29 de julho de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XXXII



XXXII - A Academia de Coimbra e o Ultimatum

A juventude académica secundou o Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890 com a força da sua indignação. Como referimos, foi ela que contribuiu, no Porto, para a criação da Liga Patriótica do Norte. Foi também ela que, em Lisboa, organizou manifestações de desagravo, préstitos cívicos à estátua de Camões, ciclos de conferências sobre temas ultramarinos e magotes de voluntários tendo em vista uma Grande Subscrição Nacional, cujos montantes seriam aplicados à ampliação e modernização dos meios bélicos de defesa. Ironicamente, as verbas angariadas foram tão reduzidas que apenas consentiram a aquisição de um vaso de guerra, o Adamastor, ridiculamente insuficiente para desafiar o poderio esmagador da frota de guerra britânica. E Coimbra? Como reagiu a Academia conimbricense, aquela que poderia vangloriar-se de pertencer à única Universidade Portuguesa?

Dada a tradicional complacência dos docentes universitários para com o poder monárquico, era improvável que algum grito de revolta irrompesse das cátedras, apesar da respeitada e tutelar referência constituída pela personalidade exemplar de José Falcão. Quem veio à liça foram os estudantes da cidade do Mondego, fazendo publicar o número único do jornal O Ultimatum. Era uma folha modestíssima, provavelmente porque não teria havido dinheiro para lhe conferir outra dimensão ou um melhor esmero estético. No entanto, foi através dela que se revelaram dois dos maiores nomes que iriam doravante marcar os destinos do republicanismo português: António José de Almeida e Afonso Costa. O primeiro frequentava a Faculdade de Medicina, ao passo que o segundo cursava os estudos jurídicos. Eram dois temperamentos contrastantes, uma vez que Almeida apresentava uma vulcânica emotividade romântica, nos antípodas da fria, implacável e analítica racionalidade de Afonso Costa. Os artigos que ambos redigiram para a modesta publicação já revelavam tal antinomia de sensibilidades e de modos de ser. Eram no entanto – cada um a seu modo – verdadeiramente demolidores para o prestígio da monarquia portuguesa. Afonso Costa escreveu um texto intitulado “A Federação Académica”, apelando sem reticências para a organização de forças revolucionárias que, com o apoio generoso das vontades estudantis, se dariam à missão de apear a realeza. A tamanho desassombro correspondeu António José, com um artigo que, quer pelo seu título quer pela sua lógica interna, representava a mais irreverente provocação que poderia fazer-se ao trono português. Era profundo o desdém que se continha nesse pequeno vaso de veneno, sob o rótulo de “Bragança, o último”. Valerá a pena desnudá-lo nas suas linhas mestras. Um dos argumentos mais utilizados por muitos dos vultos intelectuais monárquicos consistia na invocação de que, sendo o Rei politicamente irresponsável, nos termos da Carta Constitucional de 1826, eram também abusivas todas as imputações que o poderiam visar, a pretexto do contencioso colonial. O estudante António José de Almeida veio então a terreiro perguntar, com a sanha similar à de um Junqueiro ou de um Gomes Leal, se o poder régio era irresponsável devido a uma inconsciência animal ou apenas por força de um estouvamento infantil. O rei era irresponsável? Mas era-o como os animais ou como as crianças? Não satisfeito com tal desmesura, António José de Almeida iria desenvolver a demais argumentação com base nas demonstrações do evolucionismo de Darwin. O sábio autor da Origem das Espécies aventara que a progressão das formas de vida se operava do mais simples para o mais complexo e que a espécie humana ocupava o cume do processo evolutivo por fechar o ciclo biológico das continuidades ininterruptas. A vida, no seu imparável processo de enriquecimento e diferenciação, plasmara no ser humano o mais acabado e actualizado da sua potência primitiva. O estudante da Faculdade de Medicina retirava daqui um novo argumento vexatório. Sendo o monarca irresponsável, isso significava que ele não teria percorrido toda a escala do biótico e teria ficado paralisado num patamar animal inferior. O rei, dado como irresponsável, não seria um homem mas apenas um bicho. Assim sendo, deveria ser enjaulado, exposto num qualquer lugar de diversão e identificado sob a designação de “último animal de Bragança”.

Estes dois artigos valeram aos autores os correspondentes processos judiciais e as penas previsíveis. Mas é indispensável que aqui sejam evocados. Através deles se inaugura um estilo radicalmente novo de propaganda republicana. Ao carácter moderado, quase amistoso, de uma doutrinação republicana puramente pedagógica irá suceder a intrepidez de uma nova geração que não hesitará em empunhar armas para derrubar pela violência mais explícita as instituições adversárias.

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