30 de março de 2012

NOTAS DE UM POBRE E MORTAL AGNÓSTICO

Admito, pessoalmente, que se acredite na Divindade (ou até nas Divindades plurais). Mas considero perigoso que se pertença a uma Igreja institucional, sobretudo se esta for proselítica, ou seja, se ela quiser forçosamente “converter os outros”. A Natureza, pela sua imensidade e complexidade, induz ao pensamento da Criação. Claro que há quem pense – os panteístas, por exemplo – que a qualidade de divino é justamente passível de atribuir a essa mesma Natureza. Mas também há quem assegure que o aparecimento dos mundos e das formas de vida postulará a existência da Divindade, criadora da própria Natureza. Até aqui, tudo parece ser relativamente pacífico. A primeira dificuldade surge quando queremos representar, configurar, atribuir expressão plástica (ou histórica) a Deus. Comecemos pela representação. Por que razão o Divino haverá de ser como nós – com braços e pernas, com aparelho digestivo, respiratório e circulatório, com barbas, com necessidades de comer, beber, defecar, etc? Um exercício de pura lógica levaria a conferir à Divindade uma substância completamente diversa – e até divergente – da nossa. Porque nós, simples criaturas, somos frágeis, temos doenças, morremos ao fim de certo tempo, nada criamos para além das possibilidades do nosso próprio potencial. Assim, por que carga de água – ou de auto-suficiência fideísta – é que o Divino tem de ser como nós, tendo nós sido criados, como se diz no “Livro”, à Sua imagem e semelhança? Porquê isto, se Ele – seja lá Ele quem for – é eterno, omnipotente e ominisciente, coisa que nós manifestamente não somos? Agradeceria muito que alguém me pudesse responder a este ponto, SEM A INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AUTORIDADE OU DA CITAÇÃO DE LIVRINHOS MAIS OU MENOS ILUMINADOS.

25 de março de 2012

O MENESES, A MULHER DELE E OS MENINOS DO MESMO ...



Achei entediante e repetitivo o modo como decorreu o Congresso do PSD, o qual, de resto, não foi muito diferente dos que são feitos pelas restantes organizações partidárias. “Nós somos os melhores ; nós somos os esteios da Democracia; sem nós o país regrediria à situação dos países do Corno (de África, bem entendido); ou a Laranja ou o Dilúvio, etc e tal, pátati, pátata… ”. Tudo visto, lido e respigado, como cantilena de cego, pedindo os votinhos que estarão para vir. Mas houve no Congresso um momento alto. Um momento altíssimo! E foi aquele em que um tipo de Gaia, Luís Filipe, Meneses de apelido, subiu à tribuna, não para celebrar o presente, mas para esconjurar um passado que se julgaria bem extinto (mas não está, não estará tão cedo, a acreditar no tal Meneses). Ora, que disse esta luminária da banda do Jardim e do Coelho? Disse, mais coisa, menos coisa, isto: “Reparem no Durão – é o Presidente da Europa; atentem no Cavaco, que é hoje Presidente da República; mirem o Guterres, que era uma refinadíssima alimária, mas hoje está numa importante courela da filantropia europeia. E agora, focalizem-se no José Sócrates, que hoje é apenas estudante da Sorbonne, onde não se tiram licenciaturas aos domingos e não se faz inglês técnico por fax”. Eu acho que o José Passos, depois de ouvir isto, deveria saltitar-lhe para o colo e oferecer-lhe uma dúzia de cenouras. É que o homem foi teso, gaita! Teso deveras, raios! Nem parecia aquela triste figura, desfeita, derrotada, vencida, reduzido à condição de esterco pelos antigos Colegas lisboetas de Partido, quando declarou que o País estava a ser vítima de uma manobra “sulista – e ele é nortenho (para minha vergonha, que prezo o meu Norte …) – elitista ( e ele é consabidamente gebo e agalegado) e liberal ( e ele parece que quer ser outra coisa)”. Quando os compinchas do PSD o ouviram falar assim, contra o omnívoro e tentacular centralismo lisboeta – que não é “sulista, nem elitista e muito menos liberal” , mas só é sabujote, ignaro e proto-fascizante – atiraram-lhe todos os cães às canelas. E lá se foi à viola, por essa altura, a possibilidade do Meneses ser “gente grande” no PSD. Ora, que fez essa pérola da “soxial-democra-chia” lusitana, quando se viu assim exautorado? Fez isto: pegou na linda Mulherzinha e na filharada e foi chorar em directo (EM DIRECTO, escrevi bem !!!!!! ) para um tempo televisivo, que lhe concederam por compaixão e por dó dos pobres de espírito, num dos canais da TV pública. E foi ver o Meneses, mais a Senhora e mais os meninos, todos “ de sóquete e bábete” , a desfazerem-se em lágrimas, para garantirem que “não senhor, não era bem isso que se pretendera dizer, mas outra coisa mais nobre, mais fidalga, mais “sulista, elitista e liberal”. Se a portugalidade política tivesse um pingo de vergonha e de memória, o Meneses nunca mais teria sido coisa nenhuma em Portugal. Quando muito, por caridade, continuaria e ser o mandarete dos gajos que refocilam e vida e os cargos pelas vielas sujas de Lisboa. Mas não! O Meneses é hoje um dos “exponenciais” do PSD, o que diz tudo do que é ESTE PSD. E assim, para se dar ares, o Meneses tirou da nitreira onde habita esta coisa do “estudante da Sorbonne”. Ora, dá-se o caso de o dito Meneses ser “mérdico”, perdão, médico. Mas um “mérdico”, perdão, um médico “nortista, javardo e xuxial-demo-kata”. E como nunca deu uma prá caixa na profissão, a saída foi fazer-se político, lá pelas alfurjas da foz do Douro, em convívio íntimo com a vaza do rio e o lodo das descargas do saneamento básico das retretes do Porto e de Gaia. Assim, fica por entender por que razão é mais vergonhosa a opção de José Sócrates, quando comparada com a opção de Meneses. Mas isso é o que ele irá explicar, com a Senhora ao lado e a filharada (já espigada) à ilharga, quando for outra vez fazer choradeira para a TV portuguesa …

16 de março de 2012

DIÓGENES OU O SER DOS QUE NÃO QUEREM TER



A cisão entre SER e TER não é coisa de agora. Mas há diferenças entre o ontem e o hoje. Ontem, na Grécia clássica, por exemplo, ainda havia espaço teórico para que tal cisão fosse sublinhada na Ágora. O SER era o espaço da Verdade, sendo o TER o pragmatismo da dominação. Por isso é que, na perspectiva do SER, Diógenes, o Cínico, ganhava a parada a Platão, o Instalado. Aquele era capaz de se masturbar publicamente, declarando. “Bom era que a fome se pudesse satisfazer com a mesma facilidade com que autopacificamos a líbido”. Platão detestava Diógenes porque via nele – e com justiça – a personificação do dedo acusador apontado ao senhorio dos senhoritos da altura (dos senhoritos, tanto no plano da hegemonia das doutrinas impostas, como no plano crematístico). Tudo isto era possível porque a Grécia sempre foi, desde os tempos de Homero, um cadinho de depuração ética. Foi isto, ou seja, esta capacidade de valorar, que a Europa deixou que se perdesse. Hoje a Europa pode dizer apenas que outrora reverdeceram nela as frágeis flores do Humanismo. A Europa rendeu-se à lógica da globalização económica. E nesta, o SER é o reflexo mecânico do TER. Por isso, nela superabundam Barrosos e escasseiam Diógenes. O drama de agora é que os putativos Diógenes estão, como Sócrates (o Grego …) todos condenados à cicuta. Pelo sim, pelo não, eu – ia a escrever “que me gosto de masturbar”, mas isso poderia ser interpretado no plano literal – já tenho o bacamarte do meu avô atrás da porta. Para o que der e vier … Viva Diógenes, abaixo Platão.

14 de março de 2012

LAUTRÉAMONT, MILLET E DALI



“Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de operações, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva” – assim se exprimiu Isidore Ducasse, obrigatório antecessor do movimento surrealista, que em 1869 escreveu os seus “Cantos de Maldoror”, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont. Este paradigma de Beleza será certamente motivo de mofa para os defensores da “realidade objectiva”. Mas, se nos colocarmos no ponto de vista de Sirius, o que vem a ser a “realidade objectiva”? Imaginemos que este tal mundo, dito objectivo, era habitado não por humanóides mas por máquinas e objectos utilitários, possuidores de uma qualquer forma de “interioridade” e de mecanismos tensionais que lhes permitissem cumprir objectivos. Imaginemos ainda que, do mesmo modo que nós, humanos, estamos sujeitos a doenças tratáveis em hospitais, também estes neo-mundanos careceriam de revisões periódicas – como os automóveis – para continuarem a “existir”. Que argumento então poderia ser aduzido para que o Belo não fosse, efectivamente, “o encontro fortuito, sobre uma mesa de operações, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva”? É inegável, a meu ver, que a pretensão de “objectividade” conduz a uma contracção de campo, a uma forma de empobrecimento cognitivo. Em 1934, Salvador Dali aplicou justamente este paradigma de Beleza na análise, através do seu método “paranóico-crítico”, do celebérrimo “Angelus”, quadro da autoria do pintor Jean-François Millet. A metodologia “paranóico-crítica” aborda a realidade sem o preconceito do “objectivismo”; nessa medida, postula como “realidade” toda a florescência de conceitos ou imagens, nascidos da espontaneidade de observação ou da simples técnica freudiana da “associação livre”. Dali, contudo, sujeitou-se aqui ao princípio normativo de Lautréamont, ou seja, quis provar que o quadro de Millet era Belo porque obedecia ao aludido enunciado. Observemos o “Angelus”, cuja simbologia imediata irradiou e ressoou pelo mundo como meditação contrita e agradecida de dois camponeses ao Divino, num fim de tarde brumoso, talvez ao som das Trindades eclesiais. Para Dali, é óbvio que o camponês é o guarda-chuva e que a camponesa é a máquina de costura. A teoria freudiana dos sonhos atribuíra carga simbólica fálica aos objectos pontiagudos e especialmente aos guarda-chuvas. Por outro lado, observa Dali que o chapéu rural do camponês, tapando parcialmente o baixo-ventre, só pode cumprir o desígnio de encobrir a erecção. E a camponesa? Escutemos Dali: «Em frente dele [do camponês], a máquina de costura, símbolo feminino bem conhecido de todos (…) exibe a virtude mortal e canibal da sua agulha de picagem cujo trabalho se identifica com essa superfina perfuração da louva-a-Deus «esvaziando» o seu macho, isto é, esvaziando o guarda-chuva, transformando-o nessa vítima martirizada, mucha e depressiva em que se torna todo o guarda-chuva fechado, após a magnificência do seu funcionamento amoroso, paroxístico e tenso de há pouco ». Acrescentemos, agora por nossa conta, que este «esvaziamento» a que alude Dali corrobora a verificação naturalista, fisiológica, que nos assegura que todo o macho fica triste depois do coito. Finalmente, a mesa de operações remete-nos para os demais elementos não-antropológicos do quadro, ou seja, para o campo lavrado, para o céu debilmente iluminado pelas últimas radiações e para o manto de nuvens pré-crepusculares que adensam a devoção “objectiva” e entremostram a fertilidade simbólica do que é captável para paranóia metódica.
Ou seja, o “Angelus” de Millet é Belo, porque realiza o encontro fortuito de uma máquina de costura e de um guarda-chuva, numa mesa de operações.

8 de março de 2012

VENTUROSOS VELHOS



Cortavam-lhes o rosto a fundura das rugas
Mas nada lhes transferiam dos próprios tormentos
Nem sequer lhes falavam dos momentos lentos
Que agora ou no passado os incitou às fugas.
Eram só complacências, aceitações de estar
Como se tais vidas lograssem navegar
À vista do sol-posto assim postado
Segurando a ponta do que foi sonhado.
Velhos ou só antigos agora lhes chamaram !
Importa pouco o quê ou a figura
Se no que precedeu a sepultura
Ficou, eterno, o Bem que derramaram.

3 de março de 2012

REFLEXÃO POUCO QUARESMAL



O humor, como fenómeno eminentemente humano, interessa-me e mobiliza a minha atenção. Há pessoas, situações e coisas a que achamos graça, desencadeando em cada um de nós uma gama de resposta emocionais, que vai do discreto sorriso até à sonora e incontida gargalhada. Na cultura clássica, os deuses riam. Segundo Homero, teria sido inextinguível o reboar dos risos provocados pelo caricato andar de Hefestos, o deus coxo. Não assim no Cristianismo. Nos seus primórdios, figuras tão representativas como Tertuliano, Cipriano e João Crisóstomo condenavam com severidade as manifestações de ruidosa alegria. S. Bento dispunha, muito hirto, que os monges não deveriam “dizer palavras vãs e chistosas ou amar o riso franco e frequente”. Propagara-se a tradição de que o Divino Mestre, Jesus Cristo, nunca teria rido. Por isso, o riso humano aparecia como próximo da heresia. Inculcou-se a ideia de que o riso era a consequência da imperfeição humana. Mas esta imperfeição estava de tal modo plantada no coração da espécie que havia que a tolerar, disciplinando-a. Por isso, a Igreja Católica transigiu com o Carnaval: três dias de descomedimento, para muitos outros de recolhimento e mortificação, na longa Quaresma que se lhe seguia. A morte de Cristo na Cruz, relembrada em todas as Quaresmas, era o preço que haveria a satisfazer por esses três dias de gáudio. Esse preço era o da penitência e oração. O Cristianismo foi, desde sempre – e sê-lo-á para sempre – a “religião da culpa”. O Espírito navegou sobre as águas prostradas da pecaminosa Humanidade e matou os prazeres do corpo, as efusões da matéria, os “excessos” da alegria. E a vida converteu-se, nesse viático de sombra e de fel cumprido junto do monte de Gólgota, numa simples preparação para o fim, numa “arte de bem morrer”.

Com os seus ruídos, as suas orgias, os seus bacanais, as suas saturnais, o seu gosto de exaltar a Beleza perecível dos corpos, o Paganismo foi sempre preferido por mim relativamente à frigidez das sacristias católicas. E morrerei pagão. Graças aos deuses ! Aos deuses, no plural.