no início do dia, obedeciam a uma liturgia complicada de gestos repetitivos e de solenes rituais. Ainda antes de beberricar o seu vagaroso chá, Feng-Kan descia sempre ao jardim, ficando por longos minutos a contemplar os desenhos que o aljôfar da morrinha traçava, de combinação com as primeiras luminosidades, nas folhas envernizadas de certas plantas. Entre o domicílio de Feng-Kan e o seu jardim interpunha-se um regato e uma pequena ponte elegante, suficientemente larga para proporcionar passagem ao nédio corpo do sábio, mas não tão generosa que lhe consentisse o trânsito sem que as pontas do manto raspassem ao de leve os muros laterais. Naquele dia, Feng-Kan acordara com um singular pendor contemplativo. Antecipou o gozo que iria colher desse comércio iniciático com as flores de lótus e o coaxar das rãs. Porém, transposta a pontezinha, Feng-Kan admirou-se com o profundo silêncio de todo o lugar. Não soprava o vento, do nascente jorrava a primeira cachoeira de branda luminosidade e nem um só animal levantava saudações de gratidão a mais um ciclo da quotidiana existência. Feng-Kan parou, perplexo, confuso, a meio do seu jardim. Teriam passado breves instantes quando se deu conta da agitação do restolho de uma cerca de bambus que fizera colocar numa vala de delimitação, para além da ponte. Feng-Kan vislumbrou então o avanço de um animal opulentíssimo, cruzando com célere elegância os poucos de metros que distavam do seu poiso, mesmo a meio da fonte principal do jardim. Era um tigre, imenso e fero, que se lhe dirigia sem a menor atrição. Feng-Kan teve desde logo a certeza de se encontrar perante a temível Besta que devastara choupanas, esventrara caçadores e semeara o pânico por todo a região provincial. Voltou a dizer baixinho, de si para si, o que havia sido o enigma irresolúvel dos sábios “zen” : “A morte não existe; o que há são eflúvios”. O animal ia revelando toda a sua potência na gula com que fitava a rotunda barriga de Feng-Kan, logo ali antecipada como pasto iminente de voracidade esfomeada. Então, Feng-Kan levantou a sua mão direita, com a palma voltada para os primeiros raios de sol, e declarou: “Oh tu, Fera, oh tu, Besta, fita-me nos olhos e vê os eflúvios da minha alma”. O portentoso tigre arqueou a tigrina cabeça e os seus olhos muito amarelos pousaram-se durante longos minutos, nos olhos escancarados de Feng-Kan.
Os sábios “zen” ainda hoje discutem o milagre daquele entendimento. A verdade é que Feng-Kan passou a coabitar, desde esse dia, com essa fera colossal, que lhe vinha comer à mão, lhe ronronava aos ouvidos para o despertar e lhe corroborara a superioridade dos eflúvios sobre o veredicto inapelável da finitude.

8 de janeiro de 2012

EM NOME DO FUTURO

Que rumor é este? Que subtil fluido se desprende da vida dos homens concretos, das dificuldades de sermos humanos e livres, do indómito desejo de nos considerarmos parte activa da Pátria, irmãos-gémeos da Democracia, ombro a ombro com Cidadãos iguais-a-nós, no raso plano deste viver contingente, a caminho do fim? Que desafio é este? Cai-nos em cima a matéria fecal do crapuloso latrocínio do Capital, das agências de “rating” (que ninguém sabe de que enxerga podre surdiram), do conluio entre meia-dúzia de ventrudos banqueiros e de outra meia-dúzia de pestíferos e ignaros políticos, e nós, aturdidos com tamanho e pulhostre conluio, declaramos, como Dolores Ibarruri, no auge da guerra civil espanhola : “No passarán!”. Que estranho caminho é este? De um lado as agigantadas pretensões dos que pensam que o viver é um exercício de cálculo, uma empalmação de ilusionismo com que se enganam multidões de ingénuos, sempre prontos ao sacrifício do Bezerro de Ouro. Do outro lado, as inumeráveis multidões dos que nada esperam senão a tranquila sentença de quem dirá : “Trabalhaste, toma o fruto do teu suor e vai em paz!” . Afinal, que estranho caminho é este? Ah, minha “Passionaria defunta”, pudesses tu saber que não morreste quando morreste, que a tua gloriosa rebelião ficou por cá, dormiu connosco, gerou filhos bem nascidos, desbravou gloriosas veredas de amanhã e descobriu sóis radiantes para além do sol que nos ilumina. Sim , Dolores, “no passarán!” . Vencem agora ? Talvez. Aos ombros dos ladinos, mas também dos desprevenidos, às espaldas dos inocentes, mas também dos pobres de espírito, no dorso dos desprevenidos, mas também dos vendidos. Dolores, minha Dolores, “no passarán!”. Sabes porquê, Irmã da minha carne, sacerdotisa da minha Crença, Senhora do meu Coração ? Porque, no auge da guerra civil espanhola, um Homem houve, chamado Hemingway, que descreveu a cópula entre um guerrilheiro e uma Mulher militante e a contou como um terramoto, como uma telúrica experiência de sangue , esperma e vida, como uma Esperança de Futuro, como uma litania de Amanhã, como uma “finalidade sem fim”, à maneira de Kant. Descansa, Dolores, “no passarán!”. E se passarem, Amante, Esposa e Filha, saibas tu que o teu Verbo, como religião intemporal, nos galvanizará numa prece sem distância, renovada em cada Primavera, e que de ti fluirão as torrentes de Dádiva e de Futuro que será o pesadelo de todo o despotismo, a decepção de todo o arbítrio, a execração de toda a lábil conformação. Dolores, estamos aqui, na luta. Como teus Irmãos! Para sempre. Em nome do Futuro!

3 de janeiro de 2012

DE MIM, QUE SOU ROMÃ



O que gostava era de adoptar
O ponto de vista da romã:
Nascer num pomar
Perto de ti e também do mar
E construir em mim a esperança vã
De ser fruto apenas semi-vegetativo.
Ouvir ao longe a vaga
E ficar preso a certo ramo atento
Com pássaros empoleirados
Que dormem ao relento
Mas junto de cestos pendurados
Que são carinhos, que são ninhos,
Pedindo em cada manhã
Que o sol lhes traga
Essa vermelha, guardada baga,
De mim, que sou romã.
Depois, por calores vagarosos,
Ou por dardejantes raios de manhã,
Abrir um interior bem colorido
E oferecer a filhotes já criados
Na ponta dos seus bicos regalados
Segredos da Natureza com sentido.