23 de abril de 2012

CASA DE ANTERO

De Antero não sei nada. Quero crer que morreu Sem saber bem de quê … Estará em morada Segura Escura Mas pintada A roxo e a anil. Angústias mil O povoaram - A ele (não à casa) - E o levaram Nos tiros que soaram Sem perguntar porquê. Quem terá por aí A alma Tamanhamente rasa Que tal casa Já quase não se vê?

14 de abril de 2012

NECESSIDADE, ACASO E DIALÉCTICA




Ao contrário do que é habitualmente aceite, o filósofo Heraclito não disse "Ninguém se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio". O que ele disse foi isto: " Aos que se banham duas vezes no mesmo rio, outras são as águas que por ele correm". A diferença é abissal. Porque só na segunda formulação se torna visível a dialéctica do Mesmo e do Outro. Só assim nos aproximamos da compreensão da vida: o seu fluxo faz da nossa Identidade ou Mesmidade o Outro que o Tempo (um Tempo sujeito à alegoria da água) vai transformando. Assim vamos mudando, conservando o mesmo do que somos.

... e uma vez que a minha vida é marcada pela NECESSIDADE, por essas leis imprescrutáveis mas omnipotentes que me fizeram nascer, e crescer programadamente, e atingir a maturidade quase sem dar conta, e ir envelhecendo ao longo do meu ciclo (não são só as mulheres que têm ciclos, só que nos nossos ciclos, nós, machos, sangramos PARA DENTRO), uma vez que isto é assim, esforçar-me-ei por preferir a DESNECESSIDADE, o ACASO, o jogo de dados (sem batota), a ERRÂNCIA, não fora o estômago voltar a mandar-me comer, a horas certas (está na hora do homem branco ter fome) e sem escapatória.

6 de abril de 2012

CRIADORES E CRIATURAS



Um silêncio sem nome pairou sobre aquele deserto.
Diriam porém os sábios ( se os houvesse)
Que uma gota aquosa se tinha soltado do frio da noite.
Naquele tempo, porém, não havia Sábios nem Doutores
(Ainda não tinham sido inventados …)
Apenas aquela gota estava ali, tremendo ,
Pousada na luz incerta da vaga madrugada.
Disseram alguns muito mais tarde que um Deus qualquer
Irritado com a sua própria solidão
Criara a gota para a ver tremeluzir no clarão da manhã
E que, achando-a gentil, lhe deu por companhia outra gota
Mas esta já destinada a rolar docemente até à terra sedenta.
Se os Doutores já tivessem tirado licenciaturas
Eles diriam, graves e sistemáticos, que duas gotas
Se podem amar no translúcido madrugar
E de tal forma que comoveram o coração impávido de Deus.
Nunca veio a saber-se do bilhete de identidade do tal Criador
Porque ele deixou a documentação apenas para as criaturas.
E foi assim que Iavé ou Cristo ou Mafoma ou os três juntos
Decidiram dar companhia às duas gotas que se amavam
Criando então as folhinhas verdes que lhes serviam de pousio.
Como naquele tempo também não se tinham inventado gastrónomos
Ninguém soube, de papel passado, se no festim dos Deuses Criadores
Poderiam ter-se comido caldos verdes. O que disseram foi que
Criado o verde dos prados, se tornara forçoso colocar animais a pastar.
De todos os animais criados, só um mereceu decreto de excomunhão.
Pobre do porco! Mas mesmo esse recebeu indulgências cristãs
Dizendo até os futuros Sábios que quem quer conhecer o seu corpo
Obrigatório será matar o seu porco, pobre dele !
Parece que os tais Divinos Demiurgos travaram rija discussão
Acerca de todos os animais, dando ao porco honras de problema.
E como Iavé e Maomé não havia meio de cederem
Obrigou-se Cristo a fabricar o Homem, para desempatar.
O Homem-criatura seria já um magno problema
Pois não servia para rigorosamente nada. O pior foi
Darem-lhe opinião, fazendo dele um Sábio, com licenciatura.
A partir daí, esgotou-se a tranquilidade dos Deuses.
É que o Homem-Sábio não se limitou a beber a água
A comer os animais (incluindo o pobre do porco)
E a vociferar muito sobre a Pedra Filosofal de venturosa memória.
O pior foi tal Sábio ter proclamado que aqueles Deuses
Eram apenas uns ignorantões, que nada sabiam
Sobre os pesos atómicos das pedras, a química da água
E a digestão dos animais. Consta que os Deuses
Apercebendo-se do erro fatal em que tinham incorrido
Quiseram abolir a Criação. Já não foram a tempo
Porque então já as gotas eram rios, os rios, mares,
As ervas , bosques, os animais, rebanhos.
E os homens, depois da globalização, tornaram-se todos sábios
Para descobrirem o melhor processo de demostrarem a inexistência
De todos e de cada um dos Deuses. Consta que não estão a ter sucesso
(Apesar de licenciados, valha-os Deus, valha-os os Deuses).
E por cada madrugada há mais e mais gotinhas, amando-se
Ao sol indeciso da manhã. Deus ( a existir ) seja louvado, por isso.

5 de abril de 2012

NOTAS DE UM POBRE E MORTAL AGNÓSTICO - (2)

Falámos na representação antropomórfica do Divino. Hoje daremos algum espaço às suas manifestações históricas. Se o Divino é Uno e Único, então a sua concretização histórica deveria também ser unitária. E os seus princípios normativos deveriam ser os mesmos. Mas não é isto que se verifica. Assinale-se, desde já, este imenso paradoxo: as religiões monoteístas falam em abstracto de um Deus único e depois particularizam-no historicamente com um invulgar sentido de exclusividade. Para os cristãos, o Deus Único é Jesus Cristo; para os maometanos é Alah; para os judeus é Iavé. Mas Cristo, Alah e Iavé não se manifestaram através do mesmo lastro histórico, não viveram de igual modo as suas experiências de concretização histórica e nem sequer respeitaram as mesmas cronologias: Iavé é mais antigo do que Cristo e este mais velho do que Alah. Claro que quem quiser sustentar estes tipos de religiosidades, a tudo o custo, dirá que tudo isto é manifestação de um só e mesmo princípio, que a linguagem de Deus é simbólica e blá-blá-blá … Mas, a ser isto verdade, então mal se compreende que ao longo da história da Humanidade tenham campeado inenarráveis formas de mútuas perseguições religiosas e de intolerâncias abomináveis. Tudo isto, esta sanha dos cristãos contra os judeus e dos maometanos contra todos os outros – e de todos os fiéis contra todos os “cães infiéis” - ( a terminologia é, no mínimo, uma maravilha de bom senso e de humanitarismo…) – tudo isto constitui a forma acabada da perversão humanitária. Também os tais princípios normativos divergem: a Thora é muito distinta dos Evangelhos e estes muito diferenciados do Corão. Depois, é fácil perceber que todas estas religiões monoteístas são tremendamente misóginas: as mulheres são mantidas sob suspeita. Nuns casos são vistas como as “serpentes do mal”; noutros, como absolutamente subalternas ; noutros, como simples desencadeadoras de orgasmos de serralho. Já ouço os defensores destas coisas (ia escrever patranhas, mas coíbo-me por respeito a quem não pensa como eu) , todos esses defensores dirão que o que aqui alego é marginal à essência da doutrina, à Vontade de Deus, e mais blá-blá-blá … Em suma: as três religiões monoteístas possuem a especificidade de virem introduzir, relativamente ao todo da espécie humana … o politeísmo! Admirável coerência! E todos vêm a terreiro bradar, em muitos casos com profundíssima indignação: “Não, a MINHA religião é a ÚNICA verdadeira”. E eu lembro-me do profundo e saudável relativismo que comanda tudo e quedo-me. A única Verdade Absoluta é a que nos diz que NÃO HÁ verdades absolutas.