30 de outubro de 2007

SEGREDO

Quero dizer-te uma coisa ao ouvido
só p’ra ti.
mas tens de prometer-me
que do que te disser
nada será revelado.
Um segredo? É isso
querendo eu que fique bem guardado
dentro de ti.
Talvez um dia o possas dizer
(sabe-se lá)
a um filho, a um amigo,
a um amante
e a todos pedirás
como eu o faço agora
que tudo fique guardado
e secreto
num tempo e numa hora.
Há coisas mil que ninguém pode
confessar.
Mil coisas há que todos podem
amar.
Do mesmo modo que existem
(oh, se existem)
amores inconfessados
parados
nas gavetas do tempo
ou nas pregas
da memória.
Tu sabes lá
como em certos momentos
o mundo todo
imenso, poderoso e discordante
vem ter conosco
e nos responde
a cada paradoxo
suplicante.
Tu sabes lá
por que paragens
vogou meu livre pensamento
em que viagens
sulcou por terra e mar
o mundo todo.
Tu sabes lá
com que estranha estranheza
inventamos a natureza
de uma pequena decepção
ou o marulhar do mar
de uma imensa paixão.
Não, tu nada podes saber
de tudo isto
pois ficaste encalhada
(coitada, coitada)
entre Maomé e Cristo
pois ficaste ancorada
nesse canto
obscuro.
Vem , anda cá
ouve enfim meu segredo
vem até mim
sem ontem e sem medo.
Estende-me a concha desse ouvido
ávido de verdade
e de ilusão
Ouviste bem agora?
Não?
Que pena!
Passou por mim a hora
De tal inconfidência.
E agora?
Agora nada !
Fiquemos por aqui
tem paciência …


22 de outubro de 2007

INSTANTE

Alvoradas, crepúsculos,
Restos de mim, opúsculos
De capa rota e parda.
Um conto sem final;
Assim sou eu agora:
Um relógio sem hora
Uma estátua de sal.

19 de outubro de 2007

A ARTE DA HISTÓRIA

Falemos um pouco da Historiografia e do modo de a “construir”. O insuperável embaraço de leituras militantes, ideologicamente comprometidas, à direita ou à esquerda, reside numa grelha de interpretação que opera com categorias a priori, das quais irrompem coloridas apoteoses ou sombrias fulminações, consoante as conveniências do momento. Mas a ponderação shakespeariana de existirem muito mais coisas no céu e na terra do que as que se encontram a operar nos limites de uma epistemologia preconceituosa é aquela que nos permite discernir, no campo da gesta histórica, entre os historiadores submetidos ao princípio da realidade e os novelistas usufrutuários do princípio do prazer. Esta terminologia, colhida de empréstimo à psicanálise, não visa empurrar para o divã qualquer historiador em concreto.
A sociologia do conhecimento já provou, desde há muito, que nenhum autor é “neutral” a escrever. Quem escreve, parte para o acto da escrita com um conjunto de servidões inevitáveis, de base ideológica, as quais incorporam a magnitude de uma formação prévia e até o acervo de um léxico intransmissível. Assim, é saudável que o escritor aceite com humildade a sua condição de indagador precário e não se aliene ao mito das pretensas verdades absolutas. Para mal da História e dos historiadores, sobejam hoje os “teólogos de Clio”, atulhados de certezas balofas e de intocáveis conclusões. Volitam nos céus da arrogância e orgulham-se de serem os arautos de uma “Ciência” acabada, entendível apenas em círculos iniciáticos. A pretensão de “neutralidade” anda invariavelmente associada a esta liturgia axiomática. É recomendável que se fuja o mais que se puder desta casta de “historiadores-cientistas”. Em nossa opinião, é sempre preferível o “historiador-artista”, metodicamente duvidoso, praticante de um rigor que não desdenha a intuição e de um esforço de objectividade que não enjeita a quase inevitável superação futura das avaliações presentes. A Arte, para nós, é isto mesmo : uma organização peculiar de formas, sons, cores, palavras, sensações e vivências, através das quais se persegue a demanda prometeica que nos conduz mais perto do Fogo e nos agrilhoa, logo de seguida, à rocha agreste da punição. Tal castigo não é mais do que a comprovação do nosso indómito desejo de conhecer, ao qual se associa o reconhecimento da debilidade com que abraçamos o desafio da cognoscibilidade.

10 de outubro de 2007

HOMENAGEM A J. S. DA SILVA DIAS

O que hoje sou, como académico e universitário, devo-o ao meu falecido Mestre. Foi ele o Professor Doutor José Sebastião da Silva Dias. Para além de ter criado, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Instituto de História e Teoria das Ideias, o Professor Silva Dias reuniu em torno de si um grupo de jovens investigadores que cresceram sob a sua alçada e que – sem omitir por falsa modéstia o facto de me saber aí incluído – revolucionou, após a mutação do 25 de Abril de 1974, a metodologia e a substância do conhecimento histórico português. Esse núcleo de estudiosos congregava nomes tão relevantes quanto os de Luís Reis Torgal, Fernando Catroga, Zília Osório de Castro e José Esteves Pereira, entre outros. Por isso, a minha chegada e posterior integração numa plêiade tão notável produziu no meu ânimo uma impressão comparável à do néscio entre doutores.
Embora habitualmente afável e de trato correcto, o Professor Silva Dias cultivava um pouco a postura do pedagogo paternalista, credor do temor reverencial devido por neófitos às sumidades instaladas. Eu acabara de sair de uma carreira técnica: fora Conselheiro de Orientação Profissional do Serviço Nacional de Emprego, estrutura que apoiava o recrutamento de candidatos aos diversos cursos profissionalizantes então ministrados em específicos centros de formação. Era nula a minha experiência nos domínios da investigação histórica. Como então estivessem a ser publicados os primeiros números da “Revista de História das Ideias”, o Professor Silva Dias logo incumbiu os seus colaboradores do labor de produzirem para ela substanciosos artigos científicos. Quanto a mim, fiquei aterrado quando verifiquei … que não sabia o que era isso da investigação histórica. Dei-me ao ensaio, com reduzido êxito, de diversificadas técnicas de catalogação e de alinhamento bibliográfico. Mas daquela mole imensa de resumos, notas, comentários, adendas, remissões e auxiliares de memória, daquela estupenda e estupidificante Babel de erudição, não havia meio de sair um artigo digno de tal nome. Decidi encarar de frente a minha ignávia, a minha entranhada e insuperável inépcia, indo pedir ao meu Mestre e mentor o avisado conselho que me libertasse das angústias da impotência. O professor Silva Dias acolheu-me afavelmente no seu gabinete, disparando, depois de me saber bem sentado :- Então Carvalho Homem, o que é que o traz por cá? Engasguei então duas ou três frases desconexas, antes de ganhar coragem para confessar, despejadamente: - Acontece, senhor Doutor, que eu não sei investigar; vim aqui pedir ajuda. Numa palavra, como é que se investiga, senhor Doutor? O rosto do meu Mestre animou-se com os sinais de uma divertida surpresa. Ajeitou uma melhor posição na cadeira, antes de replicar: - Ora essa, Carvalho Homem; saber investigar é como aprender a nadar. A pessoa lança-se à água e esbraceja, esbraceja, até lhe apanhar o jeito. Quando tal acontece, essa pessoa fica a saber nadar. E calou-se, logo de seguida, fitando-me prazenteiramente por detrás dos seus óculos de tartaruga. Meio aturdido, mas disposto a não depor as minhas armas sem uma total clarificação, engatilhei então a pergunta óbvia: - E se a pessoa esbracejar, esbracejar, voltar a esbracejar, e mesmo assim não aprender a nadar? A réplica veio logo de seguida, com a inexorável frieza das coisas taxativas: - Se não aprender a nadar, não há novidade. Afoga-se. Tem a sorte que merece, não acha?
Confesso que nessa altura tal juízo me pareceu tão rude quão cruel. Foi necessário que eu tivesse aprendido a nadar para me aperceber da subtil sabedoria implícita, contida nas palavras do professor Silva Dias. Por isso lhe guardo o respeito a que a sua memória faz jus. Hoje, um desses pseudo-pedagogos de plástico talvez tivesse respondido ao meu aflito inquérito com as seguintes considerações: - Investigar? Mas para que diabo quer você investigar? Vá à Internet, meu amigo. Vá lá e compre uma investigação já feita. Um mestrado é barato! Um diploma de doutoramento custa um pouco mais. Mas vale a pena gastar dinheiro em obra asseada, não lhe parece? Investigar! Isto é que ele é parvo …
Como me orgulho de ter sido discípulo do saudosíssimo Doutor José Sebastião da Silva Dias! Que a terra lhe seja leve!

8 de outubro de 2007

OLHARES

Existe no olhar qualquer coisa de perturbante. Recordo olhares que profundamente ecoaram em mim, como se houvesse (e havia …) toda uma mensagem a encher o espaço que ia dos meus olhos àqueles outros que me fitavam.
Era eu pouco mais do que um miúdo, quase às portas da adolescência. Os meus pais decidiram acolher lá em casa uma trintona gorda, amiga de uma irmã que tive um dia. A dita mulher padecia dos nervos ou encontrava-se, se bem me recordo, à beira de um profundo distúrbio psicológico. Arrastava as palavras, apresentava o esboço de um sorriso triste e olhava as coisas de longe, fazendo crescer o espaço que mediava entre os seus olhos e os alvos em que o seu olhar se espreguiçava. Ouvia Stravinsky de manhã à noite, num gira-discos portátil, de marca “Dual”, que conseguira obter dos meus pais. O Stravinsky que eu ouvia era muito similar, segundo me parecia, ao olhar da trintona anafada. O “Pássaro de fogo”, que soava na grafonola, apresentava-se-me como um mergulho no vago, uma vez que os meus ouvidos não sabiam entender aquela estranha música, feita de estridências e de murmúrios para iniciados. Acabei por amar aquela música e por venerar aquela mulher. Ou teria sido o contrário? Ou afinal dei comigo a venerar Stravinsky e a amar aquela fêmea de ventre búdico? Não sei. O que recordo é a ondulação de um olhar-brisa, lambendo as coisas sem as esmiuçar. Desde aquele tempo, o olhar das pessoas é uma obsessão privativa com que componho as mais bizarras hipóteses. Aprendi, por exemplo, que a melhor forma de aquilatar da verdade caracterial de alguém é olhar esse alguém bem no fundo das pupilas. Poucos aguentam tamanho esforço de trespasse e ultrapassagem da barreira da visão, sobretudo quando os observados se sentem prisioneiros de algum remorso ou de alguma servidão de consciência. Mas os que logram resistir a esse exercício de resistência são os que gosto de contar no meu caderno de indefectíveis. Tive a penosa mas também decisiva experiência de assistir aos últimos momentos da minha mãe. Fui encontrá-la em estado de choque – nunca pude saber que choque era aquele e que causas lhe estiveram associadas. O olhar dela, que conhecera tão solto, tão meigo, tão cheio de mil aromas, aquele doce olhar encontrei-o eu vazio como um templo saqueado. Foi então que senti que o meu “Pássaro de Fogo” tinha cantado pela última vez. Voara para algures, sem ter tido tempo de me dizer um derradeiro adeus. E ainda hoje, quando escuto Stravinsky, sou tomado do remorso de não ter colhido e guardado no meu cofre mais bonito o último olhar vivo e quente daquela que foi, desde sempre e para sempre, a mais importante Mulher da minha vida.