Já se cumpriu, neste ano da graça de 2008, o centenário da morte de José Francisco Trindade Coelho, mimoso escritor d’Os Meus Amores e amorável redactor da mais celebrada crónica da vida académica de Coimbra, contida na soberba evocação do In Illo Tempore. Claro que nos dias de hoje já quase ninguém lê estes textos. Valha a verdade, nos dias de agora já quase ninguém lê coisa nenhuma … Mas Trindade Coelho merecia como poucos ser divulgado, apreciado e meditado.
Em jovem, no seu Mogadouro pasmado e silencioso, era ele quem ia de porta em porta, ler ao povo analfabeto – monarquicamente analfabeto, graças à ficção do constitucionalismo dinástico – o acervo dos contos ingénuos, como o do Menino da Mata e o seu cão Piloto e dos versos de pé quebrado, como os do Monte Verde. Foi depois estudar para um colégio do Porto e o pai quase teve de o arrancar à força da beira do mar, tão apaixonado ele ficara pelo balançar das ondas e pelo piar das gaivotas.
Arribou a Coimbra para se fazer jurista e observou de perto o viço e o bolor da urbe mondeguina, espartilhada entre a gravidade distante dos seus lentes e a estúrdia proverbial da sua estudantada em flor.
Depois de formado, começou o seu calvário. A vida profissional arrancou-o ao mundo secreto dos seus prazeres rurais – às flores singelas da borda dos caminhos, ao ar lavado das eiras, ao perfume suave dos fornos de pão, ao marulhar dos regos de água e ao cantar dos galos por entre a neblina dos matos e dos bosques. Como delegado do Procurador régio, enxertaram-no à força por lonjuras que pouco ou nada lhe diziam. Passou como gato por brasas pelas planuras de Portalegre e pelas doçuras de Ovar, antes de se ver plantado em Lisboa, como se ninguém tivesse percebido que em Lisboa não havia flores campesinas na fímbria das avenidas, nem cães a ladrar ao rapazio, nem sussuros de água a saltaricar por levadas e por canais de rega. Apanhou em cheio com a vergonha do Ultimato inglês, eterno opróbrio de governantes acéfalos, e teve de mediar o conflito entre o autoritarismo germanizante do Poder coroado e a reivindicação do civismo e do civilismo republicanos. E ficou provisoriamente de mal com a democracia, por ter de fazer cumprir leis liberticidas, como lhe era imposto pela ética do cargo. Mas, apesar disso, tentou influenciar os legisladores do tempo para que não fosse tão duro e tão inapelável o rigor dos mandantes.
O fim do dia de trabalho era a sua libertação. Tal como correra outrora pelas ruelas do seu Mogadouro, subia agora a correr os primeiros lances das cento e onze escadas que o faziam trepar, com a alma em festa, ao seu quarto andar lisbonense. Muitos dos seus escritos ficaram entre nós para comprovar que Trindade Coelho foi, desde sempre e para sempre, um verdadeiro amigo do povo, dessa arraia-miúda a quem um dia a rainha Maria Antonieta sugeriu que comesse brioches, replicando à notícia de não ter tal multitude dinheiro para comprar pão!
Merece ser contado o circunstancialismo que originou a redacção da sua Cartilha do Povo. Um dia, jantando no Hotel Central com Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ouviu-lhe dizer que num certo salão mundano de Lisboa se defendera que o povo deveria ser mantido na ignorância, para felicidade própria. Foi a indignação gerada por tamanha enormidade que lhe fez redigir,pela calmaria de um domingo, de chofre, sentado num banco da Avenida da Liberdade, a sua Cartilha. A ela se juntam, na firme intenção de elevar os mais fracos e mais atolados em ignávia, o seu Remédio contra a Usura, a sua Parábola dos Sete Vimes, o seu Abc do Povo.
Num outro dia, Trindade Coelho cansou-se da vida e do viver. Suicidou-se em 9 de Agosto de 1908.
Com a mesma singeleza rústica com que nos seus tempos de infância recitara contos tradicionais à gente humilde de Mogadouro, José Francisco Trindade Coelho exarou estas palavras, na sua Autobiografia : “ Creio em Deus; sou cristão; amo a Arte de toda a minha alma; gosto muito das mulheres e das crianças, das flores e da natureza; e o meu maior e mais vivo prazer seria remediar os necessitados”.
Pode lá morrer Gente tamanha!
3 comentários:
MORRER... PARA VIVER!
Pessoa assim como o "mimoso" autor
dos "Meus Amores", límpido e singelo,
não devia de facto, Professor, estar sujeito à morte, há que dizê-lo.
Há que dizê-lo, sem vacilação,
pois quem ama as crianças, as mulheres
e tudo quanto enfeita a criação
fora se encontro do comum dos seres.
Criaturas assim têm o direito,
do meu ponto de vista, de afrontar
a morte sem à mesma estar sujeito.
Almas assim devem poder optar
por se encontrar com Deus, determinando
não apenas o modo como o quando!
João de Castro Nunes
COIMBRA DE BORLA E DE CAPELO
Coimbra tem um cheiro especial
que envolve todo o centro da cidade,
talvez devido à Universidade
que é a sua mais-valia principal.
Há qualquer coisa, não percebo qual,
que lhe confere universalidade,
um perfume, um aroma desigual
de toda outra qualquer localidade.
Suponho que não seja impressão minha,
pois toda a gente o diz quando a visita
e pelo centro histórico caminha.
Muito emboa sujeito a contradita,
creio que tudo, atrevo-me a dizê-lo,
vai sempre dar à borla e ao capelo!
João de Castro Nunes
Son galega do Ferrol e é un pracer muito grande coñocer a meu tio avó dende internet.
Grazas e un saudo
Enviar um comentário