17 de setembro de 2009

ORIGENS DA TOLERÂNCIA

Quando Cronos e Rea decidiram partilhar o Universo pelos seus três filhos, entregaram o céu a Zeus, o mar a Poseidon e a região subterrânea a Hades. Este deus das cavernas e das lamas abissais raptara Perséfone, sua sobrinha, e fizera dela sua mulher. E ambos desconheciam a clemência, sendo ambos surdos aos pedidos de indulgência. Reinavam eles sobre os danados, que se acantonavam, rangendo os dentes e retorcendo as mãos, nas várias e terríveis plataformas do negrume impenetrável. Só eles viam distintamente as formas do seu reino, imersas na gótica babugem das profundezas. Mas viam-nas como se todas fossem iguais, reduzindo-lhes a diversidade a uma idêntica e redundante mesmidade. Hades e Perséfone abominavam o diferente. Era sobretudo esta intolerância que os tornava implacáveis, aplicando suplícios inenarráveis e castigos crudelíssimos, quase sempre gratuitos, a todos os que apresentassem pequenas ou grandes variações de aspecto ou de conduta. Os restantes deuses, os heróis afamados e os frágeis mortais evitavam pronunciar o nome de Hades, temendo despertar-lhe as cóleras e disfarçando o pavor provocado pela insuportável invocação. Um dia, no mais fundo recesso dos abismos, ergueu-se a voz trémula de um maldito agrilhoado, de um suplicante desprezado, e essa voz proferiu a heresia definitiva: “O Inferno, para Hades, é o Diferente. Mas para nós é o Igual. Se tentarmos todos nós, os supliciados destas infernais grutas, ser o que Hades não é, ele não poderá ver-nos, nem perseguir-nos, nem punir-nos, porque o seu mundo só através da mesmidade ganha na sua vidência obscura a nitidez que nós não vemos”. Ouviu-se então o som ribombante das imprecações de Hades e o silvo agudo da raiva de Perséfone: “Quem disse isso? Quem é o aleivoso? Quem se permite fazer estremecer as colunas do nosso reino de trevas, os frontões do nosso território sem limites?”. Logo depois, Hades e Perséfone mergulharam no desespero dos deuses inúteis: tinham deixado de ver as fronteiras do seu próprio domínio e choravam de raiva, agarrados um ao outro.

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