Nos inícios da década de 50, S. Pedra do Sul circunscrevia-se em balizas acanhadas. A vila, pelo menos quanto à sua expressão estética, começava no Mirante, de onde se abrangia, em plenitude, o vale sereno e meigo. Pontificava nesse miradoiro a memória do poeta António Correia de Oliveira, celebrada em azulejos azuis e em fragmentos de versos alusivos: “Olha o Vouga entre verduras // Devagar, devagarinho // Parece que vai pasmado // Por ver tão lindo caminho”.
Cogumelo de casario que depois se alastrava em fiada paralela aos cursos de água, o bairro da Ponte, logo ali, salvaguardava uma distância orgulhosa em relação ao pequeno centro da urbe sampedrense. Era como se lhe pretendesse significar que aos direitos territoriais de pertença autóctone se acrescentavam pergaminhos de epidérmica especificidade, profundados no correr das gerações. Os outros limites definiam-se imediatamente a montante da Câmara Municipal, igualmente nas cercanias da estação ferroviária, servida pelo ronceiro comboio do “vouguinha”, findando o espaço habitado para os lados do largo da escola velha, hoje inexistente, à borda da estrada de saída para as Termas.
Tal como agora, S. Pedra do Sul rescendia aos aromas de nobilitações pretéritas. Certificavam-no os palacetes pré-republicanos dos Palme, dos Reriz e dos Paula, memórias vivas de sociabilidades aristocráticas, evocadoras de visitas régias, como as dos monarcas D. Carlos e D. Amélia, nesse já então distante fim do século oitocentista. Contudo, a pulsação vulgar sampedrense reproduzia o ritmo plebeu do seu pequeno comércio, dos seus serviços administrativos e dos raros operários fabris arregimentados pela indústria de madeiras dos Vieira da Cruz. Os únicos centros de convívio identificaram-se, durante anos a fio, com o Café Edgard, onde se mostrava aos domingos o “fato de ver a Deus”, e com o Clube, mais elitista no seu associativismo restrito. A cadência sonolenta dos afazeres quotidianos só era interrompida pela invasão dos feirantes, uma ou duas vezes por mês. No largo da Câmara estrepitava, então, a vozearia das vendedeiras de potes de barro, dos negociantes de gado, dos mercadores itinerantes de tecidos baratos, de sementes, de hortícolas, de cutelaria, de aprestos agrícolas, numa farândola desregrada de cores e cheiros, de exclamações e invectivas.
Trancoso ia ficando cada vez mais longe. Era um gelo a derreter, sem se deixar olvidar, ao calor de um sol estival que escorria lá de cima, da largueza do céu redondo e lento, glorificado em ocultações crepusculares, em revérberos de azul e em promessas de ouro carminado, quando as últimas radiações esmaeciam, tingindo os contrafortes da serra de S. Macário. Nesse tempo ainda eu não tinha aprendido que tais penedias serranas poderiam ter dado guarida, outrora, a sábios anacoretas, a penitentes frugais, a ascetas aflitos com os pecados e desvarios do mundo. Nesse tempo, o que garantiam os meus condiscípulos do berlinde e da gramática era que, chegado ao cocuruto montanhoso, poderia lobrigar-se, com visão firme e horizonte desimpedido, o topo da portuense Torre dos Clérigos.