28 de dezembro de 2006

BAKHTINE E A CULTURA POPULAR

Numa das mais espantosas abordagens feitas sobre a Cultura popular das Idades Média e Moderna, que tivemos a sorte de ler em francês, o russo Mikhaïl Bakhtine, autor de A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e sob a Renascença, extrai da expressão grotesca da vida uma penetrante visão do simbolismo social. É bom que se saiba que a designação de um certo tipo de arte como arte grotesca remonta aos fins do século XV. Foi então que as escavações feitas em Roma, nos subterrâneos das Termas de Tito, trouxeram à luz um certo tipo de grafismo inusitado e de representação surpreendente. Os especialistas estabeleceram que acabara de ser descoberto um estilo novo e que este, por ter sido revelado numa gruta ("grotta", em italiano), merecia a menção de estilo grotesco. As imagens subterrâneas das Termas de Tito chamaram a atenção pela sua criatividade e pela sua fantasia. Elas aboliam as fronteiras convencionais entre os reinos mineral, vegetal e animal. De uma pedra podia nascer um tronco humano, cujos membros se convertiam em ramarias de árvores, cobertas de folhas e de frutos. Seres mitológicos irrompiam ao lado de representações radicalmente naturalistas. E da profusão dos mais diversificados motes temáticos, do cruzamento sugestivo de contributos visuais heteróclitos, nascia uma arte dotada de individualidade própria. Se bem interpretamos a clássica obra de Bakhtine, foi através desta que se verificou o mais fundamentado e inteligente juízo acerca da chamada “cultura popular” medieval e renascentista, através da reivindicação da sua dignidade própria, deduzida a partir do seu significado peculiar. A “cultura popular” distingue-se da “cultura elitista”, segundo Bakhtine, justamente pela circunstância de possuir a audácia de derrubar as fronteiras sociais convencionadas pelos detentores dos Poderes hegemónicos. Neste sentido, ela reproduzia, à escala do social, aquilo que o estilo grotesco estabelecia na representação estética: uma revolução instauradora da unidade da Natureza (de uma Natureza “natural” e “social”). Pelo contrário, a “cultura académica”, a “cultura das elites”, era levada a compartimentar-se, a julgar-se outra, a imaginar-se “ilustrada”, a perfilar-se nos antípodas da vida comunitária. Acima de tudo, o que Bakhtine radicalmente desmistifica é a acusação de “vulgaridade” ou de “grosseria” que a estética social das elites imputa à estética social das camadas menos “ilustres”. Os jogos carnavalescos, os excessos alimentares, as paródias levadas a cabo nos períodos mais solenes do Natal e da Páscoa, dentro dos próprios templos, as festas como a do burro ou a dos tolos, a acentuação da dimensão do ventre, a furibunda interpelação ou o jogo de invectivas entre vizinhos, a denúncia da má justiça e da má religião, tudo isto surge, luminoso e refigurado, nas palavras espantosamente lúcidas de Bakhtine. Não sei se a obra já foi traduzida para o português. Caso não o tenha sido, é isto mais um triste sinal da menoridade dos editores portugueses.

25 de dezembro de 2006

SOBRE OS SISTEMAS POLÍTICOS

A fundamentação dos sistemas políticos, ou seja, a apresentação das razões que concorrem em abono de uma qualquer organização de sociedade e, paralelamente, em desabono de todas as demais, tem sido arquitectada a partir do mais matizado leque de considerações. Cruzam-se, em tais apologias, muitos e divergentes discursos justificativos, uns apelando à Ética, outros ao Pragmatismo, outros ainda aos critérios de eficácia produtiva, outros até (embora com menor frequência) a uma pretensa “selecção natural” das colectividades. Em nosso entender, tem-se apelado pouco para a consideração filosófica sobre a verdade ou sobre o modo de ser, essencial e íntimo, da chamada Natureza Humana. Somos nós, seres viventes, bípedes, mamíferos e racionais, portadores de uma ínsita configuração, somática e anímica, que nos permeabiliza à prática do altruísmo? É este o nosso estatuto essencial? Se assim for, tornar-se-ão viáveis os sistemas que apelam para a filantropia, para a solidariedade, para a confraternidade universal, para o sacrifício da imediata vantagem própria a favor da mediata edificação do Bem Comum. Somos nós, pelo contrário, na multiplicidade das nossas respostas e das nossas atitudes, a emanação inexorável de um egoísmo auto-defensivo? Sendo este o caso, justificar-se-ão todos os sistemas que considerem as sociedades organizadas como as arenas de luta da diversidade das reivindicações individualistas. No primeiro caso, o Estado terá de se preocupar com a erradicação da ditadura sociocrática, abrindo respiradouros para o florescimento das criatividades individuais. No segundo caso, o Estado deverá opor-se à abusiva hegemonia dos valores de personalidade sobre os valores do todo social, corrigindo o pendor das “tiranias narcísicas” pela imposição complementar de uma tábua de direitos gerais. Se a teorização política substituísse a lógica da manipulação das paixões pela reflexão sobre a verdade mais funda do fenómeno humano, estamos persuadidos que estaria aberto o caminho para uma mais serena demanda do Futuro.



22 de dezembro de 2006

JUNTO AO PRESÉPIO


O acto de nascer que Deus fizera
Para dar vida à morte dos humanos
Quis esse outro Deus (que o mesmo era)
Recriar como Verdade de mil anos.

No princípio sem fim da Eternidade
Um vagido soou subtil e puro,
Vencendo para sempre a soledade
E os terrores e medos do futuro.

Em Ti, Criança, na Tua mão direita,
No anseio de alcançar a Paz perfeita
Fez Antero repousar seu coração.

Estrela de Belém e dos pastores
Lava da alma humana as suas dores
Renascendo mil vezes desse chão.

21 de dezembro de 2006

BERGSON E O RISO

Foi Aristóteles que afirmou que o riso era especificamente humano. Não é completamente pacífico que assim seja. A realidade do “psiquismo animal” é um domínio tão pouco explorado que tudo o que neste domínio se possa dizer é aleatório. A bibliografia incidente sobre os mecanismos do acto de rir é inesgotável e reivindicada por alguns dos mais famosos pensadores da Humanidade. Bergson, Darwin, Freud, Victor Hugo, Baudelaire e Kierkegaard reflectiram e escreveram sobre o riso. Falemos hoje sobre o filósofo do intuicionismo. Foi Bergson quem interpretou o riso como a reacção decorrente da perturbação das exigência plástica de adaptação à vida. O acto de viver impõe a todos os seres vivos uma pertinência adaptativa de mecanismos de resposta que definem a normalidade dos comportamentos. Assim, cada um de nós ri-se quando percepciona a substituição, nas diversas situações concretas, das respostas adequadas e previsíveis por respostas mecânicas e rígidas. Charlot faz-nos rir, no célebre episódio dos Tempos Modernos, quando abandona a máquina industrial que o obrigou a repetir o gesto eterno de apertar parafusos, mantendo a gesticulação profissional, uniforme e ridícula, depois de a deixar. O ridículo, para Bergson, decorreria precisamente da mecanização das respostas do Eu perante as imposições de plasticidade adaptativa que o Mundo supõe e impõe. A doutrina de Bergson exprime esse incomparável “esprit de finesse” que a sua filosofia tão admiravelmente revela. E comprova-nos, à saciedade, a suspeita que nos assaltou quando começàmos a fazer leituras mais nutridas sobre este admirável tema : a suspeita de ser o riso uma coisa muito séria.

18 de dezembro de 2006

A REPÚBLICA

A tensão entre o público e o privado é transversal a todas as épocas e oferece matéria de cogitação a todas as culturas. É aqui que se situa o núcleo polémico desses conglomerados teóricos de vocação conclusa e conclusiva a que chamamos ideologias. É possível afirmar que, desde sempre, o imperativo republicano, centrado na ideia de Bem Comum, se confronta com a reivindicação individualista do Privilégio. A fundamentação justificativa dos estatutos de excepcionalidade ou de privilégio acompanha historicamente o primado hegemónico dos detentores do mando. Nas sociedades clássicas e patriarcais foram invocadas anterioridades genealógicas para a demonstração da pretensa superioridade dos aristói ; por sua vez, foi no interior do Antigo Regime que a dominância do sagrado fundou a superioridade quer no serviço de Deus, quer no providencial destino dos ungidos e escolhidos pelo Poder Transcendente ; a teoria do contrato social, subjecente à constitucionalização da cidadania contemporânea, transfere para os planos de imanência a questão da hegemonia, fazendo-a assentar num elenco de méritos pessoais. Cumpre notar, porém, que a noção referencial de Bem Colectivo ou de Bem Comum se encontra invariavelmente contida , como instância limitadora e correctiva, em todos estes quadros de legitimação. A genealogia aristocrática, o providencialismo teocrático ou teológico e a meritocracia contemporânea reconhecem por igual a região exterior do que é de todos, daquilo que a todos serve, daquilo por que todos devem viver ou até, em casos extremos, por que todos devem morrer. Existe, portanto, uma ideia de res publica que claramente ultrapassa a realidade histórica e concreta das Repúblicas institucionalizadas. Neste sentido, o republicanismo, mais do que um modo específico de organização social e institucional, é uma exortação perene, uma conclamação permanente, um desafio que se desfralda para lá das balizas de um tempo limitado e particular.

17 de dezembro de 2006

SABES ...






Sabes, eu desejava ter-te
Na contraluz do Tempo insaciável,
Na promessa translúcida
Do que poderia ter sido
Sem me adivinhar.

Sabes, pesa-me agora a letal mortalha
De todas as coisas presentes e fanadas,
O sudário do que perdeu novidade,
Este escapulário das penitências convenientes.

Sabes, o Homem é o burel das oportunidades perdidas
Jazentes nas estilhas de espelhos sem cristal.

Rumamos à velhice cabisbaixos
Deixando por fazer loucas façanhas
Deixando por cumprir Pátrias sonhadas
Deixando por compor roucas baladas
Que um dia em nós vibraram surdamente.

Sabes, todos quisemos partir um dia à descoberta
Do Santo Graal, do Velo de Oiro, do Preste João
E todos acabámos por ficar
Na berma do nosso condoído desencanto.

Sabes, por uma destas tardes sonolentas
Irei fazer-te (de surpresa) uma visita.
Quem me diz que não te possa encontrar
A cuidar das flores do teu canteiro?
Sabes, talvez que o Santo Graal,
O Velo de Ouro e o Preste João
Estejam por aí à nossa espera
No outro lado desse espelho antigo
Mistério e mito desse templo amigo
A demandar uma oração sincera.

15 de dezembro de 2006

A ESPADA DE GOMES FREIRE

Gomes Freire de Andrade foi um notável Oficial do Exército português. A sua vida decorreu em tempos extremamente difíceis e a sua morte viria a ser a culminação de uma tragédia exemplar. Nos começos do século XIX, a Europa era alvo das ambições hegemónicas de Napoleão Bonaparte, imperador de França. A imoderada voracidade bonapartista foi contrariada por potências defensoras de realezas absolutistas, como o eram a Áustria e a Prússia ; mas mereceu também o firme repúdio da Grã-Bretanha, potência que não ombreia com aquelas, devido à sua longa tradição de reconhecimento de direitos e garantias individuais. Para poder dobrar a Grã-Bretanha aos seus apetites, Napoleão tentou obter dos países europeus com portos marítimos o compromisso de não encetarem quaisquer negócios com a marinha mercante britânica. Este “bloqueio continental” também contemplou a governação portuguesa, a qual vivia uma conjuntura de grande angústia, devido à alienação mental da Rainha D. Maria I e à menoridade do Príncipe D. João, impedido, por esse motivo, de subir ao trono. Os expedientes dilatórios dos decisores portugueses originaram a cólera do Imperador francês, que ordenou a ocupação do nosso território. As tristemente célebres invasões francesas decorreram entre 1807 e 1810. Quando, por alturas da primeira invasão, o general Junot irrompeu em Lisboa, a família real, uma parte significativa da aristocracia portuguesa e a quase totalidade do alto clero tinham acabado de partir para o Brasil, em navios surtos no Tejo e apressadamente carregados de preciosos bens.
Um dos processos de que se servia Napoleão para reforçar o seu poder de combate consistia na requisição de militares competentes e na sua forçada inclusão nas fileiras do exército francês. Gomes Freire não escapou a tal sorte, tendo partilhado, forçadamente, a sorte da falida aventura napoleónica. As três invasões a que Portugal se viu sujeito tiveram efeitos deploráveis, desorganizando completamente as nossas actividades económicas. Os governantes portugueses, com a concordância da Corte, agora no Rio de Janeiro, decidiram instar a Grã-Bretanha a proporcionar ajuda militar a Portugal. Os contingentes britânicos que entre nós passaram a combater vieram acompanhados de chefes distintos. Estiveram neste caso as personalidades do Conde de Wellington e de William Carr Beresford. Vencidos os franceses, foi este último que ficou à frente da Administração portuguesa, em nome da Corte do Rio de Janeiro.
Gomes Freire de Andrade regressou à sua Pátria. Vinha cansado de pelejar. Declarou o propósito de fazer repousar a espada e de encarar o deslizamento para uma velhice bonançosa. Era, contudo, uma figura suspeita a Beresford. A principal causa desta suspeição radicava no facto de ser Gomes Freire o Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa. Na ordem estritamente política, a Maçonaria aprofundava os ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade que haviam sido a principal referência ideológica da Grande Revolução francesa de 1789. Tais valores não poderiam deixar de ser execrados pelo representante de um Poder absolutista, ancorado nos privilégios aristocráticos e nos dogmatismos de casta.
Certo dia, num botequim de Lisboa, um militar português, semi-etilizado, falou na irritação que lavrava entre alguns dos seus camaradas. Era necessário, dizia, expulsar Beresford e a sua gente, fazer regressar do Brasil os que aí permaneciam, indiferentes à sorte da Pátria, e encaminhar o país para um futuro mais venturoso. E acrescentou que havia já entendimentos com Gomes Freire, que se dispunha a chefiar este suposto pronunciamento. Mas o poder de Beresford – como todo o poder autoritário e arbitrário – baseava-se na vigilância e na delação. Alguém ouviu. E esse alguém não se coibiu de informar Beresford da hipotética conspiração em marcha.
Estaria Gomes Freire ao corrente do que se tramava? É possível que sim. Mas seria ele um activo e empenhado conspirador? É duvidoso. Parece que ele apenas se dispunha a seguir atentamente a marcha dos acontecimentos e a retirar a espada do armário, se e quando a Pátria disso necessitasse.
Beresford agiu no imediato. Mandou prender todos aqueles que se encontravam incursos na suspeita de conluio e não poupou Gomes Freire à mesma punição. O general português não se iludiu sobre a sorte que o esperava. Dizia-se que Beresford se dispunha a desencadear sobre os prisioneiros uma punição exemplar. Aguardava-os a forca. Gomes Freire sentiu-se injuriado e não quis admitir a hipótese de sofrer a mesma punição que, naquele tempo, era aplicada aos grandes e contumazes criminosos. Não temia a morte, mas desejava-a digna de si, ou seja, aspirava a um fim digno do seu prestigioso passado. Assim, só se imaginava fardado, ostentando a sua gloriosa espada, em frente de um pelotão de fuzilamento que descarregaria as armas à sua voz de comando e de disparo. Foi isso que reclamou de Beresford e da Corte do Brasil. Mas um Poder absoluto, quando acossado, só consegue agir com a crueza das bestas. Gomes Freire de Andrade acabaria enforcado no forte de S. Julião da Barra. E a sua espada? Essa adormeceu no tempo, e despertou um dia, em plena ditadura salazarista, na escrita de Luís de Sttau Monteiro. É que … Felizmente há luar. E se os meus leitores não conseguirem decifrar plenamente esta alusão, queiram dar-se ao trabalho (e ao prazer) de se fazerem leitores de Sttau Monteiro. A espada de Gomes Freire ainda cintila. É que os grandes Ideias, as grandes Figuras, as grandes Memórias nunca morrem! Haverá sempre luar no coração generoso dos que sabem amar Portugal. Vamos ler o Felizmente há luar?


13 de dezembro de 2006

UMA EUROPA DOENTE


Este espaço territorial fluido – porque nem sempre bem delimitado – a que damos o nome de Continente Europeu, foi exercitando o seu trabalho de sobrevivência, ao longo das idades, adicionando significados complementares ao seu acto estrito de persistir e de viver. Nas civilizações clássicas, grega e romana, a construção das cidades-estado ou do espaço imperial não susteve o labor da afirmação dos valores. E foi precisamente por isso, por essa pertinácia em acrescentar uma identidade de pensamento às coligações defensivas das anfictionias ou aos projectos ofensivos da romanização extra-territorial , foi basicamente por isso que hoje o património clássico é reconhecido como um fundamento identitário da tradição europeia. No caso grego, o aditamento a que nos referimos chamou-se Filosofia ; no caso romano chamou-se Direito. Este empenho de buscar um sentido interior e exterior às imposições biológicas e às servidões da nutrição, de superar o drama imediato do existir através de valorações superadoras, é ainda mais visível no espaço claustrado de uma Europa medieval, dobrada sobre a adoração da Divindade católica, para através dela proclamar a sua diferença essencial perante as hordas selváticas da barbárie. A primeira globalização renascentista, concretizada através da aventura dos descobrimentos marítimos, também não se exauriu totalmente no somatório da pura ganância mercantil. Houve em tudo isto uma singular percepção de aventura, de sonho, de transbordamento de limites e de espanto utopista. Podemos imaginar, como divisa simbólica, que Camões não permitiu que o naufrágio de um barco, talvez carregado de especiarias, tivesse metido a pique o livro d’Os Lusíadas, ou seja, a melhor e mais valiosa parte da carga. E se o alvorecer do industrialismo europeu fez nascer os gananciosos financistas, os cúpidos negreiros e os implacáveis capatazes fabris, não é menos verdadeiro que também fez medrar a mensagem da emancipação romântica, do protesto socialista e, mais adiante, da recriação do simbolismo e do surrealismo. Olhamos para trás e o que vemos é isto. E continua a ser isto que nos torna tão exíguo, tão desolado e tão pardacento o presente que habitamos.É como se a Europa tivesse perdido, passo a passo, todos os suprimentos da alma que um dia fora sua. É como se, cansada de si, a Europa tivesse ido pedir a um qualquer tio rico o pagamento ou a espórtula de um novo bilhete de identidade.É como se, num suicidário lance niilista, este Continente tivesse perdido todas as referências que outrora a tornaram justa, bela e verdadeiramente livre. A Europa entrou em dispepsia pragmática, em sonambulismo economicista, em amnésia teórica. A questão está toda em saber se lhe será diagnosticada a doença do sono, que pode ser curada, ou a doença de Alzheimer, que é inelutável.

12 de dezembro de 2006

PARTIR

Parto agora (como só sabe partir quem
Não chegou ao destino demandado).
Parto agora à procura de mim.
Ah, vida minha, bordado carmesim
Que mãos ignotas pontearam deste Fado!
Perdido como Ulisses na aresta das vagas,
Qual Moisés sem Sinai e sem tábuas da Lei
Assim vagante eu fui, vagando em mim
Como se inútil fosse quanto fiz e dei …
Há quem parta com outro norte, outra maré,
Há quem desfralde pendão duma outra Fé,
Há quem se banhe noutras quentes águas,
Sem o limo da Dor e o moliço das mágoas.
Partir, partir agora e já (como quem finge
Chegadas triunfais a praias de nativos,
Simulando vivências de tempos redivivos);
Partir sem o remorso do que ficou p’ra trás
(Gentes e portas, saudades e torrentes,
Odores de sal e mel em potes bem recentes,
Arvoredos imponentes de folha bem vivaz).
Partir sem o costumado receio de quem sai,
Sem o celebrado alvoroço de quem vem
E sem o sentimento de quem julga ter
Uma qualquer missão ou um qualquer Dever.
Parto, sonâmbulo e vago, porque sim,
Sem contar encontrar nas raízes de mim
Móbil e jeito, texto e pretexto.
Eu sou, sem mais razões, tal qual assim.

11 de dezembro de 2006

A PROPÓSITO DA MORTE DE UM DITADOR

Augusto Pinochet despediu-se deste mundo e não deixou saudades. Mais do que execrar o ditador, haverá que apontar o húmus e os nutrientes de que se alimentam os tiranos, onde quer que medrem, e quaisquer que possam ser as justificações que lhes servem de pretexto.
Há duas maneiras de encarar o nosso semelhante. Uma delas é a mais primitiva e boçal: o nosso semelhante é o nosso concorrente, o nosso inimigo, o terceiro que nos disputa o espaço vital, nos rouba os nutrientes e nos arrebata as oportunidades de auto-afirmação. Como é evidente, a ser esta a lógica, a espécie humana perde toda a consistência de harmonização social. O acto de viver desprende-se dos vínculos da convivência e do calor da simpatia que lhe confere humanidade. O mando deixa de ser um comando, um mando com, uma aceitação mútua de regras de orientação. Passa a ser, tão só, um exercício desvairado de domínio, através do qual o ditador perde todo o sentido da sua proporção e da sua relatividade. Será então tomado por uma espécie de fúria megalómana, semelhante à que assolou Pinochet quando saíram dos seus lábios estas deploráveis palavras: “No Chile, nem uma folha oscila sem o meu conhecimento”. Este desvario pode ocorrer em qualquer momento, neste ou naquele país, como subproduto de quaisquer regimes, por brilhantes que sejam as camadas de verniz com que se adorna a chamada Civilização. Mas há um outro modo de interpretar o acto social de existência. Consiste este em interiorizar a verdade da nossa condição. Somos fracos, fugazes e sujeitos a todas as usuras. A usura do Tempo, sendo a mais implacável, porque contínua e imparável, não é a única com que nos medimos. Usurárias são também as doenças, usurárias são as dores e os castigos com que a Natureza inopinadamente nos pune. Inermes perante todos os Deuses, impotentes perante o próprio fio da vida, é sobre a ara da mútua relatividade que deveremos construir o edifício da vida colectiva. É sempre o outro, o terceiro, o semelhante, que complementa e realiza tudo aquilo em que somos insuficientes. Por isso, o outro é a parte necessária da nossa individual realização. Pinochet vivia, como adiado cadáver, ao arrepio de tudo isto. E no entanto também ele apresentava estigmas tão notórios de precaridade como os das folhas amarelecidas que se desprendiam das árvores sem lhe pedirem autorização. O ditador desconheceu ou nunca quis saber que qualquer acto de sobrevivência só subsiste através da mutualidade dos serviços e da conjunção dos afectos. Pinochet, que julgou poder sentenciar em vida, como um Deus, sobre a sorte dos chilenos, morreu pior do que qualquer outro seu concidadão, pois se finou como um patético homenzinho, criminalizado por assassinatos e latrocínios. E as árvores chilenas continuarão a oscilar, como sempre, ao sopro de todas as aragens, sem sequer se darem conta de que houve um dia um fétido Pinochet que as quis sujeitar.

10 de dezembro de 2006

CONTO DE NATAL (COM ASAS...)

Era um homem vulgaríssimo e bisonho. Tinha os direitos e deveres de todo o mundo, e era mais atento a cumprir os segundos do que a reclamar os primeiros. Via-se todos os dias ao espelho, quando fazia a barba. Tinha lido a Metamorfose, de Kafka, há poucos dias; não entendera bem aquelas letras mas pensara, com a filosofia que lhe era habitual, que a deficiência devia ser sua, porque ouvira citar esse escritor ao seu chefe de repartição, pessoa de letras e de considerável reputação. Ora aconteceu que por uma pouco dormida madrugada, em começos de Maio, ao rapar a barba com toda a consciência em frente do eterno espelho, aquele homem, estremunhado e bisonho, reparou que lhe estavam a nascer, junto às omoplatas, umas asas membranosas e transparentes. Ficou preocupado. Aquilo podia valer-lhe uma reprimenda do encarregado de secção e um dito mordaz do chefe de repartição. Era até capaz de se tratar de um caso especial de doença infecto-contagiosa e, nesse caso, poderia ser obrigado a fazer quarentena, com o desconto efectivo na folha dos vencimentos. Para disfarçar o volume daquelas asas inesperadas, o nosso homem envergou um sobretudo velho e passou a alegar, para os amigos e conhecidos que lhe estranhavam a bizarria do abafo em dias de sol, que era muito dado a catarros e laringites. Continuando a pensar, com inusitada gravidade e ponderação, no momentoso assunto, o homem bisonho concluiu que deveria tentar esquecer o estranho fenómeno. De resto, poderia até acon­tecer que, com o tempo, as asas membranosas se desprendessem, caindo no chão como frutos apodrecidos.
Entrou-se então no mês de Junho. Todos os dias, em tronco nú, diante do espelho, o nosso herói procurava saber, por comparações continuadas, do progresso ou retrocesso dos seus apêndices. Acabou por concluir, muito temeroso, que as suas asas ficavam dia a dia mais fortes e que na região respectiva se ia formando uma cartilagem flexível, tornada móvel com o desenvolvimento. Os colegas de trabalho cada vez mais lhe estranhavam o uso do sobretudo e o pouco discreto isolamento a que se ia remetendo. Aos poucos, deram-se a reparar no volume das espáduas. Diziam uns que o homem tinha dois tumores homólogos, em adiantado estado de evolução. Outros opinavam que se deveria tratar de um valioso espólio de família, talvez uma herança constituída por objectos de ouro, de que o feliz beneficiado se não queria separar. Alguns asseveravam, até, que aquele estranho companheiro colara às costas as missivas de um amor clan­destino, para que a empregada de limpeza as não lesse, quando, na sua ausência, lhe tratava da arrumação do quarto. No meio de tantas conjecturas, algumas apostas se fizeram. Os mais atrevidotes roçavam-lhe as costas, a pretexto da exiguidade do espaço, ou passavam-lhe as mãos pelos ombros, em jeito de forçada confraternização. O nosso homem dava conta de todos estes manejos, mas fazia-se desentendido. No seu íntimo, acreditava que tudo aquilo se tornaria trivial e que, passado o momento da curiosidade generalizada, se iria restabelecer a normalidade. Um dia foi chamado ao gabinete do chefe de repartição. Este disse-lhe: --Caro amigo, (o chefe de repartição iniciava assim todas as conversas que pressentia delicadas), caríssimo amigo,(o chefe de repartição reservava este cumprimento para as reprimendas), o senhor anda a perturbar-me o serviço. Este estado de coisas não pode continuar. Os seus colegas murmuram pelos cantos, perdem o tempo todo contando anedotas a seu respeito e não dão despacho ao expediente. Eu não conheço nem quero conhecer os seus problemas (nesta altura o chefe de repartição sentia-se roído por uma curiosidade quase mórbida), embora o estime sinceramente (era uma óbvia mentira). Mas entendo que, estando doente, deverá tratar-se; estando apaixonado, deverá casar-se; estando receoso de ladrões, deverá guardar os seus valores num banco. Assim falou o chefe de repartição. Depois pigarreou, procurando uma posição mais confortável na cadeira almofadada. Decorreram alguns segundos, densos de tensão. O homem bisonho sentiu-se perdido. Feitas as contas, não era respeitoso nem respeitável dizer ao Senhor Doutor, personagem a todos os títulos estimável e de trato refinado, que lhe andavam a nascer umas asas. Manteve-se calado, olhos no chão. O Doutor respirou fundo, como se a sua alma suportasse todo o tédio do mundo: --Bem; vejo que não quer confiar em mim. Faz muito mal, mas o problema é seu. Meta uma licença. E despediu-o, com um gesto seco.

Nessa noite, o herói da nossa história mal dormiu. Contemplou o céu por largo tempo na janela, julgando ser possível abismar-se nos mil luzeiros que piscavam na lonjura. Aconteceu então uma singular maravilha. Os astros mais distantes, coruscando estilhas de luz, baixaram rapidamente sobre a cabeça do homem bisonho e transformaram-se em pássaros, algaraviando doidices. Havia-os de todas as cores, formas e exotismos, desde os graciosos bicos de lacre ao tucanos recurvos, desde os flamingos longilíneos às triviais cotovias. E era como se na gralhada anodina e nos adejos sem regra toda a passarada lhe estivesse a gritar: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre! "Exortação descomedida, esta, para um funcionário público zeloso e cauto, sabedor de que cada reacção da sua lavra careceria de papel timbrado da repartição e do correspondente despacho decisório de algum senhor doutor da mais alta hierarquia funcional. Aquele homem vulgar conhecia bem os sopapos da vida e as realidades burocráticas das repartições. Pois se nem os chefes de divisão se atreviam a voar, como poderia ele, um amanuense de terceira classe, sem protectores, sem recomendações da hierarquia, sem acesso ao selo branco, soltar-se da honrada solidez do soalho do quarto e acometer o espaço em alegria ébria?
E no entanto... sentia nas asas um frémito de alvoroço, uma imposição de partida, uma exigência vibrátil de céu, como se ele próprio não fora já aquela bisonha e vulgar criatura, ciente apenas de carimbos, de taxas de água e de licenças de cães. Fechou precipitadamente a janela e recuou, assustado, para o fundo do seu quarto. Nem assim, porém, se desvaneceu a imposição daquele veredicto do destino, soando agora nos seus ouvidos em intensidade abafada: "Anda, vem connosco, vem connosco para sempre!" Deu consigo a fitar, descoroçoado, o velho sobretudo ; e logo se lembrou da embófia do chefe da repartição, da manha perversa dos que por ele se roçavam na demanda de um segredo privado e dos mil gestos iguais e previsíveis do trabalho , gastos entre a máquina das fotocópias e a banca dos assentos.
Quando o período de licença se esgotou, os colegas de ofício remordiam a impaciência. O chefe consentira que o regresso do bisonho e vulgar amanuense fosse pretexto para uma assuada, para uma paródia falsamente inocente, no fim da qual lhe seria despido, se necessário à força, o irritante sobretudo e desvelado aos circunstantes o insuportável enigma. Ficaria a conhecer-se, então, talvez a doença, talvez a fortuna, talvez a afeição.
Como não regressasse no dia aprazado e nos seguintes, o chefe mandou que dois ou três funcionários, dos mais ladinos, se deslocassem à casa de hóspedes onde se aboletava o faltoso. A proprietária deu-lhes parte de um caso singular, já transmitido à polícia: o hóspede desaparecera sem deixar rasto e a única estranha nota que houvera sido encontrada no quarto daquela vulgaríssima criatura fora uma mão cheia de penas muito brancas, caídas junto ao rodapé da janela entreaberta.
O caso foi comentado em registos divergentes nos conciliábulos do serviço. Diziam uns que o homem bisonho e vulgar sucumbira à doença, outros que realizara o amor e os demais que cedera à fortuna.

E todos acertavam, enganando-se. E todos se enganavam, acertando.

7 de dezembro de 2006

MAIS UM BLOG

Mais um Blog? Sem dúvida. Mas é o meu Blog, ou seja, aquele que transporta a minha impressão digital. Que vai ele ser? Nada sei sobre isto, tendo apenas a certeza que ele comportará a marca da minha individualidade. Não há duas iguais. Larguemos velas e façamo-nos ao mar. Até breve.