24 de fevereiro de 2011
COIMBRA, MIL E NOVECENTOS E SESSENTA E TAL
23 de fevereiro de 2011
OS PENITENTES
Os penitentes saem das casas ao lusco-fusco
E ao lusco-fusco caminham por estradas sem distância.
Os penitentes levam na mão um nodoso bordão
E na alma uma incomensurável Fé
E fazem sempre muitos calos no pé.
Os penitentes são de muitas cidades e de muitas idades
E de condições plurais ; e não soltam ais
Quando os músculos já doem
Quando as pernas vacilam
Quando os corpos se encharcam
Em Deus e em suores devotos; e também
Em inevitabilidades de carne viva.
Os penitentes gostam de orar nos longos caminhos
Muito sofridos e onde carinhos não abundam.
Por vezes, automóveis arquejantes em velocidades impiedosas
Matam os penitentes piedosos e os jornais do dia seguinte
Anunciam que morreu atropelado um penitente
E que não foi realizado o teste alcoólico
Porque o penitente trazia no bornal um papelinho
Dobrado em quatro vincos onde dizia que perdoava,
Que perdoava tudo a todos ( e também obviamente
À carripana desarvorada). Os penitentes morrem então
De excesso de octanas e de míngua de código da estrada.
Tenho pena de nunca ter sido um penitente.
Por agora, limito-me a ser um resistente
Já não é mau. Resisto ao Tempo. Que esse
Mata mesmo e sempre. Mata sim, sem contrição
Por força de trânsitos a que não demos atenção
E também, como nem sempre convém,
Por míngua de octanas de saúde
E ainda por decretos do Divino, daquele Divino
Sempre honrado, finalmente,
Pelo peregrinar do penitente.
Lastimo nunca ter sido penitente
Mas cumpro a minha jornada lealmente
Contra o Tempo, a destempo
Procurando evitar o contratempo inevitável
Não sei bem se do Motor Imóvel de Aristóteles
Se daquele Anjo Caído, Mefistófeles,
O monstro, o transviado, o grande cão
Que continua a peregrinar
( e a guiar, valha-nos Deus)
Sem carta de condução.
15 de fevereiro de 2011
SINA DE "PORTUGA" ...
Existem duas Europas : a católica e a calvinista; a normativa e a anárquica; a res-publicana e a res-mafiosa; a construtora de Futuro e a nostálgica do Passado; a laboriosa e a parasitária; a previdente e a dissipadora. A primeira corresponde geograficamente à Europa Central e à Europa do Norte; a segunda ocupa, em termos amplos, a fatia mais próxima da bacia mediterrânica. Estas duas Europas nunca irão conseguir uma aliança de boa-fé. A segunda jamais apreciará o rigor administrativo e a seriedade decisória da primeira. Um cidadão da Europa consistente terá sempre presente que os seus índices de bem-estar não podem ser alcançados à margem dos cómodos e das garantias que os demais concidadãos também tiverem. Um “cívico” da Europa “berluscónica” partirá sempre do princípio de que o Bem Comum é uma treta e de que quem não tem “padrinhos” morre mouro. Os princípios de solidariedade da primeira Europa foram na segunda substituídos pela expressão com que Alexandre O’Neill nos caracterizava : “vamos mas é fazer pela vidinha…”. A “vidinha” é, no pátrio poiso, o golpe do baú no casamento, a mão-de-finado no testamento, o videirismo na política, o suborno na Administração, o oportunismo no negócio, o “depois-de-mim- que-se danem” na partidocracia. É uma espécie de prodígio providencial que este país ainda não tenha desaparecido. A única razão para tal prodígio deve estar no facto de que, depois de nos tornarmos conhecidos, no nítido contraste das respectivas endogenias, ninguém nos quer. Fomos um rebanho disciplinado enquanto tivemos a ameaça das ditaduras a pesar-nos sobre os lombos: Salazar não foi uma fatalidade, mas o reflexo de uma imagem no espelho da idiossincrasia. Quem declara que precisamos de mais uma dúzia de Salazares tem a razão que provém da circunstância de reconhecer o seu fundo de bestialidade e de cerrada estupidez. E quem acredita que certo Presidente da República é honesto, cercado pelos Amigos que teve e tem, não é apenas ingénuo: é um Sancho Pança que passou pelas forcas caudinas de uma calda imbecilóide, onde foi mergulhado, à maneira de Aquiles, não para que se tornasse imortal, mas para que se convertesse para sempre num pobre-diabo.
Eu já nada espero do grito espontâneo da lisura patriótica. Espero tudo da Fome e da Miséria. Que já chegaram.
14 de fevereiro de 2011
HAVANA ; HAVANA ...
O que acontece é que só nos repetimos. Julgamos falar para o Universo, para todos os vivos e até para todos os mortos, quando afinal nos limitamos a dizer de nós, sempre e só de nós, como uma melopeia, a mesma cançoneta. É como se fossemos um daqueles solipsismos melódicos de certas canções cubanas, onde aparece sempre a voz metálica dum refrão a repetir incansavelmente as mesmas notas. Percebi isto, com muita clarividência emocional, em Havana, quando me consegui escapulir do guia que nos levava, como rebanhos, pelos recessos da cidade esventrada, na tentativa insólita de recuperar inutilmente a aura similar à de um Cadillac cataléptico e de cromados já amarelecidos. A receita turística dos Castros repetia-se incansavelmente : levavam-nos, de cambulhada, para uns pátios sem graça, onde se faziam ouvir as notas arrastadas de Carlos Puebla a celebrar o Comandante Imortal e depois se estorciam umas patéticas marafonas, de gâmbias desnudadas, procurando dar vida a uma cenografia virtualmente erótica, mil vezes repetida.
Fui passear para o Malecón. O Malecón não é mais do que um passeio rente ao mar, cheio de pescadores de canas improvisadas e de olhos fitos mais no além da América do que no picar improvável do peixe. No Malecón há desesperos. E putas para turistas. Ciranda-se por lá como se fosse um roteiro sem fim. Um autóctone, escuro e de bigode, interpelou-me, perguntando se eu poderia estar interessado em “donzelas virgens de catorze ou quinze anos”. A verdade é que me ouviu dizer que estava mais curioso da memória de Hemingway e que as meninas poderiam ficar para mais tarde. De Hemingway não sabia nada. Só de jovenzinhas. Ofereceu-me um “puro”, contra a eventual permuta de uma “gilette” descartável. Como não tinha comigo a “gilette”, fiquei também impedido de baforar o “puro”. Também me interrogou sobre se já tinha visto a Praça da Revolução. Disse-lhe que sim, que tinha estado lá, naquele terreiro vazio e calcinado, com a caricatura do Che desenhada com hastes de ferro na parede de um Ministério qualquer e com um fálico monumento a memorar o passado heroísmo dos barbudos da Sierra Maestra.
Havana afigurou-se-me como ponto nodal da relatividade da vida. É que a percepção da decadente nostalgia consegue ser tão forte, tão omnipresente, que nos damos conta que um dia, depois da pletora das forças vitais, todos nós iremos ser assim.
Fui a Havana duas vezes, em dois tempos diferentes. Eu, diferente também. Mas Havana igual a si mesma, das duas vezes. Das duas vezes vi velhas vestidas de branco a cobrar um ou dois dólares por fotografia que se lhes quisesse tirar. Das duas vezes peregrinei por lá, demandando as balas dos insurgentes em fachadas pulverulentas. Das duas vezes fui à Bodeguita del Medio, transitando por ruas fedorentas para beber um “mojito”, pretensamente intelectual, acotovelando gentes a baloiçar-se entre a fruição do exotismo e a libertação etílica.
Repetir Havana é ter a certeza de que somos tautológicos. Mas a vista geral da cidade, do cimo de um decrépito hotel de comprovada centralidade, é a evidente certeza de que continuamos, nós, os Cadillacs fanados da estranja, a perceber, para além dos prédios de pintura velha e descascada, e também das prostitutas e das velhas de charuto nos dentes, e do ridículo “cliché” oficial, e dos proxenetas do Malecón, que todos nós, todos, sem excepção, acolhemos nas funduras de nós próprios a esperança de que um dia tudo se recrie e renove, nas ruas, nas praças e nos lupanares de nós mesmos.