O espírito caritativo preponderou entre os portugueses noutras e mais recuadas eras. Dizia-se frequentemente, deste homem ou daquela mulher: “Tem bons sentimentos. É pessoa condoída e esmoler”. Partilhar a dor com outrém, nem que fosse sob a forma de uma humilde moeda, dar esmola aos pobres, sem ostentação, era um generoso impulso de corações humanos que batiam à cadência da solidariedade.
Depois, lentamente, vieram doutrinas e teorias inovadoras que foram cavando a ruína das almas dadivosas. Uns disseram que a esmola não deveria ser dada porque “atrasava a Revolução”. Vantajoso e perfeito era que os pobres sofressem, sofressem sempre e muito, pois seria assim que eles iriam alimentar a sua revolta, nutrindo, logo que possível, o mais cedo possível, as fileiras uivantes de proletários vingativos e vingadores. Era uma argumentação directamente ou indirectamente colhida dos textos de Lenine e Estaline, dos romances de Máximo Gorki, dos filmes de Eisenstein ou, muito mais simplesmente, da perversidade de autojustificações pulhostres. Outras facções, mais moderadas mas não menos pragmáticas, foram desenterrar a figura do Estado Social para sustentar que a correcção das assimetrias e o combate ao pauperismo deveria necessariamente caber aos governantes e só a esses, “pois era para isso que se cobravam impostos”. Lenine, Estaline, Gorki e Eisenstein esticaram a passadeira vermelha a Bernstein, ao Senhor Matias do talho e a quejandos, permitindo a citação do exemplo escandinavo ou da política concreta de Willy Brandt.
Os espíritos caritativos, dadivosos, condoídos, passaram a interrogar-se, imputando a si próprios o pecado da ingenuidade, a desprevenção da inocência, a cedência a impulsos irracionais e facilmente manipuláveis. Poucos se aperceberam que não eram apenas os pobres a perder; eram também os suficientes, abastados e ricos a ficarem mais pobres e mais indignos da sua condição de seres humanos, precisamente porque passavam ao lado do sofrimento efectivo, através do esconjuro de razões idiotas ou crassamente inverosímeis.
Hoje, aqui e agora, prossegue a almoeda dessa original inocência, que fazia sorrir quem dava e quem recebia, numa cumplicidade envergonhada, envolvendo dador e pedinte. Alinham-se, agora, novas ou reformadas razões: "Pobres? Quais pobres? Está tudo a viver à grande. Pobre sou eu e ninguém me dá nada. Se forem às barracas, lá verão televisões de boas marcas e automóveis à porta; o governo enche-os de comida e subsídios; etc, etc".
Pretende-se, a todo o custo, provar que todos os pobres são falsos pobres. Um dia passaremos por crianças a agonizar nos passeios, macilentas, desfiguradas, a cair de fraqueza, desviaremos o olhar e diremos, contentinhos de nós mesmos: “Diacho, o governo não está a cumprir o seu dever…”. E ouviremos no interior do poço da nossa perdida humanidade – se ainda formos capazes desta derradeira contrição – a pedrada dos nossos motivos a falhar o seu alvo. Virá depois a opressão de um grande silêncio de luto, chorando pelo que já não somos.
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