A mitologia grega, no Hino a Deméter, falsamente atribuído a Homero, fala-nos na desventura da deusa Deméter, peregrinando pela terra calcinada, procurando a sua filha Perséfona. A deusa errante, saudosa de Perséfona, demitira-se voluntariamente da sua missão de tornar fecundo o agro e por isso não mais se vira sobre a rasura dos campos o amarelo dos trigos ou o verde das sementes germinadas. Perséfona fora raptada por Hades, deus dos Infernos, que obtivera de Zeus o consentimento para a tomar como esposa. Triste e desalentada, Deméter acabará por chegar a Eleusis, onde é recebida no albergue de Iambé, inculta e tagarela anciã. Inconformada com o pesar de Deméter, Iambé acabará por fazê-la rir, contando-lhe histórias obscenas, acompanhadas de trejeitos e esgares cómicos. Quando Clemente de Alexandria incluiu esta história de Deméter, no seu Protréptico, fez questão de assinalar que as gargalhadas da deusa teriam sido desencadeadas, sobretudo, pelo facto da sua interlocutora, numa das facécias e pilhérias a que se deu, lhe ter exibido o sexo.
Não nos importa, para o efeito pretendido, o desenlace do Hino a Deméter. Interessa-nos assinalar, isso sim, que a verbalização e a gesticulação obscenas, culminadas com a exibição do sexo, foram susceptíveis de desencadear na deusa reacções de riso.
Também o manguito atribuído ao Zé Povinho por Rafael Bordalo Pinheiro, mais frequente na cerâmica do que no seu humor gráfico, reproduz uma simbologia fálica e é o gesto complementar de uma imprecação: “Queres fiado? Toma!”. O manguito é o equivalente lusitano contemporâneo da facécia grega de Iambé. Também ele nos exorta e impele ao riso. Porém, ao contrário da narrativa do Hino a Deméter, ele não se esgota nos limites de uma comunicação intersubjectiva, sem a interferência de terceiros. O manguito não é apenas uma advertência dirigida por um taberneiro, por um merceeiro ou por um qualquer negociante aos que, não tendo pecúnia, querem levar a mercadoria contra a falível promessa de um pagamento diferido. É também o subtil convite à troça, ao desfrute colectivo, que o criador do Zé Povinho dirige, através do gesto sintético e simbólico plasmado na peça cerâmica, a todos os terceiros que a contemplam. É como se Rafael Bordalo Pinheiro, através do boneco, exprimisse um discurso de sentido duplo, por ser dirigido a dois destinatários diferentes. O primeiro destinatário é o suposto e pindérico comprador da mercadoria a crédito, ao qual Zé Povinho replica: « Eu sou ignaro » - como Iambé - «mas não sou parvo; não te dou a mercadoria contra nada; e desqualifico-te, exibindo-te um falo». O segundo destinatário é o colectivo, a comunidade visual, a quem o Zé Povinho garante, piscando o olho em cumplicidade evidente: « Não pensem todos vós, ignaros ou doutores, que aqui o Zé se deixa manobrar por essa corja de oportunistas de que o mundo está cheio. Exibirei um falo a todos os que tentarem manejar-me».
A figuração do manguito, como todas as figurações satíricas oriundas das condensações simbólicas, é um dito de espírito, um chiste coagulado, materializado em barro ou em faiança, mais raramente em papel. Ora, Sigmund Freud demonstrou, na sagaz análise contida na sua obra O dito de espírito e as suas relações com o Inconsciente, que a elaboração mental responsável pela síntese cómica pressupõe o contributo de três intervenientes: o autor da obra, o destinatário da zombaria e o verdadeiro fruidor do sentido do chiste. No caso do manguito, este beneficiário é incontestavelmente a colectividade dos que lhe atribuem o seu sentido mais genérico. Os portugueses, conhecendo a tipologia caracterial do Zé Povinho, integram a prevenção e ladinice do manguito no modo de ser e na verdade psicológica da criatura, ao mesmo tempo que desvendam a intenção fundamental do criador, ou seja, de Rafael Bordalo Pinheiro. São eles, desta maneira, os mais notórios elementos do triângulo formado pelo Zé, pelo suposto comprador oportunista e pela comunidade dos consumidores visuais.
Mas se é certo que há aqui um tertius gaudet, teremos de perguntar por esse quid que explica o gáudio resultante da explicitação do manguito. Rimo-no perante a intencional exposição de um falo, talvez mesmo de um órgão sexual feminino. Mas rimo-nos disso porquê? Uma explicação poderia talvez sustentar-se através da superação de inibições pudicas que rodeiam a consumação dos actos sexuais. O riso soltar-se-ia, assim, a partir da naturalização – quase poderíamos dizer da inocência – com que identificamos os cumes do prazer físico, inerentes ao exercício sexual. Risonhas teriam sido, por esta razão, as celebrações dionisíacas e os ritos orgiásticos e báquicos dos sátiros dos períodos clássicos, grego e romano. Sondemos, porém, outras pistas. Diógenes, o cínico, assumia claramente contra Sócrates e Platão a sua natureza animal, contestava a existência de uma physis espiritual e, para utilizar as palavras de Diógenes Laércio, seu biógrafo, não trepidava em fazer publicamente, na ágora de Atenas, “tanto o que respeitava a Deméter, como o que respeitava a Afrodite”. Assumia o corpo sem o menor vestígio de vergonha e quando se masturbava aos olhos dos transeuntes lastimava que não bastasse igualmente esfregar a barriga para apaziguar os rigores da fome com a mesma facilidade com que, assim, ficavam apaziguadas as urgências do desejo físico. O riso do manguito poderia representar, desta sorte, à maneira do cinismo, o desafio com que os apologetas dos transitórios prazeres do corpo exortavam os espiritualismos instalados a tomarem consciência da sua arrogância dogmática. Esta interpretação quadra suficientemente ao perfil comportamental de Rafael Bordalo Pinheiro, o qual, não tendo sido propriamente um cínico, preferiu sempre as óperas e teatros às missas e devoções, fiel adepto que foi da pândega lisboeta e da tertúlia bem regada.
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