28 de março de 2008

POR TERRAS DE ESPANHA

Andei por terras de Espanha e fiz-me acompanhar do imortal volume de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, na sua língua de origem. Levei um último vestígio desse “complexo de Aljubarrota” que o salazarismo inoculou em toda a minha geração: a dominação filipina, a ameaça da anexação, bem como o provinciano e xenófobo suelto segundo o qual “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”. E fui lendo uns capítulos do Quijote, à medida que fui avançando para o interior do antigo reino de León, rompendo por planuras cismáticas e por alturas nevoentas.
A Espanha é hoje uma grande e próspera nacionalidade, servida por um povo que me pareceu laborioso, feliz e orgulhoso do seu progresso. E nem sequer nos trata com sobranceria: limita-se a desconhecer-nos! Não porque nos queira mal. Simplesmente porque, dobrada sobre os seus valores, as suas tradições, os seus hábitos de vida, é agora tão absolutamente auto-suficiente que os outros, quaisquer outros, deixaram de ser motivo de atenção.
A Semana Santa é, em toda a Espanha, um prodígio de identidade. Não é que se acolha, na alma de cada espanhol, o antigo fervor das fogueiras inquisitoriais ou o feroz integralismo religioso da experiência franquista. Acontece, isso sim, que a Espanha fez da crença católica um símbolo identitário, no qual plasma uma sociabilidade de arejo comunitário. Eu vi o desfile de várias procissões, com os seus pesadíssimos e dourados andores aos ombros de homens robustos, caminhando a par e em uníssono; eu vi toda uma cidade na rua, sem excessos de fanatismo, mas com a contida alegria de quem reconhece que todo aquele arraial religioso tem de cumprir-se, de celebrar-se com a mesma imperturbabilidade com que o Quijote investia contra moinhos e desbaratava rebanhos de ovelhas; e eu vi, invejoso – invejoso, sim, confesso … - as crianças leonesas a bordejarem os préstitos, à frente dos adultos (porque os adultos faziam gala nisso), aguardando, serenas, que os mais pequenos penitentes, de cogula em bico, lhes viessem dar a mão, num cumprimento carinhoso.
A Espanha é hoje, quero crê-lo, esta lição de continuidade, de apego a si mesma, de perfeita e bem sucedida auto-consciência.
Trouxe comigo o hidalgo ingenioso, para o continuar a ler. Mas deixei lá, enterrado para sempre, o último farrapo, velho e deslocado, da má vontade salazarista.

9 de março de 2008

NA MORTE DE JOEL SERRÃO

O meu Colega Professor Luís Reis Torgal publicou na passada edição de domingo do “Diário de Coimbra” um texto evocativo da personalidade de Joel Serrão, eminente Homem de Cultura, recentemente falecido. É um texto em que todos os “discípulos espirituais” de Joel Serrão se revêem e que sintetiza, com pertinência e justeza, o significado da intervenção intelectual, cívica e humana daquele Ilustríssimo Mestre.
Eu não sei se Joel Serrão foi só Historiador. Sempre aprendi a respeitá-lo como Filósofo, Literato, Esteta e “também” Historiador. Joel Serrão não foi “Homem de um só livro” – nem o poderia ter sido, dada a singular abertura do seu espírito e considerada a versatilidade dos seus múltiplos talentos. A sua insaciável curiosidade levou-o tão depressa à indagação sobre o desenvolvimento dos caminhos-de-ferro em Portugal como ao estudo da obra de Cesário Verde, passando ainda por Antero de Quental e a introdução do socialismo em Portugal, por Teófilo Braga e a problemática do nosso republicanismo ou até pelas reflexões sobre a transformação trazida à Civilização Europeia pela introdução da iluminação eléctrica (o que o levou a distinguir entre o conceito de “noite natural” e o de “noite técnica”).
Ele foi, indiscutivelmente, a referência de uma geração que hoje andará pelos sessenta e tal anos, ou seja, a referência da minha geração. Teria sido o único? Certamente que não! O professor Torgal referencia um outro alto expoente da nossa e de outras gerações, este, felizmente, ainda entre nós: Eduardo Lourenço. Permita o meu Colega que acrescente, por minha conta e risco (e, naturalmente, à margem do sentido do seu artigo de imprensa), os nomes de Joaquim Barradas de Carvalho, José Sebastião da Silva Dias , Borges de Macedo, Vítor de Matos, Miguel Baptista Pereira, todos já falecidos, e Maria Helena da Rocha Pereira – esta Grande Senhora ainda entre nós, para nosso bem e para júbilo da Cultura Portuguesa. Com tais nomes se compõe o florilégio de uma “geração mental”: a que fez a ponte entre o Estado Novo e esta pobre “Democracia”.

Que a terra seja leve a Joel Serrão.

8 de março de 2008

SENHORA DAS ÁGUAS

A Senhora das Águas vivia num aquário
Forrado de paredes cor de rosa.
Quando pela manhã o vidro coalhava
Os primeiros raios do primeiro sol
A Senhora das Águas estendia os limos
Dos seus cabelos e deslizava molemente
Para o meio dos corais e dos moluscos.
Havia na Senhora das Águas uma indecisão
De ser e uma perplexidade de estar
Que a fazia enigmática e distante.
Dizia o maior dos peixes que um dia
A Senhora das Águas haveria de obrar
O milagre que todos aguardavam
Desde o começo da vida aquática.
E foi assim que um dia, dia de primavera
E de puras brisas, a Senhora das Águas foi
Por igual requestada por um sol muito macho
E por um cor de rosa muito feminino.
A Senhora das Águas descobriu então
Que era uma divindade hermafrodita
Celebrada por Ovídio e pelo velho Homero.
Foi nesse dia, dia de maravilha e de sol posto,
Que a Senhora das Águas se derramou de tal modo
Pelas areias do fundo do aquário e pelos musgos
Anões das paredes de vidro, e de tal modo se espalhou
Por cada gota e por cada bolha do líquido elemento
Que o sol, quando a quis possuir, só acabou por encontrar
A doçura daquela água cor de rosa, branda e opalina,
Onde se perdeu em demandas de luz e em lágrimas de adeus.


2 de março de 2008

NOCTURNO


No colear desta vida pressurosa
Não é forçosa a rima, ouviste bem?
Antes o ritmo do crescer da rosa,
O doce afago da mão de cada mãe.

Não rima o dia com a Natureza;
A luz solar não busca identidades;
Tudo enfim prenuncia com justeza
Os corsi e os ricorsi das Idades.

Só tu, meu Amor, meu amorável Bem,
Esforças por rimar dois corações
Que pulsam nas verdades de quem tem
O ritmo subtil das mútuas doações.