25 de junho de 2012

O MEDO

O maior dos medos que podemos experimentar é o medo pelo desconhecido. Somos animais programados e o nosso maior arrimo é o da regularidade das coisas conhecidas. Tudo o que fica para lá (ou para cá ?) do desconhecido nos inibe e atemoriza. Pelo contrário, o Mundo não conhece o medo. Assiste, imperturbável, a todas as hecatombes sem pestanejar. Quando digo isto, eu estou a cometer uma espécie de antropomorfismo. É que o Mundo não assiste, não pestaneja, nem sequer regista. O Mundo “é”, limita-se a “ser” , na sua passividade imensa. Quando digo que o maior dos medos humanos é o do desconhecido, eu poderia dizer, com maior propriedade, que do que temos mais medo é de nós-mesmos. Melhor dizendo, do que ignoramos de nós mesmos. É bom reparar que tudo o que podemos conceber de mais temeroso é tudo o que imaginariamente nós sabemos que poderíamos cometer. Assim sendo, o nosso medo consiste apenas na dúvida que nos assalta acerca do que temos como impossível de por nós ser cometido. Seremos nós capazes de cegar voluntariamente um semelhante? Seremos nós capazes de matar a sangue frio um desconhecido? Seremos nós capazes de possuir sexualmente uma criança? Seremos nós capazes de matar um semelhante saudável para lhe vender os órgãos? Não dou a resposta por caridade para comigo e não por caridade para com a Humanidade. O que nos causa medo são as virtualidades do que somos ou do que imaginamos poder ser. O medo é, desta maneira, o limite que nos protege de nós próprios. O mundo, como não estudou Ética, nem a pratica, limita-se a “ser”, impávido, perante o espectáculo de nós-mesmos. Por isso é que não há a menor razão para temer a morte. É o acto pelo qual nós deixamos de julgar, para nos convertermos num imperceptível grão de mundo.

20 de junho de 2012

FORMOSELHA - SANTO VARÃO

O meu Amigo e antigo Aluno Correia Góis publicou, muito meritoriamente,a obra "Os Coutos de Formoselha e Santo Varão". Na minha narrativa, o título em causa deverá mudar para "Os Coitos de Formoselha e Santo Varão". Basta trocar um u por um i. Passemos então ao que interessa. Localizada entre a Figueira da Foz e Coimbra, existe uma localidade de nome duplo, pois se chama FORMOSELHA – SANTO VARÃO. A designação acicatou a minha curiosidade. Ela é lógica, uma vez que jamais um Varão permaneceria em cheiro de santidade se, em vez de ter próxima uma Formoselha, morasse paredes- meias com uma Formosa. Por isso, o Varão, tornado Santo, “aguentou os cavalos” e Santo permaneceu (dizem as más línguas, mas a minha narrativa infirma-o) até ao momento. Não é líquido que uma Formoselha não seja atiradiça. Mas é mais concebível que a forte determinação do casto Varão assim permanecesse ante os assomos lúbricos de uma Formoselha. Também os Santos do Deserto, os eremitas da areia, acordavam da lôbrega noite que os acolhia com tremuras na carne. Pudera! Consta que o Demo mobilizava não uma qualquer Formoselha para os inquietar, mas uma legião de Formosas – e ainda por cima desnudadas ou , pelo menos, generosamente expostas. É de imaginar que o Santo Varão dormisse pouco. É que, dando de barato que a Formoselha fosse a versão humana de uma gata com cio, a mobilização dos seus encantos poderia contar com a cumplicidade dos lençóis da noite. E aí, poderia acontecer ao Santo Varão o mesmo que acontece a todo e qualquer Varão saudável e não-Santo: sucumbir, abjecto, perante as fervuras dos instintos. Nos meus tempos da Universidade, dei-me com um Colega que fazia gala em só namorar Formoselhas. E fazia-o sempre pela calada da noite. Perante as minhas perplexidades, ele sempre me respondia que acontecia ao sexo o mesmo que ocorria com a fome. E obtemperava : “Se tripa não tem olho, o baixo ventre também não”. Era um Sábio acabado, esse meu estimável Colega, o qual, de resto, na hora da Verdade, acabou por se consorciar com uma mulher bem abaixo, no “ranking” da Beleza, da mais delambida Formoselha. Mas voltemos ao Santo Varão e contemos-lhe o resto da história. Nenhuma Formoselha consente em permanecer Formoselha e virgem pelo resto da vida – a menos que possa ser promovida à condição de Santa Fêmea, mas aí a concorrência é considerável, uma vez que já existe uma Santa Eufémia. Pelo que a Formoselha apanhou o Santo Varão distraído e , num dos raros momentos em que ele se dava aos imperativos de Morfeu, rolou-lhe pelos lençóis abaixo. Quando ele acordou, sentindo ânsias comichosas em zonas erógenas conotadas com o Pecado, o Santo Varão perguntou: “Que se passa, que se passa aqui de tão delicioso e pérfido?”. Ao que a matreira respondeu: “ É a Formoselha, Santo Varão”. E para sempre assim ficaram, a Formoselha cada vez mais Formoselha e o Santo Varão cada vez menos Santo …

16 de junho de 2012

DESTINO E ACASO

Quando se fala em Destino, é como se estivéssemos a falar na antecipação do que já sabemos. Afinal, só dizemos que este ou aquele conheceram um Destino negro ou róseo depois de termos dado conta da infelicidade ou felicidade que a vida lhes trouxe. Por mim, confio mais no Acaso e menos no Destino. Claro que para que ele, o Acaso, possa actuar, teremos de ir ao seu encontro. Um bom Acaso vale sempre mais do que um bom Destino. É que este, a existir, é algo que se torna independente da minha vontade e que me subjuga sem remédio. Prefiro o Acaso, sim. Desde que o demande, desde que o convoque, desde que o chame para mim. Até porque, então, poderei declarar : “A procura do meu Acaso é o meu Destino”.

10 de junho de 2012

INVOCAR PROMETEU

Podemos aqui ver a belíssima estátua de Prometeu, que se encontra na entrada da Universidade do Minho. Prometeu foi o Titã que se atreveu a roubar o Fogo a Zeus, entregando-o aos homens. O castigo infligido por Zeus foi condená-lo a ficar por toda a Eternidade amarrado a um rochedo, impotente, e à mercê de uma águia que viria todos os dias comer-lhe o fígado, que também todos os dias iria crescer para um novo festim da ave. A alegoria desta estátua é agora transparente. Prometeu apresenta na sua mão direita o Fogo que roubou ao monopólio dos deuses. A sua mão esquerda mostra-se com uma corrente partida, simbolizando a sua rebelião libertadora. E, como se pode apreciar , a zona do seu fígado está revolvida pelo bico e pelas garras da águia. Uma extraordinária alegoria sobre o desejo permanente do Homem, apostado a libertar-se das suas limitações e a aspirar ao Ilimitado. Prometeu é para mim o comovente e inspirador símbolo da inconformação. Paralisar no Tempo o instante crucial // Aquele que repousa entre o sono e a vida; // Guardar no peito a reza desta ermida // Que supera e vai além da coisa trivial.// Aqui, no nosso vago mundo sublunar // Combinamos sem notar as cinzas e o fogo, // E no peregrinar entre o agora e o logo // Indiscerníveis ficam a indiferença e o amar.// Avança o tempo e as suas servidões. // No gasto palmilhar das multidões // Falta a luminosa chispa do resgate.// Há que negar a morte, invocar Prometeu,// Há que inventar no coração que bate // Um novo ressurgir, a dádiva de um Céu.

4 de junho de 2012

UMA AFIRMAÇÃO INDECIFRÁVEL

Cruzei-me com um sujeito, homem aí para os seus trinta e tais anos, que envergava uma camiseta com as cores nacionais e com uma inscrição onde se podia ler : “Campeonato Europeu de Futebol”. A meio da peça de roupa, escrito a negro garrafal, estava escrito “Até os comemos !” . Aquilo perturbou-me muito. Decidi puxar pela imaginação, tentando decifrar o hieróglifo. Eu bem sei que a crise é grande e que a fome é uma realidade objectiva no Portugal hodierno. O que me assustou, de início, foi aquele cafreal apelo a formas primitivas de canibalismo. É que ainda existe o Banco Alimentar Contra a Fome, talvez até a Sopa dos Pobres e uma imensidade de baldes do lixo, os quais, quando colocados junto a grandes superfícies ou a restaurantes caros, permitem à indigência uma actividade recolectora de restos de batatas fritas e da parte rilhosa do bife que me parece não despicienda. “Até os comemos !” ? Não, aquilo deveria ter um sentido oculto, cabalístico, que urgia averiguar. Talvez pudesse ser um apelo bovino, melhor dizendo, herbívoro. O que aquele homem pretendia dizer era que se aprontava para deglutir todos os relvados onde jogaria a selecção portuguesa,ou seja, com pitança garantida, pelo menos, durante a primeira fase do evento desportivo. Seria isso? Mas depois lembrei-me que, sendo aquele Concidadão um viril exemplar, de estatura mais do que mediana, e além disso bem parecido, a inscrição poderia ter uma qualquer implicação sexual. Espinhosa dedução, convenhamos, pois o exemplar não vestia trajes cor-de-rosa e , assim sendo, o que deveria constar na camiseta era a frase “Até as comemos!”. Há tipos que para garantirem a sobrevivência do membro viril já se habituaram às técnicas de “marketing”. Mas achei que não deveria ir por aí. A informação encontrava-se omissa, quer quanto ao comprimento (em centímetros) da mercadoria, quer quanto à especificidade das destinatárias. Afinal, a preferência encaminhar-se-ia para as morenas, loiras ou ruivas ? E comia-as uma por uma ou por atacado? Ponderei, por isso, a eventualidade do dístico se dirigir a alguns membros da comunidade “gay” – e digo “alguns” e não “algum”, devido ao plural. Mas também não batia certo. A comunidade em causa é comedida, contida, reservada, numa palavra, morigerada, e nunca se prestaria a uma tão alarve manifestação de apetites. Foi então que , penosamente, acabou por se fazer luz na estreiteza do meu espírito. O assertivo Concidadão decerto se dirigia à Alemanha, pois será com essa selecção que Portugal jogará o seu primeiro jogo. Se o dístico dissesse “Até a comemos!”, ficaria desde logo transparente que a iguaria que aquele português pretenderia comer era a Chanceler Ângela. Como quem isto escreve ainda preza o bom-gosto masculino da portugalidade, logo se excluiu, a eventualidade deste melro querer comer a Merkl na horizontal. A fome, em Portugal, é efectivamente muita. Mas, c’os diabos, há limites de bom gosto que nem a Gestapo ( a existir) nos poderia obrigar a engolir … Portanto, o sentido era figurado e , além do mais, vingativo. Expliquemos: como a Alemanha nos come os juros da dívida em sentido próprio, nós, gente de brandos costumes, estávamos a dizer, através daquele painel ambulante, que nos iríamos vingar, digerindo em sentido próprio a Merkl, com sucos gástricos e entéricos. Houve desde logo uma interpretação que eu liminarmente afastei: a da camiseta poder interpelar os jogadores da selecção alemã. Podem-se lá comer machos de chuteiras e pêlos nas pernas, transpirando por todos os poros, cheirando fetidamente a sovaco por limpar e correndo como doidos atrás de uma bola de couro ! Permaneço , em face do exposto, mergulhado na mais triste e desprimorosa confusão mental. Pode ser que se faça luz no meu empedernido cérebro, lá mais junto da hora de jantar.

1 de junho de 2012

UMA ELEGANTE REFEIÇÃO

Era uma vez um país chamado Portugal, onde se encontraram, numa tarde sem fastio, um estivador, um trolha e um reformado de pensão mínima. Decidiram, depois de muito cogitarem, que tinham de almoçar num sítio de boa reputação. Mas também convencionaram que, no interior desse venturoso estabelecimento, o estivador seria tratado por “Senhor Arquitecto”, o trolha por “Senhor Engenheiro” e o reformado com a pensão mínima por “ Senhor Professor Doutor” , por extenso e “cum magno gaudio”. Claro que envergaram o “fatinho-de-ver-a-Deus” , escolheram o melhor restaurante da cidade e irromperam nele como Napoleão irrompeu no leito de Josefina, depois de um suadoiro bélico de "alto-lá-com-o-charuto" (o charuto conheceu-o a Josefina, mas isso são outros contares). Aboletaram numa mesa centralíssima, não sem que antes tivessem simulado a rábula sobre quem pagaria a conta. Dizia o estivador para o trolha: “ Tenha paciência, Senhor Engenheiro, hoje a conta é minha. O Senhor Engenheiro já pagou aquele jantar de lagosta no casino. Nem tente dizer que não”. Ao que o trolha replicava : “ Oh, Senhor Arquitecto, não vai lembrar essa insignificância. Ora, ora, meia dúzia de tostões …”. E o reformado com pensão mínima obtemperava: “ Parece impossível, meu Estimado Engenheiro ! Oh, Senhor Arquitecto, nem discutam mais. Hoje a conta pertence-me e está tudo resolvido”. Ao que o trolha redarguia: “ O Senhor Professor Doutor vai-me perdoar, mas nós os dois não iremos consentir que uma glória da Universidade portuguesa vá agora pagar uma tão desprezível quantidade de euros”. O empregado do restaurante, muito atilado e correcto, estava absolutamente siderado. E quanto mais lhe caíam nos ombros as designações de “Senhor Professor Doutor”, “Senhor Arquitecto” e “Senhor Engenheiro” mais ele se perfilava, com o meio-sorriso de idiotia entranhada e a verticalidade da obediência ancestral. Comeram e beberam do bom e do melhor: ostras, lavagante suado, camarão- tigre dos mares da Malásia, sericaia de Elvas, tudo regado a verde branco Alvarinho e a “Don Perignon”, este último acolitando a sobremesa. Quem esteve perto, garantiu que foram audíveis arrotos triunfais. Esta desagradável ocorrência foi prontamente infirmada pela Dona Balbina, que ouvira toda a conversa e que garantiu depois que nunca um Arquitecto, um Engenheiro e um Professor Doutor se poderiam comportar dessa forma dispéptica e obsoleta. O admirável grupo, depois de bem atulhado, levantou-se em dois tempos e desapareceu porta-fora. O empregado, em estado de cretinização avançada, correu para o escritório da gerência e, muito vermelho e engasgado, cuspiu para o patrão : “Senhor Pires, senhor Pires, aquela mesa do Professor Doutor, do Engenheiro e do Arquitecto pirou-se pela porta fora, sem pagar; que é que eu faço ? que é que eu faço ? Ligo à Polícia, Senhor Pires? Ligo ? Ligo?”. O Senhor Pires, homem longilíneo e de barbicha judaica, que se julgava mais batido nas asperezas da vida do que as meretrizes do Bairro Alto, suspirou muito fundo, encolheu os ombros magros e decretou : “Passa a conta à gerência. Engenheiro, Arquitecto e Professor Doutor, à molhada, só pode ser um grupo de “vígaros” do Governo. Com essa canalha não me posso meter. Olha, rapaz, aprende, que eu não vou durar sempre”. A Dona Balbina, muito gesticulante, continuava a garantir na mesa dela que aqueles Senhores distintos nunca teriam sido capazes de arrotos superlativos em público.