28 de novembro de 2008

UMA BÍBLIA PROFANA

Já o disse uma vez e volto a repeti-lo: tenho respeito pelas coisas, pelos seres inanimados e imóveis que nos rodeiam. São eles provenientes do engenho da Natureza, da indústria dos homens ou da inspiração última de Deus? Há, talvez, nesta minha atitude, uma ressonância mitigada de neo-platonismo. Olho para as coisas como esboços do sagrado, pois sagrada é a Mãe Natureza, que nos dá as condições de sobrevivência e nos acolhe no seu seio; sagrados são também os seres humanos, essas estátuas de barro, essas costelas de Adão, que a Bíblia fez derivar, ainda e sempre, de um solo natural e moldável, prolongado na costela masculina, de que provieram as graciosas silhuetas das mulheres; e ainda sagrado, o mais sagrado de tudo e de todas as coisas, é Deus. Confesso que interpreto a narração bíblica de maneira herética. Para mim, a Sagrada Escritura não define uma relação hierárquica entre o barro, o homem, a mulher e Deus. Afinal, a Divindade poderia ter criado o ser humano a partir do Nada, como o fez para o Luz ou para o Mar. Mas não. Serviu-se de um barro que moldou. Porquê? Porque, no meu modesto entender de incréu (ou de crente adiado?), Deus quis sublinhar que o chão mais modesto, mais humilde, mais obediente, era portador de potenciais de vida, de fermentos subtis e criadores, de sementes prestes a explodir em ser. Cada homem é, desta maneira, um crisol de matéria dignificada. E cada mulher é o natural prolongamento de um barro que se fez osso e sangue, anatomia e sensibilidade. Não é verdade que a mulher tenha sido remetida a um estatuto de subalternidade só por ter nascido de uma parte da ossatura do companheiro. O que o Criador teria querido sublinhar era que cada mulher, parteira de Vida, era já - e desde a génese – vida da vida. Por isso a separou um pouco mais da Natureza. Finalmente, conferindo unidade e sentido à narrativa, vem a própria tarefa do Divino. Ela percorre toda esta arquitectura de Ser. E para a tornar mais próxima das realidades humanas, naturais, a narração sagrada até confessa que Deus sentiu a necessidade de repousar, ao sétimo dia. Francisco, meu bom Santo de Assis, como tu tinhas razão, no amor panteísta, naturalista, singularíssimo, que devotavas às folhas e às águas, ao verde dos montes e às criaturas mais primárias, como a “irmã serpente” ou o “irmão boi”!

 Um barro que se faz gente; uma gente que se prolonga para além de si, mudando de sexo mas não de natureza; um Deus que se fatiga e quer descansar, após a Magna Empresa.

 Pobre escrevinhador que eu sou, feito de barro, amante de mulheres e de mundo, duvidoso do Deus da convenção; modesto parafusador de sentidos, ai de mim, condenado infalivelmente a perecer numa qualquer fogueira inquisitória, se tivesse tido a infelicidade de viver no século XVI …

24 de novembro de 2008

LISBOA, ATÉ JÁ !

Lisboa é uma cidade assente sobre o dorso do resto de Portugal. Lisboa não tem lisboetas: possui minhotos e beirões, alentejanos e transmontanos, açorianos e durienses, madeirenses e algarvios; mas não preza especialmente a camada de indígenas nados e criados junto às águas bonançosas do Tejo. O alfacinha tende a ser um produto anómalo, afogado como está pelos que o não são, mas que reivindicam a Cidade como sua. Lisboa é hoje também o Eldorado reticente do Portugal-negro de outrora e talvez esteja agora a ser a Outra Banda de um brasileirismo recente. Mas estas arribações ainda conseguem ser remotamente lisboetas, através de elos e afinidades invisíveis, de parentelas pretéritas, de sangues, sabores e cheiros afins. Lisboa é a única Cidade portuguesa que colhe a sua identidade da simbiose operada entre a portugalidade de agora e o lastro multiforme do que já foi um dia Portugal. O encanto de Lisboa está no facto de não querer ser uma grande metrópole. Experimentemos uma digressão por ruelas de Alfama ou da Bica, da Graça ou da Madragoa, longe, bem longe da cidade dos negócios, dos sapatos de polimento, das lojas da moda. É sempre possível a interpelação familiar, a partir de uma trapeira ou de um vão de escada: “Então, menino, que anda a fazer por aqui?”. E logo a conversa prossegue e se atiça, como se tivesse sido interrompida ontem e como se a familiaridade implícita manasse de um universo de cumplicidades que se esboçam na indulgência de sorrisos. Lisboa é a cidade que eu mais amo, apesar de beirão empedernido. É a minha Cidade-fêmea, esparramada por sete coxas que são sete colinas, rescendendo a aromas ensonados de cama acabada de deixar. Lisboa não é uma orografia, nem um urbanismo, nem uma geometria pombalina. Lisboa é um estado de alma, exigindo de cada visitante, habitual ou ocasional, o esforço da compreensão empática. Lisboa, sendo embora a alfurja da politicagem venalíssima de agora, não tem nem os adereços nem os ademanes de uma Cidade-Poder. O poder de Lisboa está no seu enigma eterno, na inesperada surpresa de tão facilmente nos identificarmos com ela e de a sentirmos simultaneamente retraída e disponível. Lisboa é um rio com gaivotas por fora e bergantins por dentro. Lisboa é a luz mansa a escorrer do cimo dos céus, é um sol amarelo-palha a revelar arcarias impossíveis, fontenários sem água, aquedutos sem função.

 “Então, menino, que anda a fazer por aqui?”

21 de novembro de 2008

CORAÇÃO DA TERRA



Mas onde bate, onde bate o coração da terra?

Onde devo procurar o olhar, a pura face

Que nos dê o segredo, o sulco e o enlace

Do que bate e rebate no coração da terra?

 

Já um dia vivi como se fosse pedra

Num caminho qualquer à beira mar

E disso não tirei mais que o arfar

Da vaga que é aquém e que não medra.

 

Já um dia quis ser frondoso castanheiro

No rocio cinzento da manhã nublada

E disso não colhi mais do que um nada

Por não me terem feito arder luzeiro.

 

Nascido homem, quis fazer do destino

Um peregrinar constante e descontente

Como se a minha dúvida impotente

Me condenasse sempre a ser menino.

 

Quando um dia cessar em mim o sol da vida

Sofredor penitente da sorte de quem erra

Irei saber onde bate o coração da terra

E darei por finda, só então, a minha lida.

17 de novembro de 2008

VIAGEM PORTENTOSA

 A Ciência não é mais do que o conhecimento adequado e comprovado. Mas as adequações e comprovações são as que o tempo histórico permite. Desta maneira, a Ciência é a verdade de cada circunstância epocal. Que imagem adequada e comprovada tiveram os Gregos anteriores e posteriores a Péricles dos seus iguais? Eles sabiam-se a partilhar um espaço onde se reflectiam memórias de heróis e de deuses. Os homens gregos mais comuns, persuadidos por narrativas que vinham do fundo dos tempos – e  que Homero haveria de unificar – supunham que a realidade do mundo consciente era partilhada por deuses, potências antropomórficas com virtudes e defeitos similares aos da mais vã criatura, por heróis, no meio termo entre o divino e o puramente humano, e por seres muito comuns, açoitados pela precaridade e pela contingência. Mas acima dos homens, para lá dos heróis, mais alto que Zeus, Deus dos deuses, sobrevoava a Moira, o Destino inflexível, implacável, determinante, ao qual todos haveriam de vergar-se, uma vez que nenhum o poderia torcer, desviar ou sofismar. Era a Moira um deus? Não era. Mas hoje diríamos que era a face da Necessidade, do que “teria de ser”, ali, na borda do Mediterrâneo, ou na mais desvairada lonjura bárbara. Por lá identificaram esses homens os elementos constitutivos da realidade, desde a água de Tales ao ar de Anaxímenes, desde a matéria total de Xenófanes aos números sagrados de Pitágoras. Não teria sido por acaso que a Moira, esse princípio sumamente determinante, irrenunciável, pairou acima de tudo e de todos na espantosa aventura do conhecimento, então iniciada. É que ela ganhou o nome de Providência na Idade Média, de Virtus no Renascimento e de Causalidade na época Contemporânea. Como negar a adequação e a comprovação deste fermento espiritual? E é então que concluímos, através da dialéctica de uma história feita saber, que a descida do homem na lua, realizada ontem, se iniciara nos braços da Moira grega, que ainda anteontem velejava nas ondas opalinas da Hélade.

 

 

13 de novembro de 2008

CASA COM RISCA AO MEIO

A casa era velha e de risca ao meio, o que significa que existia um longo e sombrio corredor e que os quartos se distribuíam por ambos os lados. Era a casa dos avós. Velha, aldeã, com um último vestígio de pequena nobreza rural e com o cheiro incomparável que se desprendia de todas as infâncias nela vividas. Os nossos pais levavam-nos até lá, a mim e aos demais primos, por alturas das férias do Natal e da Páscoa e no dia em que se celebrava a festa da Nossa Senhora da Esperança. Quando a avó-viúva faleceu, ficou por lá um tio, que naquele tempo não se sentia ultrajado por ser mencionado como professor primário. Fumava muito e percorria o corredor, para cá e para lá, em passadas medidas, cadenciadas, destinadas por decreto inflexível a fazer ranger as mesmas tábuas, nos mesmos lugares, em todas as idas e vindas. Era benquisto das gentes da aldeia porque escrevia as cartas dos analfabetos, os requerimentos dos injustiçados da Administração e acertava as contas de cada um com o merceeiro do lugar, que era finório e renitente aos trocos; quando calhava, esse tio também dava injecções aos enfermiços, curando tosses e protelando mortes. Foi com ele que ganhei o gosto dos romances policiais e das peripécias intermináveis de Rocambole e do Conde de Monte Cristo. A voragem do tempo ficou então marcada, para mim, por essas periódicas passagens pelo velho casarão, com o tal corredor um pouco soturno, risca ao meio entre quartos vazios, onde o tabuado chiava como se também ele estivesse predestinado a bater as aldrabas dos instantes repetidos. Por isso, fui assistindo ao envelhecimento daquele tio preferido, a quem pedia que reproduzisse aquela intriga do Crime no teatro chinês e aquela vingança de Edmundo Dantès, o forçado que tiraria a desforra dos seus sicários abjectos. E quando ele hesitava neste ou naquele momento da narrativa, eu corrigia, aditava, clarificava. Então ele, batendo na cabeça, dizia: «Sim, é isso, é isso. E eu que já soube tão bem esse contar!...». E agitava as mãos, como um náufrago a quem tivesse fugido a bóia. Em certo ano encontrei-o mais esquálido, com a barba por fazer, e sem atinar com a tábua que rangia exactamente à vigésima quinta passada. Quando lhe quis lembrar o motivo que levara Phileas a ganhar a sua aposta na Volta ao mundo em oitenta dias, ele voltou para mim uns olhos implorativos, marejados de húmidas penas, e obtemperou: «Cala-te, cala-te, já quase nada me ocorre». Na visita seguinte, quando eu e a minha irmã o fomos saudar, ele levantou-se de um salto e, muito exaltado, acariciando os cabelos dela, murmurou: «Tu, meu anjo loiro, tu vais ser a salvação do mundo. E é preciso que eu parta para que esse efeito se possa alcançar. Mas sobre isto, nem um pio para ninguém. Há denunciantes por toda a parte. Silêncio! Nem uma palavra, ouviram?».

Foi então que eu aprendi que a velhice não é um sinal de loucura. É antes a porta de entrada num mundo maravilhoso, numa fábula infinita, a caminho da mais espantosa das aventuras.

9 de novembro de 2008

DILEMAS DE HOJE

A actual crise económica do capitalismo internacional evidencia a decadência cívica e ética dos que até agora mais o têm defendido, por serem, manifestamente, os seus maiores beneficiários: referimo-nos à clique dos grandes chefes da finança, dos maiorais da política ocidental e dos especuladores especializados em converterem em negócio chorudo o que mais deveria servir à afirmação do humano. Desde a construção da casa à edificação do espírito, desde a água que se bebe ao petróleo que se coloca no motor dos automóveis, desde o que se come ao que se frui, desde o que se lê ao que se adquire para tratar as mazelas do corpo ou do espírito, não tem havido um único sector das necessidades humanas que não tenha sido objecto da cupidez dos argentários e da sede insaciável dos adoradores do dinheiro.

O que começa a ficar transparente para o cidadão médio, ou seja, para aquele agente social que se vê obrigado a trabalhar todos os dias para comer em cada vinte e quatro horas, o que começa a ser transparente para o chamado homem comum, é somente isto: o capitalismo, o liberalismo descomandado e sem freio, alimentou e fez crescer uma certa categoria de parasitas que convertem em interesses próprios o esforço, a produtividade e a aplicação laboral de todos os demais concidadãos. Vai sendo tempo de fazer acordar para esta parasitária realidade os mais largos sectores da sociedade civil, representados pelos trabalhadores por conta de outrém, pelos profissionais liberais, pelos pequenos e médios agricultores e comerciantes, pelos industriais de porte diminuto ou tão só suficiente, pelos professores, pelos intelectuais, pelos jornalistas e por todos os que têm sido simples joguetes do imenso logro protagonizado pela mais desbragada exploração. É tempo de todos eles reconhecerem que têm sido os humildes e silenciosos obreiros inconscientes dessa descomunal volúpia lucrativista e dessa saturnal e gigantesca libação do seu sangue, do seu suor e das suas lágrimas. 

O que hoje é já manifesto é isto: o desmoronamento do campo socialista não representou, sem mais e por si só, a legitimação da usura, a justificação do locupletamento indevido, o branqueamento da negociata, do nepotismo e do infamante devorismo de uns poucos. Foi excelente que a ficção comunista se tivesse desmoronado. É que se torna possível, a partir de agora, transferir para o interior de cada uma das sociedades concretas do capitalismo ocidental aquilo que antes era genericamente analisado com base num confronto entre blocos de poder. Expliquemo-nos. Era possível, antes da queda do sovietismo, apelar para o espírito de corpo, para os brios sectários e para a emocionalidade de dois internacionalismos em confronto. O leste das “vermelhas madrugadas” engalfinhava-se com o oeste das liberdades jacobinas. Foi esta situação que ofereceu a todos os nababos parasitas o argumento terrorista e eficaz de apresentar o protesto da miséria como uma forma de conluio ou de subtil aliança com o comunismo. Uma tal argumentação é doravante impossível. Que significa isto? Isto significa que continua a haver fome e miséria apesar da queda do comunismo e que tais défices já não podem ser apresentados como uma espécie de pecado contra o chamado “mundo livre”. A partir de agora, a imensa hoste dos injustiçados pode – e deve! – reivindicar o quinhão de justiça social de que é credora sem que tal possa ser identificado como um serviço prestado a “potências estranhas”. A partir de agora, o ajuste de contas transferir-se-á do domínio das geo-estratégias para o campo das trivialidades quotidianas. E o remanescente desta luta parece ser previsível: ou as democracias capitalistas se socializam, apesar de já não haver União Soviética, ou as mesmas democracias se desnaturam pelo recurso à repressão, como se passassem a ser novas Uniões Soviéticas.

 A História dos homens é uma permanente ironia…    

6 de novembro de 2008

JESUS NUNCA RIU ?

Se o Bem só existe como o oposto do Mal, também a Tristeza só subsiste como o inverso da Alegria. Demonstram-se, em todos os jogos de antíteses, os imperativos obrigatórios do acto de viver. Tudo está ligado a tudo, de tal modo que – por hipótese – se um ser humano só conheceu a Alegria ao longo da sua existência, ele não a teria saboreado em plenitude, por lhe faltar o antónimo termo de comparação.

O único suposto que pode conferir sustentáculo à Alegria é a certeza de que a morte não é o fim inelutável dos vivos. Assim se compreende a vivacidade do riso ingénuo de S. Francisco de Assis, que não hesitava em considerar-se o “palhaço do Senhor”. Porém, os Padres Doutores da Igreja foram quase unânimes na condenação do riso. A Epístola a Lêntulo, um evangelho apócrifo, serviu de mote aos mais insignes católicos para sustentarem o princípio de que Jesus Cristo nunca rira. A Sua missão de resgate era tão decisiva, tão radicalmente séria, que o teria inibido de rir. A partir deste pressuposto, virão a desenhar-se todos os anátemas a quaisquer formas de Alegria que pudessem traduzir-se em francas gargalhadas. Basílio da Cesareia, Santo Ambrósio, S. João Crisóstomo ou Clemente de Alexandria inauguraram o retrato de uma Igreja sisuda, de cenho carregado, pouco propensa a liberdades, liberalidades ou festividades de riso. Um dos mais terríveis adversários do acto de rir foi Bossuet, que deixou plasmado este conselho numa carta dirigida à irmã Cornuau: “Passe um quarto de hora de todos os dias a considerar de relance esse austero e doce mestre da virtude cristã, na pessoa de Jesus Cristo, que dela foi o perfeito modelo e que tanto chorou e nunca riu”.

No entanto, a crença na vida eterna deveria ter sido garante de manifestações prazenteiras. Percebe-se que o materialismo e o existencialismo contemporâneos tenham feito assentar os estilos de vida desesperançados, pessimistas, tendencialmente niilistas, no sorumbático fardo de um corpo condenado sem escapatória ao apodrecimento e à definitiva decomposição. Mas entende-se mal que quaisquer doutrinas anunciadoras da Boa Nova da imortalidade para os crentes se afundem no pântano de uma tristeza assumida como modo de ser. Por mim – que nunca consegui ultrapassar os limites do agnosticismo – não me chocaria que Jesus Cristo tivesse contado aos seus discípulos alguma anedota inocente, alguma historieta de casta zombaria, algum manso e espirituoso dito. É que, estou certo, era um dos meios de comprovar a sua condição de Divindade feita Humanidade. E até Pedro iria mais contente, deste modo, para a sua pescaria de almas transviadas.   

2 de novembro de 2008

TRINDADE COELHO


Já se cumpriu, neste ano da graça de 2008, o centenário da morte de José Francisco Trindade Coelho, mimoso escritor d’Os Meus Amores e amorável redactor da mais celebrada crónica da vida académica de Coimbra, contida na soberba evocação do In Illo Tempore. Claro que nos dias de hoje já quase ninguém lê estes textos. Valha a verdade, nos dias de agora já quase ninguém lê coisa nenhuma … Mas Trindade Coelho merecia como poucos ser divulgado, apreciado e meditado.

Em jovem, no seu Mogadouro pasmado e silencioso, era ele quem ia de porta em porta, ler ao povo analfabeto – monarquicamente analfabeto, graças à ficção do constitucionalismo dinástico – o acervo dos contos ingénuos, como o do Menino da Mata e o seu cão Piloto e dos versos de pé quebrado, como os do Monte Verde. Foi depois estudar para um colégio do Porto e o pai quase teve de o arrancar à força da beira do mar, tão apaixonado ele ficara pelo balançar das ondas e pelo piar das gaivotas.

Arribou a Coimbra para se fazer jurista e observou de perto o viço e o bolor da urbe mondeguina, espartilhada entre a gravidade distante dos seus lentes e a estúrdia proverbial da sua estudantada em flor.

Depois de formado, começou o seu calvário. A vida profissional arrancou-o ao mundo secreto dos seus prazeres rurais – às flores singelas da borda dos caminhos, ao ar lavado das eiras, ao perfume suave dos fornos de pão, ao marulhar dos regos de água e ao cantar dos galos por entre a neblina dos matos e dos bosques. Como delegado do Procurador régio, enxertaram-no à força por lonjuras que pouco ou nada lhe diziam. Passou como gato por brasas pelas planuras de Portalegre e pelas doçuras de Ovar, antes de se ver plantado em Lisboa, como se ninguém tivesse percebido que em Lisboa não havia flores campesinas na fímbria das avenidas, nem cães a ladrar ao rapazio, nem sussuros de água a saltaricar por levadas e por canais de rega. Apanhou em cheio com a vergonha do Ultimato inglês, eterno opróbrio de governantes acéfalos, e teve de mediar o conflito entre o autoritarismo germanizante do Poder coroado e a reivindicação do civismo e do civilismo republicanos. E ficou provisoriamente de mal com a democracia, por ter de fazer cumprir leis liberticidas, como lhe era imposto pela ética do cargo. Mas, apesar disso, tentou influenciar os legisladores do tempo para que não fosse tão duro e tão inapelável o rigor dos mandantes.

O fim do dia de trabalho era a sua libertação. Tal como correra outrora pelas ruelas do seu Mogadouro, subia agora a correr os primeiros lances das cento e onze escadas que o faziam trepar, com a alma em festa, ao seu quarto andar lisbonense. Muitos dos seus escritos ficaram entre nós para comprovar que Trindade Coelho foi, desde sempre e para sempre, um verdadeiro amigo do povo, dessa arraia-miúda a quem um dia a rainha Maria Antonieta sugeriu que comesse brioches, replicando à notícia de não ter tal multitude dinheiro para comprar pão!

Merece ser contado o circunstancialismo que originou a redacção da sua Cartilha do Povo. Um dia, jantando no Hotel Central com Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ouviu-lhe dizer que num certo salão mundano de Lisboa se defendera que o povo deveria ser mantido na ignorância, para felicidade própria. Foi a indignação gerada por tamanha enormidade que lhe fez redigir,pela calmaria de um domingo, de chofre, sentado num banco da Avenida da Liberdade, a sua Cartilha. A ela se juntam, na firme intenção de elevar os mais fracos e mais atolados em ignávia, o seu Remédio contra a Usura, a sua Parábola dos Sete Vimes, o seu Abc do Povo.

Num outro dia, Trindade Coelho cansou-se da vida e do viver. Suicidou-se em 9 de Agosto de 1908.

Com a mesma singeleza rústica com que nos seus tempos de infância recitara contos tradicionais à gente humilde de Mogadouro, José Francisco Trindade Coelho exarou estas palavras, na sua Autobiografia : “ Creio em Deus; sou cristão; amo a Arte de toda a minha alma; gosto muito das mulheres e das crianças, das flores e da natureza; e o meu maior e mais vivo prazer seria remediar os necessitados”.

Pode lá morrer Gente tamanha!