31 de julho de 2007

BERGMAN E ANTONIONI - HOMENAGEM



Hoje morreu mais uma parte de mim. Desapareceram Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman. Não digo isto para assumir a postura do peralvilho pateta, que se julga entendido e informado – neste caso, entendido e informado em cinema. Digo-o apenas porque quando alguma coisa, algum objecto ou alguma pessoa nos marcaram, o dizer-lhes adeus de uma forma definitiva é sabermos que também nós vamos morrendo um pouco.
Ser-me-ia fácil fazer uma elementar pesquisa e explanar aqui um estendal de citações e de juízos, acerca dos dois Mestres que partiram. Mais difícil é pôr a alma a falar. Mais difícil é procurar nas imagens que persistem, nas memórias que vão ficando flácidas, bambas, pastosas - um pouco à maneira de Salvador Dali - mais difícil, sim, é retirar de tudo isso um fotograma definitivo, uma cena inolvidável, um episódio paradigmático. Com a certeza antecipada de que esse fotograma, essa cena, esse episódio ecoam em nós como se nós próprios os tivessemos vivido por direito próprio.
Selecciono de Antonioni aquela cena d’ O Deserto Vermelho, na qual uma frágil Mónica Vitti, vestida com o bom gosto da burguesia opulenta, procura o biombo de um muro para devorar um pedaço de pão que, salvo o erro de uma memória com lapsos, pedira a um operário anónimo. Qual seria o sabor do pão dos pobres? E que estranha fome teria sido essa, assim sentida como uma urgência sem escapatória? Talvez a da procura da paz, talvez a da conquista do reequilíbrio interior, talvez a da vingança sobre o mundo das imperiosas convenções e do dinheiro duvidoso. Assim me ficou para sempre a imagem dessa angustiada Vitti, docemente transtornada, frágil, quase mística, certamente à procura de si, provavelmente à procura de um mundo onde o pão dos pobres não necessitasse de ser comido pelos ricos nas traseiras de um muro cinzento.
De Ingmar Bergman levarei um dia comigo – para sempre – a imagem do Cavaleiro d' O Sétimo Selo, jogando com a Morte a partida de xadrez que jamais poderia ganhar. Era (lembram-se?) um Cavaleiro fatigado, meio desconjuntado pela fereza de mil combates, mas ainda capaz de disputar o último jogo com Aquela que jamais poderia derrotar. A Morte (lembram-se?) apresentava-se vestida em rigoroso registo de preto e branco, não cabendo nela a impressão da meia-tinta. E em cada lance se sentia que a situação táctica e estratégica do Cavaleiro ia ficando mais e mais desesperada. E por cada movimento de uma torre, de um bispo ou de uma dama, ficava claro que esse último embate do Cavaleiro era heróico, inutilmente heróico, sem saída possível. Eram grandes e redondos os olhos daquela Morte (ou fui eu que os vi assim?) e a intenção que a animava, oscilava entre a compaixão, o tédio e a inexorabilidade (ou fui eu que lhe vesti tais disposições?).
Antonioni e Bergman – duas saudades.
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E agora? Qual o preço do meu pão?
E agora? Que lance seguinte irei eu jogar no meu xadrez mortal?

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