O bairro é um espaço de familiaridade. Na Bica, os carris do elevador desprendem-se do patamar que os turistas escolheram para as recordações fotográficas e duplicam ao meio do trajecto, permitindo o cruzamento da carruagem que desce com a que sobe, ambas carregadas de mulheres domésticas sobraçando hortaliças e munições de tacho, de homens vestindo gangas de trabalho, ambas tagarelas e laboriosas, como se cada dia fosse um ganho de existência. À semelhança de todos os demais bairros, toda a gente se conhece. Todos e cada um parecem viver ali desde sempre. Na cidade grande emergem, assim, pequenas aldeias, como a da Bica, ressoando nelas a má-língua inocente dos questionadores de reputações e a vozearia em desvairo dos carregadores de mercadorias e dos funcionários da Carris.
Matei saudades da Bica um pouco antes do Natal, como quase sempre, de há quatro ou cinco anos a esta parte. A minha viela não terá mais do que uma dúzia de metros, que servem de passeio público a pombos filósofos, inocentes defecadores de caleiras e roupas em estendal, para grande incómodo e escândalo dos senhorios e das engomadeiras.
Eu julgava conhecer, ao menos de vista, todos os habitantes da minha viela. Por isso, foi com alguma surpresa que vi surdir, do interior de um rés-do-chão, uma figura singular e jamais vista. Era um pedaço vivo da Beira ou de Trás-os-Montes transplantado para um dos bairros históricos de Lisboa. Tratava-se de uma anciã, de rosto muito redondo, com um traje – blusa, chaile, lenço de cabeça atado sob o queixo – todo em negro, contrastando com uma pele de cera, leitosa, semelhando pergaminho sulcado por rugas antigas. Quando lhe cruzei a soleira, não pude deixar de surpreender no rosto afável da velha uns olhos perscrutadores, vivíssimos, como se pretendessem devassar os segredos daquela família invasora, que acabara de desaguar no empedrado antigo da Travessa do Sequeiro.
« Então, muito boa tarde!», disse-lhe. E ela, com a maior naturalidade, respondeu-nos: «Viram gente da minha terra?».
Compreendi então que a minha adorada Lisboa podia ser, para alguns, um sofrido exílio.