24 de novembro de 2011

LISBOA DO MEU FADO

(por ocasião da candidatura do Fado como Património Imaterial da Humanidade)

Ai, vielas de Lisboa , ai veias da minha alma

Ai alegrias e dores, claridades , destinos.

Uma cidade-magia por onde correm meninos

E poetas fazem versos como actores que fossem Talma.

Ensoleirada portada debruçada sobre um rio

Calçada bem enroupada em dias de muito frio

Castelo de cotovelo acastelado num cimo

De gentes acreditadas, carenciadas de arrimo

E D. José vigilante em cavalo pata-ao-ar

E o Carmo arruinado no seu perpétuo cismar

E a casa de bonecas duma Torre de Belém

Jerónimos doutros tempos guardados como refém

E todo um Povo a fremir de vida sem mordomias

Se tu a soubesses ler decerto que a lerias

Como livro croniqueiro dum tal Lopes bem Fernão

Como entremez joalheiro dum Vicente dito Gil

Cidade de coração com corações mais de mil

Teu fado é prenderes a ti os que presos ficarão

Meu fado é prender-me a ti como musgo num desvão.

19 de novembro de 2011

TRONO DE CETIM


Reclinada num trono de cetim

A Deusa é um fuste da gávea intemporal.

E no entanto , lá em baixo ruge a fera do mal.

Rolam fogos de lava, vomitando carmim

As entranhas da terra. Isso que importa?

A Deusa ripa uvas

Esquecida das chuvas,

Ela, que nunca se sentiu como morta.

Lá longe, no denso crepitar de gente aflita

Há quem sofra terrores de medo e maldição

Mas não assim a Deusa, a Deusa não.

E é então que penso para mim

Que tal Deidade

Ignota e recolhida num casulo malsão

Reclinada assim

Num latrinário trono de cetim

É só a edição duma maldade;

É igual ao nada que se soma

À caminhada penosa dos que vão

Morrendo aos poucos, como quem toma

Veneno e perdição

Perto, tão perto já do fim

Longe, tão longe

De tronos de carmim

E de cetim.

9 de novembro de 2011

A ERVA DA SARDENHA

Sustentam alguns que certa forma de riso maldoso, intencionalmente dirigido à humilhação do nosso semelhante, foi designado de “sardónico” por existir na Sardenha uma erva venenosa que, uma vez ingerida, provocava rapidamente a morte. Nestas circunstâncias, a face do defunto apresentar-se-ia arrepanhada, distorcida, contraída num “rictus” de aparente sorriso. A este riso ou sorriso mortal foi dado pelos homens o nome de riso “sardónico”. Isto permite a extrapolação do domínio dos factos para o das interpretações, caucionando o salto da Ciência para a Ética. É que quando nos rimos de alguém com intenção depressora, quando derramamos sobre o adversário o mesmo riso que Ulisses dirigiu a um dos pretendentes a Penélope, sua mulher, no momento em que regressou a Ítaca disfarçado em pedinte, numa palavra, quando vexamos o nosso irmão de espécie com a malignidade deste riso, estamos a vaticinar a morte antecipada desse adversário, agora convertido em inimigo. Voltemos à “Odisseia”. Ulisses, ao chegar, só foi reconhecido por Argus, o velho cão que deixara no seu palácio antes de peregrinar por sobre as salsas ondas. Homero não o declara, mas é de calcular que tenha afagado o animal com um sorriso não-ervado. Ao inimigo, pretendente do tálamo da sua esposa, ele endereçou um riso venenoso e letal. Como é sabido, ao desvelar-se, Ulisses matou com as suas próprias mãos todos os invasores da sua intimidade, todos os disputantes daquela que o reconhecia como esposo e que, como tal, o havia esperado em ânsias. O caso está em que a justificação do “mortal-sardónico” é apenas admissível – se o for… – nos casos extremos em que nos batemos por causas indeclináveis. Nem sempre Ulisses arriba a Ítaca. Mas são inúmeras as vezes em que soltamos da alma a erva daninha com que vamos matando moralmente os nossos irmãos, obrigando-os a ingerir a erva da Sardenha.

6 de novembro de 2011

IMPROPRIEDADES TEOLÓGICAS

Dizem os teólogos que os desígnios de Deus são insondáveis. Insondável é, desde logo, o modo como o Antigo Testamento estabeleceu as fronteiras do Bem e do Mal. Estas categorias não surgiram como emanações directas de Forças opostas mas antes como uma interdição do próprio Criador. Recapitulemos. Após a criação do primeiro homem e da primeira mulher, o Divino colocou o par originário num Jardim de Delícias paradisíaco. Mas logo decretou que o fruto de certa árvore lhe estava interdito. A nossa longínqua mãe Eva obrigou Adão a pecar, oferecendo-lhe o fruto dessa árvore proibida. Deus expulsou-os do Paraíso e, a partir dessa desobediência, foram estabelecidos inumeráveis malefícios para os rebeldes originários e para toda a sua descendência. Uma pergunta se impõe : que estranha fronteira de inibição desenharia essa tão perigosa árvore ? O que aprendi com sacerdotes católicos , desde a mais tenra infância, foi, sobre este ponto, algo de muito contraditório. Uns declaravam que Adão e Eva tinham comido o fruto da Árvore da Ciência e que tal ousadia aparecera como intolerável aos olhos de Deus, por nela se ocultar o desejo de uma concorrência insuportável, de uma divinização a partir do barro humano. Mas - pergunta a nossa ignorância - não foi Adão criado á imagem e semelhança de Deus ? A ter sido assim, não se afigura exorbitante que a criatura tivesse desejado imitar o Criador, por efeito desse mimetismo que o próprio texto sagrado confessou existir. Quando atingi a adolescência, um outro padre católico assegurou-me que a linguagem utilizada da Bíblia era alegórica e que o famigerado fruto proibido não era mais do que o império carnal, ou seja, o desejo sexual consumado pecaminosamente. Mas, a ser assim, a imagem do Criador não sai nada favorecida. Por um lado, verificar-se-ia uma insanável contradição entre o Antigo Testamento, que proscreveria o desejo da carne, e o Novo Testamento, no qual o Filho de Deus prescreveria o ditame do « crescer e multiplicar » ; por outro lado, a severidade divina, a ser observada, iria reduzir a Humanidade à « parca ração » - como diria a saudosa Natália Correia -de duas criaturas. Ora isto projecta sobre o nosso tempo uma angústia geométrica, sobre a qual já Malthus refectiu, na transição do Século XVIII para o Século XIX. A tremenda angústia resultaria axiomaticamente desta elementar conclusão : a Humanidade, até ao presente, teria pecado mais de sete mil milhões de vezes. Valha-nos o facto de estarmos confiados a um Deus de uma evangélica paciência. E tranquilize-nos a circunstância de ser o escrivão deste texto um livre-pensador crivado de pecados e, como tal, pasmosamente ignorante destas seráficas e misteriosas transcendências.