28 de dezembro de 2007

PEDRO PESCAVA HOMENS


Pedro pescava homens e limos velhos
Na borda dum infeliz lago galilaico.
Alguém o avisara que por cada alma
Filada, escorchada e ao sol espalmada
Um Deus viria pregar-se numa cruz
Com Mãe e Madalena e soldadesca ébria
A compor o quadro choradinho do Calvário.
Pedro fizera farta pescaria de fadigas sem fim
Mas só lograra arpoar um vagante madeiro
Que boiava na babugem aquosa e penitente,
Na borda do infeliz lago galilaico.
Pedro imaginou então que os restos do pútrido
Madeiro mais não fossem que os restos pecaminosos
De homens refractários ao quadro choradinho
Daquele Calvário sem Mãe, sem Madalena
Sem soldadesca ébria a jogar dados.
Pedro, então perplexo, perguntou aos céus
Ou a si mesmo, ou mesmo a ambos, se mais sagrado
Seria o Calvário composto por Mãe, Madalena
E ébria soldadesca ou a podridão dos restos
Do madeiro, onde teriam pregado não um macerado
Deus mas a chusma orgiástica, pecaminosa
De transviados e terrenos penitentes.
Pedro, o pescador de homens e limos velhos
Passou então a querer filar na borda
Dum infeliz lago galilaico o mais sofrido de todos
Os homens, tendo como certo que assim poderia
Pescar o maior de todos os Deuses, na borda desse lago
Sem Mãe e sem Madalena, mas com a infinda compaixão
Do maior dos Calvários, onde agoniza a humana condição.

22 de dezembro de 2007

NATAL 2007

Ninguém sobrevive sem mitos ou, pelo menos, ninguém prescinde do mito de si-mesmo. Este confunde-se, no limite, com a auto-estima. Se é assim com os sujeitos individuais, também assim é com os sujeitos colectivos, quer se lhes chame corporações, sindicatos, grémios, associações ou nações. Importa sublinhar que cada um destes sujeitos colectivos engendra, a partir de si mesmo, formas típicas de representação. Elas decorrem de todo um acumular de experiências, belas ou feias, arrebatadoras ou vexatórias, imanentes ou transcendentes, imediatas nuns raros casos, mediatas na maior parte dos mesmos. Tanto faz que estes momentos de identidade sejam designados por paradigmas, símbolos ou padrões; é indiferente que uma turbamulta de bem-pensantes os negue ou vitupere; é ocioso que façamos de conta que eles não existem. A sua força ontológica é tamanha que se nos impõe sem contradita, com a mesma naturalidade das montanhas ou das estrelas.
Somos ocidentais, europeus e cristãos – queiramo-lo ou não. E, ao sê-lo, por muito grande que possa ser a nossa indiferença religiosa ou até a nossa militância ateísta, o tema do Crucificado vem até nós e subjuga-nos – ao menos uma vez por ano.
Na história do pensamento ocidental foram feitas as mais esforçadas tentativas para a aniquilação desta espécie de mito identitário, sempre sem resultados. Referindo apenas a Época Contemporânea vislumbramos, como momentos supremos de negação, a tentativa dos revolucionários franceses de 1789 e os cultos de substituição nessa altura encetados, desde a Teofilantropia ao Culto Decadário, passando por todas as modalidades de Panteísmo ou de Religião Natural; veio também Augusto Comte e a sua Religião da Humanidade; apareceram seguidamente Marx e Engels e os diversos ateísmos radicais do século XX. O Supliciado do Gólgota resistiu. Parece até que resiste tanto mais quanto maior é a visível decadência institucional das suas Igrejas. Por que acontece então isto? Porque Cristo é o perfeito emblema simbólico do drama humano. Ele recolhe os vagidos inocentes do nascimento – e faz-se Natal ; depois, acompanha a história da luta pela sobrevivência das nossas mais convictas verdades – e faz-se Pastor; e é ainda Ele o depositário de todas as nossas fragilidades, de todas as nossas dores, de todas as nossas decadências, de todas os nossos pressentimentos de finitude – e faz-se Paixão. Assim, como emblema do que fomos sendo na multissecular estrada do Ocidente, a história de Cristo deixa de ficar contida em si mesma para passar a ser o elo de suporte entre todos e cada um.
Escrevo isto porque sou religioso? Não. Sei-me agnóstico. Escrevo isto porque sou, como quase todos nós, um cristão do Ocidente.

8 de dezembro de 2007

O NÚMERO DA BOLA

Na loja do João Vendeiro compravam-se, naquele tempo, rebuçados coloridos. Vinham em caixas oblongas, já a ameaçar ferrugem, embrulhados em papéis baratos. Sabiam a açúcar mascavado e faziam apodrecer os dentes. Mas era neles que vinham enrolados os cromos dos jogadores de futebol, que deviam ser colados numa caderneta a adquirir, como instrumento excedente da colecção a fazer. Era um jogo aliciante e um desafio que durava muitos meses. Quando faltavam cromos mais difíceis, os interessados interrogavam persistentemente outros coleccionadores e propunham-lhes trocas de mútua vantagem. O objectivo não consistia apenas em preencher todos os lugares destinados às vedetas do futebol. Um dos números era dificílimo, dado que dele só existia um solitário e esquivo exemplar. Dava pelo nome do “número da bola”, uma vez que a caderneta completa significava a automática entrega de uma fascinante bola, em couro autêntico, novinha em folha, a fazer negaças de uma das prateleiras da venda do João. O que se estranhava era que o “número da bola” e o prémio previsto contemplassem sempre os rebentos da família do João Vendeiro.
Só hoje me apercebo que aquele episódio menor da minha existência infantil condensava uma parábola de vida. Dou comigo, desde sempre, a tentar completar o meu “puzzle” ; apercebo-me que há graus diferentes de dificuldade, na porfia pela obtenção dos rectângulos coloridos; reparo que este mundo está repleto de Vendeiros pérfidos na sua duplicidade e na sua molúria; acho que o “número da bola” acabará por ser entregue a um qualquer afortunado traste, que nem sequer teve de se esforçar para concluir a sua colecção; e sei que, apesar de tudo isto, continuarei a acalentar no meu peito o desejo de conquistar aquela bola fatídica, ainda agora a contemplar-me de uma das prateleiras da tasca do João Vendeiro.

23 de novembro de 2007

( ? )

Gosto de pensar que um dia voltarei.
Gosto de pensar que quando morrer
(Daqui a dois ou três séculos vou morrer,
Podem crer ! E voltarei sedento e lento)
Serei um tapete de nuvens no fundo de mim.
Gosto de pensar que sou corpo imortal
Numa alma mortal parida em solilóquio.
Mas o que eu gosto mesmo de pensar
É que o meu tempo se distende como iô-iô
Para cima e para baixo do que sou.
Gosto de me pensar cogumelo em micélio
No meio de uma floresta verde e parva
Onde vagueia uma Branca de Neve
Vagamente prostituta que me enerva.
E hei-de ser também um vagalume
Portador do lume vago do que jamais será.
Mas o que gosto mais de pensar, como o mocho
Sábio da fábula de Esopo ou La Fontaine
É em ser eu próprio, no colo d’uma tipa
Que até pode ser a tal Marlene do Anjo Azul.
Pendem papagaios esparvoados e colados
Nas costas do Peter Pan
Nos braços do Sandokan
Nas coxas do Anjo Azul.
Tudo isto é grandioso. E taful .

12 de novembro de 2007

TIMOR-PAVOR


O poema que hoje aqui transcrevo é datado quanto à particularização dos eventos históricos que o fizeram nascer. Mas creio que o não é quanto à especial fereza do homúnculo em que poderemos transformar-nos, bastando para tal o império do ódio, a urgência da vingança, a exigência do interesse ou apenas o abandono ao nocturno magma dos nossos instintos mais reptilianos.

Não me peçam que escreva sobre Timor.
Dilacera-me escrever sobre Timor
Porque Timor é agora a Besta galopante,
O Mal infrene, o fétido bafo do Inferno.
Vexa-me falar de Timor porque Timor
É a espécie humana virada do avesso,
O outro lado do pesadelo que nos habita.

Não me peçam que diga sobre Timor
Uma só palavra murmurada
Um só e final som ciciado
Um único e vago suspiro.
Eu temo ser um Aitarak
À espera da oportunidade genocida.
Eles, os Aitarak, são mamíferos
E bípedes de imagem similar
À minha própria imagem.
Foram paridos como eu
Em gestação de nove meses.
Têm o polegar oponível
E a postura erecta
E tudo isto parece ser igual
Ao meu próprio polegar,
À minha própria postura.
Eles, os Aitarak, terão já tido
Doenças como algumas
Das que me fizeram sofrer
E mulheres como algumas
Das que me fizeram amar.
Olhando-me na vidraça
Eu me pergunto
Se o Homem abstracto,
Maravilha verbosa
De Platão e Kant,
De Rousseau e Nietzche,
De Santo Agostinho e Unamuno,
Não será no concreto
Um Aitarak, só um Aitarak
Não mais que um Aitarak
A que se juntou perfume,
Gravata e código civil.

É sobretudo esta suspeita
(A da espécie humana
Não ser mais do que um vómito
De infâmia, composta pelas fezes
Da mais pura perfídia) ,
É sobretudo esta dúvida
(A de não sermos todos senão
Homicidas a que faltou
Oportunidade de matar)
Que torna Timor
A suprema vergonha
De toda a raça humana de mortais.


Coimbra, 9 de Setembro de 1999

9 de novembro de 2007

CORPO E ALMA

Acabamos por não pensar muito nisso, é certo. Mas o existencialismo tem razão, quando nos declara que somos uma vida concreta antes de podermos ter a consciência de que também somos uma substância pensante, um cogito, tal como Descartes o quis definir. Foi esse o tal “erro de Descartes”, título de uma obra de António Damásio? Não sei. Quanto a mim, não basta a prova de que um ser humano, com uma cabeça trespassada e com zonas encefálicas lesadas perde por inteiro a consciência moral. É que entendo tão redutora a ideia de um primado da matéria sobre o espírito quanto a tese contrária. Parece-me, isso sim, que as manifestações materiais e as explicitações espirituais ganham invariavelmente, em momentos cruciais, em situações-limite, uma autonomia que nos leva a conhecermo-nos como se fossemos apenas matéria ou apenas espírito, conforme os casos em equação. Nos textos de Albert Camus, os seres humanos perseguem e prosseguem a existência como se a vida fosse um absurdo sem saída, como se as evidências físicas se esgotassem no incaracterístico, qualificação semelhante à das prescrições morais. Ou seja: é mais frequente do que parece que um homem ou uma mulher se enrolem totalmente numa das fracções da sua natureza, dita simbiótica. Um homem propõe-se viver e tem esperanças na escolha – é um espírito em livre golpe de asa e o corpo não é mais do que um acidente secundário. Um homem quer morrer e sente que a perseveração na existência é um absurdo – é um corpo que se afunda nos seus próprios limos, para quem a fenomenologia do espírito não é mais do que o anedotário do nada. Talvez que a maior servidão da antropologia ocidental repouse no princípio da razão suficiente, na aparente força de uma causalidade estrita, que pretende, a todo o custo, manter-nos, em todos os momentos e situações, prisioneiros de uma ficção: a de que temos de ser corpo e alma, em hierarquia conveniente, conforme as chamadas “provas evidentes” da “demonstração científica”.

5 de novembro de 2007

SACRALIZAÇÃO DO PODER

Qualquer manual de sociologia política nos garante que toda a sociedade organizada colhe a sua identidade a partir da instauração de um foco de Poder. O grupo reconhece a sua coerência a partir da sua anuência a uma proposta de legitimação que promana de um instituidor, ou seja, de um legitimador originário. É este contrato social que unifica a colectividade e se opõe a todas as tendências dispersivas que dentro dela possam manifestar-se. O cimento agregador da homogeneidade grupal resultará, portanto, da submissão de cada um ao conjunto das normas obrigatórias para todos. Mas o instituidor, proponente do contrato social, quebra esta regra da igualdade no próprio momento em que a propõe. Atentemos no facto da legitimidade do instituidor não ser colhida a partir do exterior, isto é, a partir da sua subordinação a uma proposta exógena, diferenciada de si mesmo, vista como outra, mas ser estruturada a partir do seu reduto interior, da sua vontade endógena, sentida como intrinsecamente sua. O Poder do instituidor assenta, portanto, na diferença, mesmo quando a sua intenção primordial proclama o propósito de aniquilar todas as diferenças individuais. O titular do Poder é encarado, portanto, como diferente. Ele furta-se aos próprios princípios de legitimação de que foi proponente. Na realidade, todos se submeteram à sua vontade e se moldaram aos seus pressupostos. A percepção deste estatuto de diferenciação e de excepcionalidade provoca nos demais um conjunto de reacções típicas de pasmo e de assombro. Esse titular ilegítimo da fundamentação social legitimadora – dizemos ilegítimo, porque se limitou, originalmente, a um exercício de auto-legitimação – , longe de ser punido pela sua diferença ostensiva, é compensado pela outorga e investidura de uma condição de superioridade. O colectivo, o todo tribal doravante homogéneo, reconhece-se unificado por um potente acto de vontade que o transcendeu e que se situou fora dele e para além dele. O significado de tudo isto é transparente: o Poder ganhou dimensões sacrais e expressões de religiosidade. O respeito, a mesura, o reverencial temor que o sagrado implica, sendo reconhecidos como potentes instrumentos de submissão social, fornecerão aos usufrutuários do Poder uma legitimação a posteriori indisputada e indiscutível.

30 de outubro de 2007

SEGREDO

Quero dizer-te uma coisa ao ouvido
só p’ra ti.
mas tens de prometer-me
que do que te disser
nada será revelado.
Um segredo? É isso
querendo eu que fique bem guardado
dentro de ti.
Talvez um dia o possas dizer
(sabe-se lá)
a um filho, a um amigo,
a um amante
e a todos pedirás
como eu o faço agora
que tudo fique guardado
e secreto
num tempo e numa hora.
Há coisas mil que ninguém pode
confessar.
Mil coisas há que todos podem
amar.
Do mesmo modo que existem
(oh, se existem)
amores inconfessados
parados
nas gavetas do tempo
ou nas pregas
da memória.
Tu sabes lá
como em certos momentos
o mundo todo
imenso, poderoso e discordante
vem ter conosco
e nos responde
a cada paradoxo
suplicante.
Tu sabes lá
por que paragens
vogou meu livre pensamento
em que viagens
sulcou por terra e mar
o mundo todo.
Tu sabes lá
com que estranha estranheza
inventamos a natureza
de uma pequena decepção
ou o marulhar do mar
de uma imensa paixão.
Não, tu nada podes saber
de tudo isto
pois ficaste encalhada
(coitada, coitada)
entre Maomé e Cristo
pois ficaste ancorada
nesse canto
obscuro.
Vem , anda cá
ouve enfim meu segredo
vem até mim
sem ontem e sem medo.
Estende-me a concha desse ouvido
ávido de verdade
e de ilusão
Ouviste bem agora?
Não?
Que pena!
Passou por mim a hora
De tal inconfidência.
E agora?
Agora nada !
Fiquemos por aqui
tem paciência …


22 de outubro de 2007

INSTANTE

Alvoradas, crepúsculos,
Restos de mim, opúsculos
De capa rota e parda.
Um conto sem final;
Assim sou eu agora:
Um relógio sem hora
Uma estátua de sal.

19 de outubro de 2007

A ARTE DA HISTÓRIA

Falemos um pouco da Historiografia e do modo de a “construir”. O insuperável embaraço de leituras militantes, ideologicamente comprometidas, à direita ou à esquerda, reside numa grelha de interpretação que opera com categorias a priori, das quais irrompem coloridas apoteoses ou sombrias fulminações, consoante as conveniências do momento. Mas a ponderação shakespeariana de existirem muito mais coisas no céu e na terra do que as que se encontram a operar nos limites de uma epistemologia preconceituosa é aquela que nos permite discernir, no campo da gesta histórica, entre os historiadores submetidos ao princípio da realidade e os novelistas usufrutuários do princípio do prazer. Esta terminologia, colhida de empréstimo à psicanálise, não visa empurrar para o divã qualquer historiador em concreto.
A sociologia do conhecimento já provou, desde há muito, que nenhum autor é “neutral” a escrever. Quem escreve, parte para o acto da escrita com um conjunto de servidões inevitáveis, de base ideológica, as quais incorporam a magnitude de uma formação prévia e até o acervo de um léxico intransmissível. Assim, é saudável que o escritor aceite com humildade a sua condição de indagador precário e não se aliene ao mito das pretensas verdades absolutas. Para mal da História e dos historiadores, sobejam hoje os “teólogos de Clio”, atulhados de certezas balofas e de intocáveis conclusões. Volitam nos céus da arrogância e orgulham-se de serem os arautos de uma “Ciência” acabada, entendível apenas em círculos iniciáticos. A pretensão de “neutralidade” anda invariavelmente associada a esta liturgia axiomática. É recomendável que se fuja o mais que se puder desta casta de “historiadores-cientistas”. Em nossa opinião, é sempre preferível o “historiador-artista”, metodicamente duvidoso, praticante de um rigor que não desdenha a intuição e de um esforço de objectividade que não enjeita a quase inevitável superação futura das avaliações presentes. A Arte, para nós, é isto mesmo : uma organização peculiar de formas, sons, cores, palavras, sensações e vivências, através das quais se persegue a demanda prometeica que nos conduz mais perto do Fogo e nos agrilhoa, logo de seguida, à rocha agreste da punição. Tal castigo não é mais do que a comprovação do nosso indómito desejo de conhecer, ao qual se associa o reconhecimento da debilidade com que abraçamos o desafio da cognoscibilidade.

10 de outubro de 2007

HOMENAGEM A J. S. DA SILVA DIAS

O que hoje sou, como académico e universitário, devo-o ao meu falecido Mestre. Foi ele o Professor Doutor José Sebastião da Silva Dias. Para além de ter criado, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Instituto de História e Teoria das Ideias, o Professor Silva Dias reuniu em torno de si um grupo de jovens investigadores que cresceram sob a sua alçada e que – sem omitir por falsa modéstia o facto de me saber aí incluído – revolucionou, após a mutação do 25 de Abril de 1974, a metodologia e a substância do conhecimento histórico português. Esse núcleo de estudiosos congregava nomes tão relevantes quanto os de Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Zília Osório de Castro e José Esteves Pereira, entre outros. Por isso, a minha chegada e posterior integração numa plêiade tão notável produziu no meu ânimo uma impressão comparável à do néscio entre doutores.
Embora habitualmente afável e de trato correcto, o Professor Silva Dias cultivava um pouco a postura do pedagogo paternalista, credor do temor reverencial devido por neófitos às sumidades instaladas. Eu acabara de sair de uma carreira técnica: fora Conselheiro de Orientação Profissional do Serviço Nacional de Emprego, estrutura que apoiava o recrutamento de candidatos aos diversos cursos profissionalizantes então ministrados em específicos centros de formação. Era nula a minha experiência nos domínios da investigação histórica. Como então estivessem a ser publicados os primeiros números da “Revista de História das Ideias”, o Professor Silva Dias logo incumbiu os seus colaboradores do labor de produzirem para ela substanciosos artigos científicos. Quanto a mim, fiquei aterrado quando verifiquei … que não sabia o que era isso da investigação histórica. Dei-me ao ensaio, com reduzido êxito, de diversificadas técnicas de catalogação e de alinhamento bibliográfico. Mas daquela mole imensa de resumos, notas, comentários, adendas, remissões e auxiliares de memória, daquela estupenda e estupidificante Babel de erudição, não havia meio de sair um artigo digno de tal nome. Decidi encarar de frente a minha ignávia, a minha entranhada e insuperável inépcia, indo pedir ao meu Mestre e mentor o avisado conselho que me libertasse das angústias da impotência. O professor Silva Dias acolheu-me afavelmente no seu gabinete, disparando, depois de me saber bem sentado :- Então Carvalho Homem, o que é que o traz por cá? Engasguei então duas ou três frases desconexas, antes de ganhar coragem para confessar, despejadamente: - Acontece, senhor Doutor, que eu não sei investigar; vim aqui pedir ajuda. Numa palavra, como é que se investiga, senhor Doutor? O rosto do meu Mestre animou-se com os sinais de uma divertida surpresa. Ajeitou uma melhor posição na cadeira, antes de replicar: - Ora essa, Carvalho Homem; saber investigar é como aprender a nadar. A pessoa lança-se à água e esbraceja, esbraceja, até lhe apanhar o jeito. Quando tal acontece, essa pessoa fica a saber nadar. E calou-se, logo de seguida, fitando-me prazenteiramente por detrás dos seus óculos de tartaruga. Meio aturdido, mas disposto a não depor as minhas armas sem uma total clarificação, engatilhei então a pergunta óbvia: - E se a pessoa esbracejar, esbracejar, voltar a esbracejar, e mesmo assim não aprender a nadar? A réplica veio logo de seguida, com a inexorável frieza das coisas taxativas: - Se não aprender a nadar, não há novidade. Afoga-se. Tem a sorte que merece, não acha?
Confesso que nessa altura tal juízo me pareceu tão rude quão cruel. Foi necessário que eu tivesse aprendido a nadar para me aperceber da subtil sabedoria implícita, contida nas palavras do professor Silva Dias. Por isso lhe guardo o respeito a que a sua memória faz jus. Hoje, um desses pseudo-pedagogos de plástico talvez tivesse respondido ao meu aflito inquérito com as seguintes considerações: - Investigar? Mas para que diabo quer você investigar? Vá à Internet, meu amigo. Vá lá e compre uma investigação já feita. Um mestrado é barato! Um diploma de doutoramento custa um pouco mais. Mas vale a pena gastar dinheiro em obra asseada, não lhe parece? Investigar! Isto é que ele é parvo …
Como me orgulho de ter sido discípulo do saudosíssimo Doutor José Sebastião da Silva Dias! Que a terra lhe seja leve!

8 de outubro de 2007

OLHARES

Existe no olhar qualquer coisa de perturbante. Recordo olhares que profundamente ecoaram em mim, como se houvesse (e havia …) toda uma mensagem a encher o espaço que ia dos meus olhos àqueles outros que me fitavam.
Era eu pouco mais do que um miúdo, quase às portas da adolescência. Os meus pais decidiram acolher lá em casa uma trintona gorda, amiga de uma irmã que tive um dia. A dita mulher padecia dos nervos ou encontrava-se, se bem me recordo, à beira de um profundo distúrbio psicológico. Arrastava as palavras, apresentava o esboço de um sorriso triste e olhava as coisas de longe, fazendo crescer o espaço que mediava entre os seus olhos e os alvos em que o seu olhar se espreguiçava. Ouvia Stravinsky de manhã à noite, num gira-discos portátil, de marca “Dual”, que conseguira obter dos meus pais. O Stravinsky que eu ouvia era muito similar, segundo me parecia, ao olhar da trintona anafada. O “Pássaro de fogo”, que soava na grafonola, apresentava-se-me como um mergulho no vago, uma vez que os meus ouvidos não sabiam entender aquela estranha música, feita de estridências e de murmúrios para iniciados. Acabei por amar aquela música e por venerar aquela mulher. Ou teria sido o contrário? Ou afinal dei comigo a venerar Stravinsky e a amar aquela fêmea de ventre búdico? Não sei. O que recordo é a ondulação de um olhar-brisa, lambendo as coisas sem as esmiuçar. Desde aquele tempo, o olhar das pessoas é uma obsessão privativa com que componho as mais bizarras hipóteses. Aprendi, por exemplo, que a melhor forma de aquilatar da verdade caracterial de alguém é olhar esse alguém bem no fundo das pupilas. Poucos aguentam tamanho esforço de trespasse e ultrapassagem da barreira da visão, sobretudo quando os observados se sentem prisioneiros de algum remorso ou de alguma servidão de consciência. Mas os que logram resistir a esse exercício de resistência são os que gosto de contar no meu caderno de indefectíveis. Tive a penosa mas também decisiva experiência de assistir aos últimos momentos da minha mãe. Fui encontrá-la em estado de choque – nunca pude saber que choque era aquele e que causas lhe estiveram associadas. O olhar dela, que conhecera tão solto, tão meigo, tão cheio de mil aromas, aquele doce olhar encontrei-o eu vazio como um templo saqueado. Foi então que senti que o meu “Pássaro de Fogo” tinha cantado pela última vez. Voara para algures, sem ter tido tempo de me dizer um derradeiro adeus. E ainda hoje, quando escuto Stravinsky, sou tomado do remorso de não ter colhido e guardado no meu cofre mais bonito o último olhar vivo e quente daquela que foi, desde sempre e para sempre, a mais importante Mulher da minha vida.

28 de setembro de 2007

O NASCIMENTO DA IMAGEM


O mundo era ainda muito novo quando a rapariga se apaixonou. Era filha de um velho oleiro e a mãe falecera na sua meninice. O pai ensinara-lhe tudo e até a havia instruído nos segredos da sua arte. Naquele tempo, o barro servia apenas para modelar objectos de uso corrente: bilhas de vários formatos e capacidades, escudelas bem redondas ou vasos de utilidades múltiplas. Os usos e costumes puniam com rigor a cópia ou tentativa de reprodução da figura humana. Acima de tudo, proscrevia-se a reprodução dos rostos. A fisionomia de cada um albergava uma sorte de “pneuma” ou de imaterial conteúdo constitutivo que se considerava degradável pela simples tentativa de cópia. Por isso, o velho oleiro dissera à filha que ela poderia fazer, na sua oficina, todas as coisas que lhe aprouvessem, desde que se submetesse ao compromisso de jamais modelar um rosto com as suas próprias mãos. No dia em que a rapariga soube que o seu apaixonado iria partir para longínquas paragens, o seu coração, angustiado, procurou desesperadamente um meio de mitigar a dor imensa que já nela se acumulava. Os primeiros meses de separação foram particularmente atrozes. A filha do oleiro procurava reter na memória as particularidades do rosto amado, desde a ondulação dos cabelos à amplidão da testa, desde o desenho do olhar à geografia do sorriso. O pânico apoderou-se dela quando, passados alguns anos, lhe foi dado verificar que a fisionomia da seu amado já não se recortava com nitidez nos registos da memória. O ondear do cabelo era como o balançar da maresia ou como a dança da seara? E que distância exacta separava a base do nariz do bordo superior dos lábios? Não estaria o sorriso a converter-se num esgar? Foi então que a tentação perverteu o seu compromisso de sujeição às ordens paternas. Tomou o barro nas suas mãos e com ele reproduziu, tão fielmente quanto se recordava, o rosto ausente do seu apaixonado. Assim nasceu a Imagem, filha de um Amor nostálgico, registo incompleto de uma Paixão insubmissa, transgressão de um tabu primitivo. Foi então que se provou para todo o sempre que essa sorte de “pneuma”, esse espiritual conteúdo, enquanto propriedade de quem parte, reverberava de si para o seu duplo, para tornar menos amargas as privações da ausência.

17 de setembro de 2007

LOUCURA E MORTE DAS AVES: HIPÓCRATES E DEMÓCRITO



I

Hipócrates de Cós dormitava na surdina da tarde quando um servo o abanou levemente, dizendo : - Senhor, senhor, estão aí os representantes dos senadores da cidade de Abdera e dizem ser-lhes absolutamente necessária uma audiência.
-Uma audiência? Mas afinal que se passa ? resmungou Hipócrates, ainda ensonado.
- Eles não dizem, senhor, eles não querem dizer. Mas a expressão de todos é grave e por aí se pode calcular que deva tratar-se de coisa importante.
- Gente de Abdera, dizes tu? Abdera é sítio de ilustração e de pensamento. Conhecem por lá as minhas receitas e infusões e os meus processos curativos. Bem, diz-lhes que venham até aqui.
Hipócrates sacudiu de si o resto do torpor estival e procurou adoptar uma postura que quadrasse ao seu reconhecido prestígio de restaurador de corpos e de almas. Passados uns instantes, entraram na sala três homens, atilados e cortejadores, que o saudaram com muito respeito e também com uma ponta de temor. O mais velho – que era também, por sinal, o mais encorpado – adiantou-se dois passos e aguardou. Hipócrates saudou-os colectivamente com estas palavras:
- Ilustres visitantes, a minha casa é vossa, mas dizei-me ao que vindes.
E logo o mais idoso, reincidindo na reverência, retrucou:
- Sapiente Pai do saber curativo, a cidade de Abdera sauda-te por nosso intermédio e envia-te augúrios de longa e feliz vida. Estamos na tua presença por insistência dos mais grados Senadores da nossa terra. Todos nos sentimos aflitos, bom Pai. O nosso maior pensador enlouqueceu.
- Como?, disse Hipócrates, Demócrito está enfermo?
- Pior, muito pior. Demócrito perdeu-se de si próprio. Mas não estamos autorizados a adiantar mais nada. As nossas ordens são imperativas. Ide, trazei Hipócrates por qualquer preço e levai-o à presença de Demócrito. E que seja Hipócrates, liberto de opiniões profanas, a traçar-lhe o incerto amanhã.
Hipócrates cofiou as barbas, tartamudeou uma rezinga que ninguém entendeu e acabou por dizer: - Não irei pela recompensa. Nem sequer por Demócrito. Irei, isso sim, pela sabedoria que Demócrito recolheu e transformou, a partir do Génio antigo.

II

Quando Hipócrates se acercou do tugúrio de Demócrito, em Abdera, verificou estar o chão juncado de aves evisceradas. Eram aves de diversos portes e de penas e penugens variegadas. Mas em todas fora feito, na zona do papo, um golpe fundo, longitudinal e pouco misericordioso. Algumas das vísceras, completamente destacadas do corpo da ave, jaziam abandonadas, exalando algumas delas um cheiro activo, a concitar a náusea. Mais impressionante do que tudo era, porém, o gargalhar que se ouvia distintamente, a partir do interior da morada.
Hipócrates chamou, a meia voz, com uma infinita doçura, fruto de quem respeita a Dor e a Sabedoria: - Demócrito, sou eu, o velho Hipócrates. Quero ver-te e ouvir-te. Por que ris? E quem é o alvo da tua troça?
Quando Demócrito se mostrou à luz do claro dia, os seus olhos apresentaram-se cansados e cavos, repletos de noites por dormir. Da sua figura, escanzelada e suja, destacavam-se uns braços mais compridos do que se esperaria e tão esquálidos como o resto do corpo. As mãos ossudas de Demócrito agitavam-se descoordenadamente por cima da sua cabeça; numa delas, um pássaro debatia-se inutilmente, procurando a fuga salvadora. Mas o que verdadeiramente vogava por sobre a cabeça de Demócrito, de Hipócrates e do pássaro era um contínuo e manso gargalhar, que levemente lhe agitava o tronco, como se fosse uma brisa a separar vimes ou bambus. Era mais ou menos assim a melopeia de Demócrito: - Aves do Hades ou do Olimpo, Deuses servidores de Zeus, eflúvios da Terra, emanações astrais, supurações do ventre terreno, eh! eh! eh! , tudo isto se junta em simulacros, eh! eh! eh! eh!, tudo é simulacro e tu também, Hipócrates. Eh! eh! eh! isto acaba por ser tudo a mesma coisa, quer seja ave, boi, cavalo ou javali, eh! eh! eh! também tu, ilustríssimo Hipócrates, és (como eles) um corpo cheio de buracos e de canais, inumeráveis canais, todos a verterem fluidos uns para os outros, eh! eh! eh! e a ficares melancólico, triste como a noite, quando a bílis negra se acumula onde não quer. Eh! eh! eh!, como é divertida a ignorância dos que julgam saber …
Hipócrates obtemperou então : - Vem daí o teu riso?
E Demócrito, sempre a rir, respondeu: - Não, o meu riso vem dos Deuses, eh! eh! eh! ; se queres mesmo saber, o meu riso vem da Deusa que me comanda a mão e me obriga a escrever o tratado que já se continha nas vísceras das aves. Eh! eh! eh!, tu bem sabes, tão bem como eu, que os guerreiros só partem para a guerra quando o coração das aves se orienta para o centro do horizonte, eh! eh!, como é cómico saber que um combatente, para ser bom, combate melhor pela orientação do coração do que pela força da espada , eh! eh! eh! …
- Que tratado escreves tu ?
- Má pergunta! Melhor seria que me perguntasses pelo livro ditado pela Deusa, em cada intervalo das minhas eviscerações, eh! eh! Mas aí vai – escrevo um tratado, por Ela segredado, sobre a loucura dos homens. Belo tema, não achas, eh! eh! eh!...
- E que dizes tu (ou a Deusa por ti) nesse tratado, meu pensador?
- Eu só posso dizer o que me é confiado pelo bico agonizante das aves. A Deusa diz o resto. Os pássaros só me falam ao crepúsculo. Vê tu bem, eh! eh! eh!, ao crepúsculo… É quando a bílis negra se concentra toda nos orifícios das asas, obrigando-os a perder o norte e a rasar os campos das batalhas, eh! eh! eh! O destino dos animais joga-se em cada poro. Mas é pobre o meu saber. Também ele acaba eviscerado, entendes isto, eh! eh! eh! ?
- Estou a entender-te, Demócrito. Mas, diz-me, diz-me por Zeus, rei dos Deuses, que segredo te revelou a Deusa?
- Eh! eh! eh! Ela provou-me que os homens não devem ser levados a sério. Ela garantiu-me que os homens se julgavam sensatos quando praticam a maior das suas loucuras, ou seja, quando julgam acertado tudo submeter ao império dos seus desejos privados. Homens tolos, eh! eh! eh! ; homens cegos, eh! eh! eh!... Neles se espalha e concentra, nos tubos e lugares mais inconvenientes, a bílis negra. Eh! eh! eh! eh! Negra como a noite, como o Mal, como o Hades. E quanto mais espessa e letal, quanto mais depositada nas vísceras e poros da Vida, mais os homens se julgam perfeitos, sensatos, ajuizados. Não te faz isto rir, oh meu insigne julgador? Ri-te comigo, anda. Eh!eh! eh! eh!
E Demócrito ficou a rir-se até Hipócrates desaparecer.

III

Discurso de Hipócrates aos senadores de Abdera

Senhores: Demócrito, o vosso maior sábio, não está louco. O seu estado é de fúria ; mas a sua fúria é de uma inexcedível lucidez. Procurou as raízes da loucura dos homens pelas duas vias possíveis: pela Ciência, eviscerando aves, e pelo entusiasmo, conclamando a Divindade. A Ciência tentou servi-lo com o mapa dos lugares corpóreos onde se acumula e concentra a bílis negra. Mas só a Deusa lhe soube explicar a causa mais funda do movimento dos fluidos. Essa causa é muito semelhante a uma ave que mantemos prisioneira numa das mãos e se solta, triunfal, sem que precise de ser eviscerada. Ao soltar-se, a ave procura a orientação do sol e com ele ilumina o mais fundo dos ânimos humanos. A causa da loucura é agora conhecida por Demócrito. Mas peço humildemente a vossa compreensão. Eu não posso nem devo revelá-la. Nem aqui, nem noutro qualquer lugar mundano. Se o fizesse, é muito provável que eu e vós morrêssemos de riso…

13 de setembro de 2007

A UM FILÓSOFO ANTIGO

Viveu na Grécia
Do saber ancião
Que se venera
Nos livros da tradição.

E disse coisas mil,
Mil maravilhas
Cujo rumor subtil
Semelhava poalhas
De pedaços desfeitos
Na descomposta
Bola de sabão
Da humana natura.

Pasmou o Criador
Da criatura
Gerada
Em sua sombra
Fatigada.

"Que ousio é esse,
Miserando Heráclito ?
Foi com a potestade
Do meu fito
Que a ilusão
Da permanência
Por mim parida
Se aninhou no ventre
Do que chamam real.
É meu desígnio oculto
Alimentar na vida
O mito da constância
Convertido em verdade.
Pretenderás agora
Roubar-me identidade?
Que ousio é esse,
Miserando Heráclito ?"

Heráclito disse então:

"Tão longe, longe estais
Em tão ignotas messes
Que supondes imóveis
As submissas preces
Dos mortais.
Outra morada temos
E tudo mudaremos
Para Vos transformarmos.
Gira no corpo o sangue
Na erva a seiva
E o sémen no sexo.
E tudo reproduz
O seguro amplexo
Da nossa mutação.
Somos teu reflexo ?
Alguns o asseveram.
Destino ou maldição
Nos demos ou nos deram.
Será por Ti a morte
Decretada.
Porém, é nossa a vida
Palmilhada
No sustentável câmbio
Da nossa servidão.
Se isto não entendes,
Se a isto nos condenas,
Se por isto pretendes
Crivar-nos de mais penas,
Faz-te humana e mortal,
Impura e reticente,
Blasfema, venal,
Cruel e renitente
Oh Potestade!
Deixa teu sólio,
Renega teu Empíreo
E faz-te gente.


31 de julho de 2007

BERGMAN E ANTONIONI - HOMENAGEM



Hoje morreu mais uma parte de mim. Desapareceram Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman. Não digo isto para assumir a postura do peralvilho pateta, que se julga entendido e informado – neste caso, entendido e informado em cinema. Digo-o apenas porque quando alguma coisa, algum objecto ou alguma pessoa nos marcaram, o dizer-lhes adeus de uma forma definitiva é sabermos que também nós vamos morrendo um pouco.
Ser-me-ia fácil fazer uma elementar pesquisa e explanar aqui um estendal de citações e de juízos, acerca dos dois Mestres que partiram. Mais difícil é pôr a alma a falar. Mais difícil é procurar nas imagens que persistem, nas memórias que vão ficando flácidas, bambas, pastosas - um pouco à maneira de Salvador Dali - mais difícil, sim, é retirar de tudo isso um fotograma definitivo, uma cena inolvidável, um episódio paradigmático. Com a certeza antecipada de que esse fotograma, essa cena, esse episódio ecoam em nós como se nós próprios os tivessemos vivido por direito próprio.
Selecciono de Antonioni aquela cena d’ O Deserto Vermelho, na qual uma frágil Mónica Vitti, vestida com o bom gosto da burguesia opulenta, procura o biombo de um muro para devorar um pedaço de pão que, salvo o erro de uma memória com lapsos, pedira a um operário anónimo. Qual seria o sabor do pão dos pobres? E que estranha fome teria sido essa, assim sentida como uma urgência sem escapatória? Talvez a da procura da paz, talvez a da conquista do reequilíbrio interior, talvez a da vingança sobre o mundo das imperiosas convenções e do dinheiro duvidoso. Assim me ficou para sempre a imagem dessa angustiada Vitti, docemente transtornada, frágil, quase mística, certamente à procura de si, provavelmente à procura de um mundo onde o pão dos pobres não necessitasse de ser comido pelos ricos nas traseiras de um muro cinzento.
De Ingmar Bergman levarei um dia comigo – para sempre – a imagem do Cavaleiro d' O Sétimo Selo, jogando com a Morte a partida de xadrez que jamais poderia ganhar. Era (lembram-se?) um Cavaleiro fatigado, meio desconjuntado pela fereza de mil combates, mas ainda capaz de disputar o último jogo com Aquela que jamais poderia derrotar. A Morte (lembram-se?) apresentava-se vestida em rigoroso registo de preto e branco, não cabendo nela a impressão da meia-tinta. E em cada lance se sentia que a situação táctica e estratégica do Cavaleiro ia ficando mais e mais desesperada. E por cada movimento de uma torre, de um bispo ou de uma dama, ficava claro que esse último embate do Cavaleiro era heróico, inutilmente heróico, sem saída possível. Eram grandes e redondos os olhos daquela Morte (ou fui eu que os vi assim?) e a intenção que a animava, oscilava entre a compaixão, o tédio e a inexorabilidade (ou fui eu que lhe vesti tais disposições?).
Antonioni e Bergman – duas saudades.
……………………………………………………
E agora? Qual o preço do meu pão?
E agora? Que lance seguinte irei eu jogar no meu xadrez mortal?

19 de julho de 2007

BAUDELAIRE E O RISO

Desde sempre que a tradição cultural do Ocidente se aplica à compreensão do riso. Os deuses da Ilíada são mais risonhos do que os da Odisseia, mas em ambos perpassam brisas de mútuas mordacidades. Hipócrates preocupou-se com o riso de Demócrito de Abdera, aparentemente doentio, e diagnosticou que a causa dos seus males estaria na hegemonia da bílis negra no organismo do padecente. A Idade Média perfilhou um recolhimento sumamente sério na sua vertente oficial, à imagem e semelhança do Deus terrífico do Antigo Testamento e mesmo de um Jesus Cristo que, a dar crédito aos exegetas do Novo Testamento, nunca teria rido. Porém, esta mesma Idade Média descompõe, nos folguedos populares da “festa dos tolos”, da “festa do burro” ou do “riso pascal” a hierática e hierárquica postura dos poderes temporal e espiritual. Rabelais, em pleno século XVI, elevará o cómico grotesco à dimensão de uma filosofia de vida. O século XVII rirá palacianamente, entre as colunas dos palácios, antes que Voltaire traga o riso para a praça pública, fustigando com ele a aliança entre um Altar ultramontano e um Trono absolutista.
Mas será no século XIX que se assistirá ao processo de autoconsciência do riso. Baudelaire foi o autor que lhe tentou apurar a natureza mais íntima. E, à semelhança de uma outra obra sua, viu nele uma flor do mal . A troça, a gargalhada, o motejo limitar-se-iam a denunciar a diabólica convicção de uma superioridade. Rimos dos demais porque nos consideramos superiores a eles, porque nos persuadimos que jamais incorreríamos nas mesmas inépcias, nos mesmos ridículos, nos mesmos primitivismos. O riso seria a expressão do satânico, embora de um satanismo intrinsecamente humano, porque completamente identificado com a forma perversa de encarar a alteridade. Aliás, é esta mesma imposição de alteridade que nos obriga a discernir entre o riso judicativo e condenatório, o tal riso diabólico, traduzível num rir de, por oposição a um riso de acolhimento ou de bonomia social, materializável num rir para, ou ainda a um riso de conluio, de cumplicidade, de convergência fraterna, consubstanciado num rir com. Ora, estas duas últimas dimensões do riso teriam sido completamente ignoradas por Baudelaire, o qual prolongou, em pleno século XIX, as prevenções que os Padres da Igreja projectaram sobre o acto de rir.

16 de julho de 2007

OS FÉRTEIS DESESPEROS

Sento-me devagar.
Há um sol oblíquo nas esquinas do mundo,
Lá fora;
E um inverno esquivo nas fracturas da alma,
Cá dentro.
Ergo-me devagar, devagarinho,
Como se quisesse surpreender os segredos
Dum primeiro dia de Criação.
Movo-me como ébrio, nos confins
Do desespero arguto.
Ai, como me pesa e dói
Esta alma que vive
No luto.

8 de julho de 2007

O "EFEITO DE HALO"

Da crueldade, desse mosto infuso no vinho de todos os homens, deixa que te diga que é um estranho ingrediente, do qual nada sei, talvez por saber sobre ele demasiado. É que todos, em centenas de situações, somos implacavelmente cruéis, mas todos também desejamos manter, perante nós mesmos e sobretudo perante os outros, o alvo manto da inocência.
Há uma hipocrisia superlativa na condenação indignada (que digo eu? indignadíssima!) do Holocausto, da exploração do trabalho infantil, da violência doméstica, da pedofilia, do racismo, etc., etc. Porém, ocorre na nossa esfera doméstica ou privatística uma estranha remissão das culpas que sabemos ter. O objectivo é podermos chegar à Praça Pública com um excelente certificado de bom comportamento civil, ético, social e político, apesar de sabermos, na profundeza implacável das nossas consciências, que somos uns pequenos patifes, em processo infamante de actualização contínua. Já vos falei do “efeito de halo”? Passo a explicar. O “efeito de halo” é a auto-justificação da mais requintada pulhice humana. Imaginemos que alguém, metodicamente, sistematicamente, deliberadamente, projecta o assassinato físico ou moral de alguém. No conciliábulo secreto que precede a consumação do acto, o assassino escolhe as armas, calcula os lances, escolhe os efeitos, selecciona as circunstâncias e planeia até à mais insignificante minúcia o golpe que se propõe vibrar. Logo depois da feliz realização do evento, o mesmo assassino de ontem enceta um ambíguo processo de autojustificação, que se destina ao completo branqueamento da infâmia. Seleccionará então, da vasta panóplia do viver usual, esta afirmação, aquele gesto, o outro comportamento do sujeito por si lesado , para que resulte, de tudo isto, uma espécie de absolvição universal de culpas e de responsabilidades pessoais. Em regra, tais maganões abonam-se com a água benta da simulação e da duplicidade. E ficam possessos quando a imagem laboriosamente construída é desmontada na mesma Praça Pública pelos que lhes conhecem as manhas e lhes apontam a sarjeta. Sarjeta à qual, verdadeiramente, pertencem.

27 de junho de 2007

ORGANIZAR A SOCIEDADE

Vale a pena insistir neste ponto: a proposta válida para um modelo aceitável de organização social e política deverá basear-se numa análise realista da natureza humana. De pouco valerão os conceitos grandiosos, as moralidades atléticas, os épicos esboços de Devir se tivermos esquecido o alicerce estruturante de qualquer proposta viável. E esta proposta , queiram-no ou não os parteiros dos sistemas “a priori”, radica, nutre-se e ganha alento a partir da definição objectiva do que é, irrefutavelmente, axiomaticamente, definitivamente, a natureza humana. Se isto for verdade, será possível sustentar que o que deve ser, formula a sua legitimidade a partir do que é. Temos para nós que não é possível construir um mundo mais justo a partir de uma abstracção, de uma ideia pura, por muito apelativo que se revele o seu poder de atracção. Os grandes mitólogos políticos dos séculos XIX e XX construíram os seus sistemas através da fragmentação do género humano, decretando que uma parcela dele seria, por desígnio providencial, portador de uma Verdade a que se furtava a parte excedentária. Karl Marx tentou opor a autenticidade do operariado à alienação da burguesia, sem ter tido tempo de se dar conta que o alegado triunfo histórico do proletariado mais não era do que o pródromo da constituição da nova burguesia vermelha partidocrática. Por seu turno, Augusto Comte quis entregar o governo da Cidade aos “generais da indústria moderna”, sem se ter dado conta que os “dignos trabalhadores” não poderiam sustentar sem protesto a emergência e a afirmação de uma plutocracia dominante. O que vemos em ambos os casos é uma radical incapacidade para tentar o resolução do “problema humano” a partir dele mesmo, sem sofismas e sem mutilações preconcebidas. Agora dão-nos um mundo globalizado, procuram convencer-nos que a História atingiu o seu fim através do triunfo de critérios económicos de “eficácia”, como se não fosse possível recordar a esta elementar e parcelada “eficácia” a infinita tragédia de continentes inteiros em putrefacção social, como a África e uma boa parte da Ásia. No dia em que for possível a constituição de uma disciplina de Antropologia Social escorada na tentativa de discernir a mais funda intimidade da natureza humana, sem o sofisma e a aberração de um qualquer pretexto sectário, nesse dia talvez eu comece a acreditar que estão prestes a ceder as grossas portas da duplicidade, da hipocrisia, da manipulação e do oportunismo que define esta parte do Universo, onde (tão mal …) vivemos.

21 de junho de 2007

A IMAGINAÇÃO

Seja por força das leis evolutivas que comandaram o desenvolvimento da espécie, seja por imposição e decreto de um qualquer Criador, a verdade é que os seres humanos possuem um especial mecanismo de refiguração da realidade: a imaginação. Actua ela como um duplo ou um eco do que nos rodeia e suscita. É virtual, mas carece da projecção de um cone de sombra, lançado a partir das existências concretas. Salda-se pela activação de um trabalho íntimo, que afeiçoa a nós mesmos as parcelas de exterioridade que cobiçamos de alguma forma. Não é verdade que esta imaginação se destine exclusivamente a sublimar frustrações, embora não seja mentira que a sua força provém da parte incompleta e carente de nós próprios. Tal como a vislumbro e procuro, a imaginação é a esfera concêntrica e recolhida de uma outra esfera bem maior, chamada Mundo, a que nos encontramos imediatamente votados e devotados. Votarmo-nos ou devotarmo-nos ao Mundo é sempre uma forma de heróico sacrifício. Por isso é que Heidegger nos definiu como “seres para a morte”. Se a criatura não fosse heróica, ela suprimir-se-ia a partir do instante em que tomasse consciência da fatalidade do seu desaparecimento, da inevitabilidade do seu perecimento, uma vez concluídos os rituais da breve e cruel sobrevivência. Ora, a nosso ver, o suicídio é o resultado de uma imaginação tornada impotente. É que ela, a imaginação, é a fina camada de protecção que selecciona e filtra os ingredientes mundanos que nos levam a persistir na vida, transportando-os, mais decantados e depurados, para os abismos de um Eu resistente. Desta forma, tais ingredientes não sofrem a erosão da realidade. Eles são vistos por órgãos interiores de apercepção, por uma espécie de pupila interior que os transfigura e torna aceitáveis. Situamos nos mecanismos da imaginação os redutos da alegria, do optimismo, da poesia e da vontade de viver. Queremos com isto dizer que rejeitamos a hipótese de uma imaginação maléfica. O Mal, na sua expressão mais absoluta, é a visão do Mundo no horror da sua nudez , no vazio da sua dimensão taxativa. O Mal é um Mundo dentro do qual a imaginação se deixou estrangular. É por isso que eu me recuso a acreditar que alguma vez chegue o dia em que os seres humanos abdiquem da Poesia, da Filosofia, do Romance, do Teatro, etc. Esse seria o dia do triunfo irreversível do Mundo sobre o Homem, ou seja, o dia da Criação impotente. Ora, não é isto o maior dos absurdos?

11 de junho de 2007

POETA ? ISSO NÃO !

Não, não sou poeta.
Serei talvez danação
Ou privação
Poeta, não!
Não, não sou poeta
Antes átomo
Perdido
Assomo transviado
Em convulsão
Poeta, não!
Não, não me queiram poeta.
Um poeta burila
O desespero
Oscila
Entre o real
E o suposto.
Eu quero ser
Só isto:
Um rosto
Visto
Um corpo
Gasto
Uma resignação
Poeta? Isso não!


6 de junho de 2007

COIMBRA (2)

Há cento e cinquenta anos os estudantes que frequentavam a Universidade de Coimbra consideravam-se bafejados pela sorte, pois julgavam habitar um dos mais perfeitos lugares da terra. É certo que esta lenda dourada foi laboriosamente preparada para glória de uma geração: a famosa e sempre recordada “Geração de 70”. Chegaram à cidade do Mondego, em chusma, Antero de Quental, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, João Penha, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Alberto Sampaio, Vieira de Castro e muitos outros breves talentos, que a memória dos homens guardou menos bem.
De Antero, celebraram-se então os olhos muito azuis, sob uma testa curta e logo interrompida por uma cabeleira revolta, crespa e insolitamente acobreada ; e bem assim o porte donairoso, de efebo cismático; e também a índole provocatória, a baforar filosofemas, quando, escarranchado na janela do quarto, interpelava, qual Oráculo novo, algum académico transeunte, pasmado e incréu, falando-lhe em Manu, e no caudal da eterna Substância, e nos poemas dos Vedas, e em mais mil coisas de um saber iniciático, perfumadamente envolto nas leituras de Hegel, Vico, Schlegel e Michelet. De Teófilo ficou famosa a labuta incansável de formiga erudita; e também o pendor para um aforro judaico, só desculpável devido à magreza das choradas libras que o pai lhe enviava de Ponta Delgada ; e a orgulhosa luta por um lugar ao sol na praça dos literatos, conquistado através do rombo de insultos tonitruantes de que foi alvo o velho António Feliciano de Castilho, patriarca de versos em desuso e alcoviteiro de reputações duvidosas. De Manuel de Arriaga foram referidos os arroubos místico-naturalistas, como se nele pudesse ecoar e fazer-se Verbo a visão purificada de um acabado e incorrupto Homem Novo, sem mácula, de uma excelência cristalina e perene. E João Penha? As velhas tascas da Alta e da Baixa de Coimbra guardaram-lhe os versos e a “verve”, no entrançado de uma indiscernível amálgama.
Conhecem a troça de Coimbra, tal como foi praticada por gerações sucessivas de estudantes e futricas? Eu conto. Imaginemos um fio de conversa que flui entre dois tagarelas com a naturalidade das alusões e dos desabafos ocasionais; conversa aparentemente sisuda, bem comportada, quase reverencial; de súbito, uma das partes, sem aviso prévio, inflecte para uma observação brejeira, para um dito de inesperada comicidade, para uma lateralização verbal de desfrute, mantendo, contudo, a mesma compostura de maneiras e o mesmo tom sério de voz. A troça coimbrã é (era?) isto. E não estamos a perder de vista o boémio João Penha, a espadanar versos por cada botequim, a reverberar espírito em cada magote de comparsas, a comprovar talento nas linhas dos sonetos. Muitos dos sonetos de Penha eram a deslocação da troça para o âmago da Arte, ou seja, era a troça coimbrã posta em versos. A composição explanava-se com a ática sonoridade do paradigma clássico, num crescendo de perfeição e de maravilhamento. Subitamente, no remate do último terceto, eis que se misturam as perfeições da amada com os olores boémios … dos paios de Chaves, dos carrascões beócios ou das alheiras de Mirandela!
Com Penha coabitou um rapaz desengonçado e muito lido em autores franceses, ave nocturna escanzelada e discreta, que a vizinhança da Couraça de Lisboa murmurava ter talento dramático, a avaliar pelo desempenho de “pai nobre”, na representação que o Teatro Académico encenara, sobre a peça alusiva ao poeta Garção, escrevinhada por Teófilo Braga. Era um moço que admirava o ascendente de Penha no bordado da palavra poética, na inesgotável demanda de vinhos de estalo e até no adorno aristocrático de um monóculo inquiridor. Esse rapaz, que mais tarde também se haveria de converter à distinção do monóculo, chamava-se José Maria Eça de Queirós. Havia quem o tivesse visto à roda de um prato de arroz doce no Paço do Conde, ou medindo-se com uma terrina de sável e sardinha frita, na Tasca das Camelas. Era apenas mais um, entre cerca de dois milhares de estudantes, e pouca gente daria pelo seu futuro vinte réis de aposta. Bom gastrónomo teria sido também um tal Abílio Guerra Junqueiro. Descera lá do Minho, para subir, em Coimbra, a “colina sagrada” , solenemente coroada pelo Paço das Escolas . Olhos muito vivos, opiniões políticas radicais, já então denunciadoras de alguma férula anticlerical, apreciador de moçoilas escarquejadas, fossem tricanas ou filhas de doutores de capelo, Junqueiro cobiçou o primado artístico de Penha e emulou-se com a sua hegemonia na sociedade académica do tempo. Um dia, acabaram por se encontrar num botequim. Mediram-se e desafiaram-se, não a soco e empurrão, mas a estrofe, a terceto, a quadra. Coimbra era capoeira demasiado pequena para estes dois galos da palavra primorosa. Findo o recontro, escorrendo ambos, por todos os poros, a baba dos motejos implacáveis, deram-se às boas, concluíram pelo empate e apertaram-se as mãos. Coimbra era assim.
Ao grupo de Antero de Quental pertenceram também José Sampaio e Alberto Sampaio. Os Sampaio convenceram Antero da necessidade de se formar uma sociedade secreta, no seio da estudantada, para derrubar a alegada tirania reitoral de Basílio Pinto, que lhes rateava a intenção de modernizar o traje académico e os proibia de esfumaçar no Pátio e nos Gerais. E foi assim que se organizou a “Sociedade do Raio”. Esta, num memorável 8 de Dezembro de 1862, conseguiu evacuar a Sala dos Capelos de quase todos os convidados de uma festividade académica, deixando o miserando reitor Pinto a falar somente para a galeria dos reis lusitanos, pendentes e pindéricos das paredes, em forma de retratos pintados. Já neste tempo a Coimbra académica se dividia em sensibilidades e parcialidades políticas. Se Antero de Quental, e os Sampaio, e Germano Meireles, e tantos mais, eram vanguardistas, sacrificando exortações e prédicas a um amanhã diferente, sofrendo pela escravização da Polónia pela Rússia e contestando a desenfreada exploração da Irlanda pela Inglaterra, alguns outros tomavam voz pela conservação social. O chefe de fila dos estudantes conservadores era Vieira de Castro, um sibarita de impecável presença, de palavra fácil e de ambição ilimitada. Era presença habitual nos lupanares conimbricenses e um dia fez chorar uma infeliz meretriz, dado o excesso e o abuso dos seus gestos e palavras. Antero de Quental não lhe haveria de perdoar a crueldade, publicando na imprensa a peça poética “Ermelinda”, onde Vieira de Castro sofreu tratos de polé. Talvez por isso, o grupo conservador que lhe era afeiçoado passou a tratar os amigos de Antero sob o epíteto de “os do Raio”, obrigando estes a designarem-nos por “os da Sopa” ou “os Sopas”, por se calcular que todos eles iriam acabar por comer as sopas do orçamento governamental, quando, um dia, fossem chamados aos rendosos lugares de deputados ou de ministros.
Às vezes, movo-me por esta amada Coimbra como um fantasma. Vou então ao encontro de outros fantasmas que por aqui andaram, para por eles reter, através das memórias pretéritas, para deles colher, nem que seja por um brevíssimo instante, o fulgor imperecível da Beleza e da Paz.

2 de junho de 2007

ATÉ SEMPRE, JOHN WAYNE !

Era um homem bastante alto, de olhar frontal e passo cadenciado. Era cowboy e ostentava nos filmes nomes vários . Mas todos sabíamos que não havia outro igual a John Wayne. O meu Pai, cinéfilo desde os tempos da juventude, levava-me ao cinema, pela minha meninice, deixando-me ver quase todos os tipos de películas. Mas, entre todas, as preferidas eram aquelas em que aparecia John Wayne. Com ele fui aprendendo que havia causas, lutas sem quartel que tinham de ser travadas e levadas às últimas consequências, sem pestanejar, mesmo que tivéssemos de arriscar a pele em momentos decisivos. Com ele fiz muito meu um infantil e simplista maniqueísmo: o mundo estava dividido entre os bons e os maus, sendo os primeiros, mais do que bons, sem mácula, e os segundos, mais do que maus, sem sombra de pudor ou de clemência. Era impensável que John Wayne pudesse ser derrotado, ou falhasse aquele tiro certeiro, decisivo, com que haveria de tirar para sempre a vida ao pérfido Liberty Valance. Neste mundo, pintado a preto e branco, mesmo quando o filme nos avisava do seu technicolor, havia um elemento complicativo e, durante muito tempo, para mim, difícil de arrumar. Este elemento era o que se referia aos índios. Eu gostava dos índios: das penas que eles entrançavam nos cabelos, da figura imponente de Sitting Bull, do modo exímio como cavalgavam potros selvagens, das nómadas deslocações com que abraçavam as vastas pradarias, das preces a Manitu, força mágica que haveria de trazer a chuva e a felicidade, engravidando de esperança os jovens guerreiros da tribu. A complicação estava em que John Wayne se apresentava vezes demais como perseguidor ou adversário dos índios. Talvez por isso, foi também através dos filmes de John Wayne que eu comecei a suspeitar que talvez o mundo real, tal como de facto existe, não devesse ser pintado apenas com duas cores, o branco da pureza e da gloriosa valentia e o preto da malevolência e da vergonhosa covardia. Há dias, li num jornal que os próprios americanos se estão a esquecer da memória de John Wayne. Fiquei triste. E creio até que os europeus e os americanos da minha idade não deixarão de lastimar esta subalternização daquele que foi um ícone inesquecível da minha geração. É certo que seria impossível visionar um John Wayne actualizado, sentado à mesa de um saloon, digitando um computador ou manejando um telemóvel. A questão está em saber a quem irão recorrer os jovens de hoje para discriminarem entre os heróis e os poltrões; e quais serão os índios por quem as novas gentes , herdeiras deste tempo incerto, se irão apaixonar, para através deles aprenderem que se pode amar o diferente e distribuir pelas margens da sensibilidade as torrentes de um bem-querer periférico. Até sempre, até sempre John Wayne !

23 de maio de 2007

ELOGIO DE MEFISTÓFELES

Será que o “bom selvagem” de Rousseau só era bom por ser selvagem? Será que a Civilização, com as suas promessas de melhor e mais fácil vida para todos, com o incitamento a que ganhemos mais e mais dinheiro, a que sejamos “notáveis”, a que tenhamos importância social, a que deslumbremos os nossos competidores directos, será que esta Civilização nos foi roubando toda a inocência, toda a indulgência, todo o sentido de alteridade, e nos colocou na alma seca o riso sardónico de Mefistófeles? Este Mefistófeles percorreu toda a alta literatura, do século XVI em diante. Ocuparam-se dele espíritos tão cintilantes como os de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Thomas Mann e Paul Valéry. Mefistófeles não se limita a ser uma grotesca e primária personificação do Mal. Há nele outra subtileza, outra argúcia, outra vivacidade no modo como nos sonda os sótãos da respeitabilidade. É uma espécie de diabrete bem vestido e culto, que eu gosto de imaginar de monóculo e fraque. Pisa as alcatifas dos teatros da moda, possui as amantes mais capitosas que a grande vida mundana pode oferecer, frequenta os meios mais requintados, bebe champanhe em lupanares de luxo e parece estar fora do tempo porque ostenta um ar de permanente juventude. O meu Mefistófeles, aquele que eu construí com a minha imaginação e aprendi a temer em todos os momentos dos ajustes de contas comigo mesmo, é esta mistura exótica de aparato e de finura. Mas é também um pulha. Talvez o maior dos que pude conceber. Porquê? Porque nos arranca a composta máscara da decência. Todos nós – uns mais do que outros, certamente – possuímos mecanismos de auto-justificação que nos santificam, que nos salvam aos olhos de nós próprios. Conheço gente que é capaz de perpetrar as maiores infâmias sob uma girândola de pretextos, todos eles amarrados à absolvição do moralismo fácil. Assim, todos nos tornamos íntegros, estimáveis, exemplares, sob a caução desta espantosa fraude, que pode escapar a todas as criaturas … menos a Mefistófeles. É indubitável que se o meu Mefistófeles se debruçasse sobre o arcaico e ingénuo comportamento do “bom selvagem” de Rousseau, é seguro e certo que ele lhe haveria de descobrir, nos arcanos mais fundos da alma em bruto, o sedimento, o vestígio da perversidade mais discreta. Mefistófeles fascina-me porque conhece o mundo como ninguém. Não aquele mundo tal como teria sido gerado na primeira manhã da Humanidade. Antes este mundo, o que temos, o que habitamos, o que ajudamos a persistir, tal como foi sendo construído por trogloditas ferozes, primeiro; e depois por fradalhões gulosos, e ainda por Bórgias escondendo venenos em anéis assassinos , e depois por mercadores cúpidos, e agora por politiquelhos manhosos. O que confesso admirar em Mefistófeles é a lucidez gelada, a imperturbabilidade com que descompõe o retrato de Dorian Grey, tal como o esboçou Óscar Wilde. É pouco provável que este texto seja apreciado pelos que adoptam uma leitura optimista da natureza humana. Mas é bom que esses Amigos de Rousseau fiquem bem calados. É que, a não ser assim, teria de pedir ao meu bom Amigo Mefistófeles para lhes fazer uma visitinha de cortesia …

21 de maio de 2007

ÉTICA E SOCIEDADE

Damos o nome de Ética aos códigos formais e informais de comportamento, ou seja, a toda a sorte de directrizes e de normas, assentes no “dever-ser”, a que nos submetemos de maneira voluntária ou coactiva. Através dessas tábuas normativas, dessas imposições colectivas, vamos adequando as nossas acções ao conjunto das finalidades sociais. Mas a Ética distingue-se do Direito porque a sua obrigatoriedade resulta mais de uma anuência íntima, de uma gestão de deveres para com os outros, e menos de uma invocação de vantagens pessoais. Ao passo que o Direito legisla para o mundo dos interesses e dos egoísmos, a Ética estatui para a área da sociabilidade e da alteridade. A Ética é, assim, o domínio do altruísmo e da dádiva gratuita. Talvez não seja aventuroso dizer que o Direito e a Ética dimanam simetricamente dos dois núcleos a que está subordinada a nossa condição de seres humanos. Se procurássemos uma definição antropológica para a nossa verdade mais íntima, talvez que a mais evidente e imediata fosse a das exigências biológicas, às quais se submete forçosamente toda e qualquer possibilidade de sobrevivência. Queiramo-lo ou não, somos uma parcela de Natureza viva e harmonizamo-nos, desse ponto de vista, com os ritmos biológicos que nos dão suporte à continuidade da vida. Nas imposições biológicas há uma ferocidade ilimitada. Pelas Histórias Trágico-Marítimas da nossa epopeia quinhentista foram-nos descritas as selváticas opções que se colocaram aos náufragos, perdidos em hostis paragens, privados de líquidos e de víveres que lhes garantissem a continuidade da vida. Essas crónicas não disfarçam o esvaimento dos mais elementares princípios e o tripúdio dos tabus humanos mais enraizados. Então se praticaram assassínios selectivos para que, com base nos mesmos, se pudessem realizar digestões canibais. Matar para não morrer é a lógica que comanda, no limite, a acção de seres humanos em privação insuperável. Este dado de sobrevivência egoísta é o que deriva do mecanicismo implacável dos nossos suportes biológicos. É a partir da satisfação, por mínima que seja, das suas imposições que o colectivos dos seres humanos pode realizar o salto do Direito positivo para a Ética ideal. Nem Gandhi nem a Madre Teresa de Calcutá puderam dispensar-se da sua parcimoniosa taça de arroz para construírem, depois disso, a gloriosa sinfonia da sua dádiva aos outros. Tudo se joga, então, entre as balizas de um egoísmo que a nossa materialidade física nos impõe e as fronteiras de um altruísmo a que nos incita o acto de vivermos com os outros e ao lado dos outros. É então que, com a fome física saciada, nos podemos consagrar ao sacerdócio social (terminologia cara ao positivismo comtiano) do “viver para os outros”. Uma Ética assim imaginada, assim inferida do equilíbrio precário entre o egoísmo biológico e o altruísmo social, num diálogo lúcido, que não escamoteia o primado do primeiro sobre o segundo, uma Ética assim reconhecida, é seguramente mais profícua do que as prescrições dos códigos sagrados, sejam eles os do Corão, os dos Evangelhos ou os de quaisquer outras doutrinas vocacionadas à salvação da espécie. Por muito que isto nos doa e nos destrua a imagem idealizada de uma “Humanidade regenerada”, de que falam os santos e os revolucionários, por muito que tal nos pareça menos nobilitante ou menos generoso, é sobre a gestão dos egoísmos e sobre a disciplina dos mesmos, decretada a partir da sociabilidade altruísta, que se podem construir tábuas de direitos e deveres compatíveis com a verdade do que somos.

15 de maio de 2007

TOADA GARRETTIANA


No cesto da gávea
O homem do mar
Espia a fronteira
Do seu labutar.

Um cesto suspenso
Num barco vazio
Possui como senso
O seu desafio.

Bate a onda o casco
Igual por igual
Indiferente ao drama
Do Bem ou do Mal.

Olhos de gageiro
Não podem cerrar
Sem verem primeiro
O fim do seu mar.

E fitam, procuram
A norte e a sul,
Guardando do céu
Esse imenso azul.

É o Mal vermelho?
É o Bem azul?
O Bem vai p'ró norte?
Vai o Mal p'ró sul?

Gageiro suspenso
Num cesto de mar
Espia a fronteira
Do seu labutar.

Num cesto suspenso
No meio do mar
Sem orla de praia...
Há que mourejar!


9 de maio de 2007

ALEGORIA DO TEMPO

Em figuração alegórica, gosto de comparar a vida humana a uma escalada a partir do sopé de uma pedregosa mas bela colina. A primeira fase é aquela em que as coisas estão demasiadamente próximas de nós e em que o esforço da subida mal se sente. A vizinhança das coisas que nos rodeiam trivializa-as a um tal ponto que mal reparamos nelas. Estão ali – e é tudo. Esta percepção imediata impede-nos de as relacionar, de lhes procurar conexões e alianças, de as sopesar e até de as valorizar convenientemente. A Mãe está ali ao pé, pronta a proteger-nos e a amparar-nos nas quedas. O Pai repete todos os dias o gesto de abrir a porta, quando parte para o trabalho, e o som de entrar em casa com a pergunta “há gente?”, quando regressa. Os Amigos convocam-se e aparecem invariavelmente, para festejar um aniversário, para ouvir aquela música de sensação, para discutir aquele projecto que surgiu em comum. Estão todos lá, com a naturalidade das paisagens fixas, das realidades alinhadas numa base sólida, tida por inamovível. E no entanto, de longe em longe, a estabilidade desse pequeno mundo recebe o golpe de um pequeno terramoto. A Mãe adoeceu; o Pai partiu por longo tempo; o Amigo – disseram-nos – vai ser operado a uma maleita qualquer. Mas persuadimo-nos de que a doença será breve e curável, a partida durará apenas o tempo de saudades transitórias e a operação correrá muito bem, pois o cirurgião é de renome. De súbito, damo-nos conta que o tempo foi passando e que já nos encontramos a meio da subida. E quando voltamos a olhar, com maior atenção e mais sagaz inteligência, verificamos que no rosto da Mãe se cavaram rugas que outrora lá não estavam; que os movimentos do Pai são mais pausados, mais tacteados, mais cautos, menos ágeis; e que o Amigo já não aparece necessariamente naquela hora de urgência ou de doméstica festividade. Aliás, nós próprios iremos avocar, no galgar íngreme da colina, a posição e o estatuto dessas figuras emblemáticas. “Filho és, pai serás… ” – e com esta cegarrega da sabedoria popular, a progressão da subida, feita com alvoroço nos primeiros arrancos, converte-se num exercício brevemente reflexivo. Debatemo-nos com a falta de tempo enquanto o tempo por nós vai passando, implacavelmente: as urgências que nos conclamam a meio do percurso são demasiadamente impositivas – urgências com a escola das crianças, com o seguro do automóvel, com as compras do mês, com o cumprimento dos deveres profissionais, com o fazer da barba, com a ida ao cabeleireiro, em suma, com as mil coisas que nos assolam o quotidiano. Será apenas no momento em que os Pais já partiram, numa partida sem retorno, em que os Filhos já nos deixaram a casa, para só nos visitarem como Amigos mais próximos, em que os Amigos nos falham à chamada, será nesse momento que concluímos ser já considerável, deveras considerável, a caminhada cumprida, a partir do sopé da vida. Olhamos então à nossa volta e vemos que as coisas de outrora, tão próximas, tão singulares, tão visíveis, se talham, em contorno indeciso, no horizonte da distância. Estonteados, reparamos então em nós mesmos, para descobrirmos no nosso rosto a face rugosa da Mãe que já não está, na vacilação dos nossos passos, o eco (só o eco) alquebrado dos gestos paternos, agora ausentes, no silêncio dos que nos quiseram bem, o sulco discreto de uma saudade só nossa e sem fim. Estamos, finalmente, no topo. Olhamos em todas as direcções e descobrimos, enfim, que a nossa maior sabedoria se acumula naquele cume da vida em que se divisa o tempo de dizer adeus.

4 de maio de 2007

SOBRE A INOCÊNCIA

- As crianças são uma maravilha, não acha?
- Sim, as crianças são uma maravilha quando os adultos o sabem ser também.
- Significa isso que não acredita na inocência?
- Eu não sei se a inocência existe. Acredito, isso sim, na existência da inconsciência. Um bebé enternece-nos porque o vemos abandonado à sua inconsciência. Repare o meu Amigo que alguns estudiosos da natureza humana se negaram a conferir à infância, só porque é infantil, um estatuto angelical. Freud, por exemplo, não deixou de dizer que as crianças são, no seu comportamento sexual, a versão mais acabada da “perversidade polimorfa”. Por outro lado, registam-se frequentemente os mais aberrantes comportamentos infantis para com os animais. Há crianças que gostam de endoidecer cães, atando-lhes chocalhos aos rabos; outras, fazem inflar o corpo de sapos ou de rãs, ao ponto de lhes provocarem o rebentamento; outras ainda, divertem-se com a mutilação de insectos. O que me parece acontecer é que os seres humanos têm uma imensa necessidade de se imaginarem puros, cândidos, impolutos, num qualquer momento das suas vidas. E por não lhes ser possível descortinar, em momentos mais adiantados da respectiva evolução, uma tal e tamanha condição arcangélica, daí que a tenham reportado às fases mais atrasadas do seu desenvolvimento.
- Acha então que as crianças são pérfidas, maldosas, perversas, como queria Freud?
- Não necessariamente. O que acho é que as crianças não têm uma natureza diversa da dos adultos. Nem diversa, nem, necessariamente, melhor. A alegada inocência das crianças resume-se, em meu entender, à latência do seu potencial. E este tanto pode expressar-se numa futura harmonia de valores, num decidido e positivo avanço para a Luz, como numa posterior disfunção de crenças e atitudes, ou seja, num retrocesso sem remédio para as Trevas da crueldade, do egoísmo e da frigidez afectiva. Na maior parte dos casos, a criança irá plasmar no mais íntimo dela própria uma simbiose de Luz e Trevas, dependendo, no concreto, a composição da sua futura personalidade da orientação do respectivo processo educativo. Acho indispensável que, mais do que celebrar no abstracto a mirífica inocência das suas crianças, cada sociedade pergunte, momento a momento, o que está a fazer por elas e como as está a educar. Afinal, tudo (quase tudo?) depende disso.

30 de abril de 2007

A MINHA DÚVIDA (COM RÉGIO EM FUNDO)

Para a Filomena Melo Cardoso

Era Jacob lutando com o Anjo,
Era Benilde ou a Virgem Maternal
E um Cristo partido por entre o silvo
Do vento em Portalegre.
Era um hálito de Deus
Vacilando na cerúlea madrugada
Sem que o tivessemos certo e vivo
No Gólgota da Judeia
No sacrário da capela
Ou na arca dorida do peito.
Mas era também só Ele que ficava
No arfar do vento alentejano
No rasto de Jacob
Na face sofrida , tormentosa
Da Virgem-Mãe
Ou até no madeiro carcomido
Desse Cristo quebrado
Desse Rabi maneta e tão patético
Na noite fria, desalentada
De um inverno em Portalegre.
És voz de raiva,
Régio sem reino,
Voz de insubmissa submissão
De pura, decantada raiva
Por saberes tão claramente
Que vais morrer de vez,
Sem remissão
Sem que ninguém de ti
Possa dizer "Ressuscitou,
Não está aqui".
Sim, tu morrerás
Por entre sombras frouxas
Duma cerúlea, vacilante madrugada.
Mas Ele, esse Rabi chagado,
Alanceado
Esse ficará,
Para sempre ficará
Na mudez, na tartamudez enigmática
Do que pode prometer-te
Contra o preço do teu próprio funeral.
Por isso fazes ranger por tal modo
Esses dentes e esses versos torturados,
Régio, solitário Régio
Raivoso, reverente e sem reino :
"Meu Deus, quando serei tu ?"
"Até que o morto ... choveu"
Primeiro, Prometeu ;
Depois, mórbido panteísmo
Em mutação metereológica...
Enquanto o vento anda e ciranda
Em Portalegre cidade,
Deus e o Diabo continuam,
Infatigáveis,
Tecendo a dúvida
(Tonta, aberrante,
Tão contraditória
Como uma qualquer
Divindade maneta
Como um qualquer
Cornudo Belzebu)
Do que poderemos ser
Quando o não-ser vier
Por uma fria, agreste,
Idiota madrugada
Indiferente aos nossos olhos,
Para sempre cerrados.



25 de abril de 2007

O HERÓI EXEMPLAR

Todas as revoluções têm os seus heróis anónimos. São os que mais contribuem para as fazer vingar, mais forcejam para as ver florir, mais batalham para as impor resolutamente a todos os demais. Estes heróis não se limitam a ser crentes – são convictos. Não se contentam em ser seguidores – são mentores. Não se prestam a ser ecos – são, eles próprios, vozes sonoras e altivas. É sabido que a história de todas as revoluções demonstra que são elas as primeiras a devorar os próprios filhos, e, dentre esses, os mais dilectos. A revolução francesa de 1789 eliminou Robespierre; a revolução russa de 1917 veio a assassinar Trotsky; a revolução portuguesa de 1974 exilou e subalternizou os que por ela mais se haviam sacrificado. O grande herói - e contudo um dos mais anónimos - da revolução de Abril de 1974 foi, para nós, Salgueiro Maia. Em Santarém, no Terreiro do Paço, no Quartel do Carmo, em todos os lances arriscados e decisivos desse solene momento revolucionário, Salgueiro Maia foi a calma decisão que não desiste, a consciência ética que não capitula, a Democracia excelsa que não embota ou empalidece. Salgueiro Maia sofreu na carne a dura profecia da ingratidão revolucionária. Nada quis senão o cumprimento do seu compromisso revolucionário. Nada pediu senão que lhe não viessem desvirtuar a pureza das suas primitivas intenções. Mas logo que os políticos se apossaram do mando, trataram de o anular e vexar. Muitos deles gostariam de ter sido Salgueiros Maias. Mas citadinamente, calculadamente, sem arriscarem o corpinho, sem jogarem todo o seu destino individual, sem correrem o risco das balas e das adagas, sem sacrificarem um átomo das conveniências e conivências das suas confortáveis carreiras. Era óptimo, pensaram eles, virem a ser heróis de sofá, beberricando goles de uísque de malte, longe das agruras de Santarém, do Carmo, do Cais das Colunas e das vielas de Lisboa, por onde então escorriam torrentes de Povo, gritando muito e cheirando ao suor do trabalho honrado. Por isso, trataram de insinuar, a torto e a direito, que o Movimento das Forças Armadas era uma treta e que os Oficiais como Salgueiro Maia eram títeres de papelão, ingénuos equivocados, sem o jogo de cintura da hipocrisia e da duplicidade, uma e outra necessárias ao sucesso fátuo da politiquice rendosa. E aí os temos, no cerimonial de um dia (que já desprezam), envergonhados da flor revolucionária, não querendo usar o cravo na lapela, para mais facilmente poderem plantar na alma, em escondida manobra, o fétido rizoma da perfídia. O que eles não podem é silenciar o juízo implacável da História, que hoje lhes grita: - Vede, bando soturno e comatoso, como estais já mortos em vida! Olhai, cretinos, como está vivo e esplendoroso Fernando José Salgueiro Maia, o Grande Capitão do nosso Abril eterno.

20 de abril de 2007

ABRIL

Em Abril, por uma vez,
Um dia se fez verdade
E jorrou de quem o fez
A palavra Liberdade.

Foi num Abril já distante
Que do cravo nasceu vida
Na espingarda florida
De soldado militante.

Foi um Abril muito breve ...
A brisa da madrugada
De tão solta, de tão leve
Ficou à porta de entrada.

Mas na alma cintilou
O fulgor desta saudade.
Foi um cuco que cantou
Justiça, pão e verdade ?