28 de dezembro de 2008

OUTRA HISTÓRIA DE BAIRRO

O bairro é um espaço de familiaridade. Na Bica, os carris do elevador desprendem-se do patamar que os turistas escolheram para as recordações fotográficas e duplicam ao meio do trajecto, permitindo o cruzamento da carruagem que desce com a que sobe, ambas carregadas de mulheres domésticas sobraçando hortaliças e munições de tacho, de homens vestindo gangas de trabalho, ambas tagarelas e laboriosas, como se cada dia fosse um ganho de existência. À semelhança de todos os demais bairros, toda a gente se conhece. Todos e cada um parecem viver ali desde sempre. Na cidade grande emergem, assim, pequenas aldeias, como a da Bica, ressoando nelas a má-língua inocente dos questionadores de reputações e a vozearia em desvairo dos carregadores de mercadorias e dos funcionários da Carris.

Matei saudades da Bica um pouco antes do Natal, como quase sempre, de há quatro ou cinco anos a esta parte. A minha viela não terá mais do que uma dúzia de metros, que servem de passeio público a pombos filósofos, inocentes defecadores de caleiras e roupas em estendal, para grande incómodo e escândalo dos senhorios e das engomadeiras.

Eu julgava conhecer, ao menos de vista, todos os habitantes da minha viela. Por isso, foi com alguma surpresa que vi surdir, do interior de um rés-do-chão, uma figura singular e jamais vista. Era um pedaço vivo da Beira ou de Trás-os-Montes transplantado para um dos bairros históricos de Lisboa. Tratava-se de uma anciã, de rosto muito redondo, com um traje – blusa, chaile, lenço de cabeça atado sob o queixo – todo em negro, contrastando com uma pele de cera, leitosa, semelhando pergaminho sulcado por rugas antigas. Quando lhe cruzei a soleira, não pude deixar de surpreender no rosto afável da velha uns olhos perscrutadores, vivíssimos, como se pretendessem devassar os segredos daquela família invasora, que acabara de desaguar no empedrado antigo da Travessa do Sequeiro.

 « Então, muito boa tarde!», disse-lhe. E ela, com a maior naturalidade, respondeu-nos: «Viram gente da minha terra?».

 Compreendi então que a minha adorada Lisboa podia ser, para alguns, um sofrido exílio.  

21 de dezembro de 2008

NATAIS MEUS

Sentia outrora o Natal no corpo todo. Quando era menino, a paisagem invariavelmente branca de Trancoso era comparada com os postais ilustrados que os meus Pais enviavam e recebiam. Neles surpreendia, maravilhado, Pais Natal pançudos, vestidos de vermelho, com o rosto rubicundo e o riso fácil, de orelha a orelha. Vejo-me, em lembrança, dentro de abafos de lã, tricotados pela minha Mãe, a caminho de uma Missa do Galo pouco entendível, toda recitada em latim, língua muito bárbara, cheia de recortes sonoros irreconhecíveis. As árvores combinavam a alvura do nevão com o adorno dos gelos, muito cintilantes, de uma transparência mágica, pendentes de ramos silenciosos. Tanto bastava para que eu pudesse imaginar que o Menino Jesus deveria também ter uns cueirinhos confortáveis, bem quentes, talvez igualmente tecidos pela Sua Santa Mãe.

Outras vezes, os Natais eram passados na velha casa dos avós paternos, com a Avó-viúva a pontificar numa cozinha de aldeia, por entre panelas pretas de ferro, com três pernas, aquecidas directamente pelo crepitar da velha lareira fumarenta. Aí se cozinhava o melhor bacalhau com batatas e couves galegas de que me lembro. E enquanto a noite progredia, estirando a sua preguiça por camas forradas de neblinas azuis e pingos discretos de chuva, a Tia Ermelinda, competente doceira, aplicava-se na fabricação de sonhos de açúcar, de filhós e bolinhos de noz. In illo tempore, o Natal já ressumava um vago, quase imperceptível incómodo, associado à percepção difusa de haver Natais diferentes do meu – quase sem bacalhau e definitivamente sem sonhos açucarados e bolinhos de noz. Era outra, com efeito, a realidade de lares agrestes, onde ventos desabridos rompiam pelas frinchas esbeiçadas, regelando essa população rural, pobre e analfabeta, do coração de uma Beira Alta submissa às imposições do Estado Novo. E o Natal começou a doer-me nas raízes do sentimento.

Depois, a Avó-viúva morreu e os Natais transferiram-se para S. Pedro do Sul. Frequentava por então a Universidade de Coimbra e a minha Mãe ainda tricotava, fazendo-me agora cachecóis com as cores da moda e recebendo de mim quadros de parede onde se pintavam amores-perfeitos, por ser esse o nosso símbolo secreto. O meu Pai, esse, muito preocupado com o sopro da contestação política académica, obtemperava: - Vê lá, rapaz, olha que um curso é melhor do que um comício! E o Natal começou a racionalizar-se, a ser vivido sob dilema, em tensão repartida entre a imagem da pobreza de S. Francisco de Assis e a arrogância opulenta dos Papas-Bórgias.

Nasceram-me quatro filhos em Coimbra e com eles passei alguns outros Natais em lares autónomos, pessoais, com os meus progenitores volitando numa memória de lágrimas, transformados em saudades desses outros Natais distantes. Então se combinava o conforto carinhoso dos vivos com a angústia de não ver outra vez a Mãe a tricotar, novamente o Pai a preocupar-se com o meu destino político…

E aqui estou hoje. À espera de um outro Natal. Devo confessar que já não sinto o Natal no corpo todo. Corro às compras, olho as iluminações, ouço a lamúria dos pedintes e dos comerciantes, os primeiros queixando-se da parcimónia das esmolas e os segundos do rateado dos negócios. E pressinto que há em tudo isto, nesta Democracia de agora e nesta globalização dos nossos dias, um azedume de alma, uma cápsula de solidão que dói e confrange. Deixei de ver o Menino muito rechonchudo e rosado no seu leito de palhinhas. Para falar com franqueza, só consigo ver hoje a macerada face de Cristo na cruz, à espera que lhe façam um melhor Natal. 

14 de dezembro de 2008

VAIDADE

Ai, como é inábil e vaidosa,

A humana natureza,

Gerando, pressurosa,

A solução imaginosa

Da própria vileza.

Sobre a sua milenar ignorância

Milenares gerações tornaram importantes

Uns tantos broncos cidadãos impantes

Com os armários do cérebro esvaziados

Para utilizarmos palavras de Cervantes.

Coitados destes sábios flatulentes

Manejadores de verbos incipientes

E de fala tão supinamente ática

Como a correspondente falta de gramática !

Haja, contudo, cuidado e parcimónia.

Somos todos assim, feitos deste metal

Vulgar e quebradiço. O verdadeiro mal

Está em nos julgarmos para sempre

Mui merecedores de mesura e cerimónia…

 

10 de dezembro de 2008

APRENDIZAGEM DA POESIA


Quando ela me disse que não gostava de poesia,

eu entendi mostar-lhe um bebé

recém-nascido;

Quando ela repetiu que mesmo assim

não gostava,

eu levei-a a ver um jardim

cheio de flores;

Depois de me ter afirmado  

que ainda não chegava,

eu pedi-lhe para olhar

a cúpula do céu

semeada de estrelas;

Passado algum tempo,

aquela menina fez-se Mulher

e teve um filho

que levava a jardins

cheios de flores

e amamentava

por noites de verão,

sob a cúpula dos céus

povoados de estrelas.

Ela então entendeu 

o segredo da vida;

e nunca mais me disse

que aborrecia

e desmerecia

da poesia. 

6 de dezembro de 2008

UMA HISTÓRIA DE BAIRRO

Aquilo que lhe definia a diferença era a forma de andar. Ele vinha vê-la todos os dias, contemplando-a de longe, para que ninguém percebesse a estranha confusão dos seus sentimentos. Aquilo começara como começam quase todas as coisas verdadeiramente sérias: por um simples acaso. Tinha parado para apertar um atacador e ela passou-lhe rente ao sapato. Naquele dia, nem sequer lhe tinha visto a cara. Mas esse é que foi o mal, ou talvez o bem … Sob a forma de um vulto fugidio, ela desceu as escadas do bairro e desapareceu na esquina. O que lhe ficou na retina não foram as cores do vestido, nem a forma do chapéu-de-chuva, nem mesmo as dimensões da estatura. Foi apenas o balanço do andar, o jogo estranho dos quadris, movimentando-se de modo diferente, entre a hesitação e o bailado. “Nunca vi uma tal forma de andar”, pensou para si. Correu até à esquina, seguiu-a por ruelas durante um bom bocado e viu-a finalmente entrar numa casa igual a tantas outras, nem bonita nem feia, nem pretensiosa nem banal. Depois da porta se ter cerrado, imaginou-a no patamar, ganhando fôlego para a subida das escadas. Sim, porque o prédio, com carradas de anos em cima, não deveria ser servido de elevador. Seria que o subir das escadas também proporcionava aquele jogo de movimentos, entre a suspensão e a dança? Disparate! Toda a gente sobe as escadas da mesma maneira, apoiando um dos pés no degrau anterior e movendo o outro para o seguinte. Mas se fosse possível assegurar que a personalidade de cada um era decifrável através do movimento da locomoção, se tal não fosse uma patetice igual à da quiromancia, certamente que aquela criatura deveria ser tímida como uma gazela e sonhadora como um poente de Outono. “Com quem teria ela aprendido aquela forma de andar? Talvez com uma professora de ballet ou com um ensaiador de teatro. Talvez…”. Passou a colocar-se, todas as manhãs, numa posição estratégica, suficientemente distante para não lhe despertar a atenção e num enquadramento favorável para que a pudesse contemplar de costas, pois era de costas que aquele balanceamento se lhe afigurava mais sugestivo. Fez isto durante meses seguidos. Se lhe pedissem que descrevesse minuciosamente o rosto, não seria capaz de o fazer. Toda a sua atenção se concentrava nas ancas e das ancas para baixo. O resto era um somenos. Depois, deu-se a comparar aquele modo de andar com vários outros, centrando a sua observação sobre mulheres que lhe parecessem de idade aproximada e de morfologia semelhante. O exercício não durou muito, pois viu-se obrigado a confessar que nenhum outro ser humano do género feminino se movia assim, como se estivesse com medo de tropeçar nas nuvens. Concluiu finalmente que estava apaixonado. E um dia, vencendo algum pudor de macho dominante, esperou-a no passeio em frente e dirigiu-lhe a palavra:  “Desculpe, não me leve a mal, peço-lhe. Sabe, eu só lhe queria dizer que … que …”. “Que quê?”, replicou ela. “Que …, pronto, que gosto muito do seu andar”. Ela encarou-o com surpresa e ele verificou então, pela primeira vez, que aquela mulher se parecia com o prédio onde morava, nem bonita nem feia, nem jovem em excesso nem idosa em demasia. “Então reparou, foi?”, disse ela. “Foi, foi. Agrada-me tanto a sua maneira de caminhar !” . Então ela rematou: “Pois é, fiquei assim depois de ter sido operada aos ossos da bacia. Tinha um problema degenerativo complicado. Foi esta a herança daquela cirurgia. Que se há-de fazer?”. Confundido, ele respondeu: “Não sabia, lamento. Mas olhe, não faça nada, ouviu? não faça mesmo nada”.   

3 de dezembro de 2008

BRAGANÇA, O ÚLTIMO

Foi-me pedido um trabalho sobre o ano de 1909, para a exposição bibliográfica que proximamente irá ser feita pela Biblioteca Nacional. Quando acabei de escrever o primeiro parágrafo, entendi que ele não ficaria deslocado nesta tribuna. As realidades são certamente muito diferentes. Até por isso, valerá a pena o cotejo. Passo a citar(-me) – e perdoe-se a imodéstia autoral:

 

Um rei imberbe, vacilante e tutelado por sua mãe, a rainha-viúva; quatro gabinetes governamentais – os de Campos Henriques (este vindo do ano anterior), Sebastião Teles, Venceslau de Lima e Veiga Beirão – que se sucedem de modo pouco pacífico, gerando nos próprios arraiais da monarquia uma tempestade de recriminações, ressentimentos e amarguras; uma oposição republicana que se prepara para todas as eventualidades, pronta a aproveitar as oportunidades que vierem a suscitar-se, de modo espontâneo ou preparado, para desencadear contestações e paradas públicas de força; a Autarquia lisboeta com a presidência entregue, desde Novembro do ano anterior, a Anselmo Braamcamp Freire, um antigo servidor do Paço, que a desilusão atirara para os braços do republicanismo; uma sociedade corroída por suspeições de honorabilidade em relação à gestão das finanças públicas e ao escrúpulo do seu pessoal político; um sector religioso, talvez minoritário mas muito activo, defensor de um catolicismo afectado por princípios radicalmente conservadores e por ânsias de intervencionismo bem distantes do simples “serviço das almas”; um quotidiano só aparentemente tranquilo, mas na realidade desconfiado da “acalmação” que lhe fora prometida, após o rei D. Carlos e o príncipe-herdeiro terem sido assassinados, no pretérito primeiro de Fevereiro do ano de 1908 – eis aqui uma sucinta súmula das notas caracterizadoras do ano de 1909