30 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XIII

A Academia Real das Ciências forneceu as primeiras instalações ao Curso Superior de Letras

XIII - IRONIA DUM SONHO RÉGIO

Os portugueses foram surpreendidos, em 30 de Outubro de 1858, por um singular decreto, directamente emanado da Casa Real. Por ele, o rei D. Pedro V afectava trinta contos de réis da sua dotação constitucional para que, com os juros daí resultantes, se pudessem fazer funcionar em Lisboa cursos públicos de História, Literatura Antiga e Literatura Moderna, contemplando esta última, sobretudo, a criatividade literária portuguesa. Desejava o monarca lançar os alicerces de uma Faculdade de Letras, por entender (e bem) que os estudos da velha Universidade de Coimbra se encontravam mais voltados para a Teologia do que para uma cultura humanística vanguardista, próxima dos anseios da época. Amigo de Alexandre Herculano, que lhe incutira o gosto pelos conhecimentos históricos, educado por António José Viale, que o iniciara nas literaturas greco-latinas, espírito curioso e em contacto com os mais avançados países europeus, D. Pedro V constituiu um caso muito peculiar e positivo na galeria da dinastia de Bragança.

Ao fundar o Curso Superior de Letras, o jovem rei aspirava aos benefícios de um saber avançado, capaz de fomentar ou refundar um requinte filosófico, moral e estético que os seus avoengos não tinham proporcionado ao país. Os primeiros convites para o professorado obedeceram às preferências do rei-instituidor, o que se compreende sem esforço. Alexandre Herculano foi instado para a História, mas recusou polidamente. As literaturas clássicas ficaram entregues a António José Viale, que seria, além disso, o primeiro director do Curso. António Feliciano de Castilho foi sondado para as literaturas modernas e considerou-se incompetente para a tarefa, sugerindo o nome de Latino Coelho. Mas este navegava pelas águas do republicanismo e o preferido acabou por ser António Pedro Lopes de Mendonça, autor de um livro premonitório, intitulado Memórias de um Doido. A verdade é que a loucura, de facto, o acometeu, impedindo-o de assumir tais funções.

A curiosidade da evolução pedagógica e institucional do Curso Superior de Letras está em que essa nota de avanço cultural e de vanguarda cognitiva, desejada por D. Pedro V, lhe será conferida por personalidades em estado mental de ruptura com as instituições monárquicas. A regência provisória da cadeira de Literaturas Modernas foi parar às mãos de Augusto Soromenho, que não se identificava com o regime então vigente. Foi ele que incitou Teófilo Braga a concorrer à vaga da disciplina por si deixada, ao transferir-se para a docência da História Universal e Pátria, que ficara deserta devido ao falecimento de Rebelo da Silva. O concurso de 1872, ao qual se apresentaram dois candidatos claramente apoiados pela Monarquia (Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro) e um notoriamente afecto ao republicanismo (Teófilo Braga), saldou-se por um êxito inesperado mas justíssimo do candidato dissidente. A Teófilo e Soromenho veio juntar-se, em 1878, Adolfo Coelho, um dos antigos oradores das Conferências Democráticas do Casino, onde criticara acerbamente o sistema ultrapassado, monástico e acrítico do ensino público em vigor. Logo no ano seguinte, em exposição fundamentada dirigida ao Conselho do Curso e às tutelas oficiais, Teófilo Braga, agora apoiado por Vasconcelos Abreu, apresentou a sua proposta de converter o Curso Superior de Letras numa verdadeira Faculdade Sociológica. Era um ponto de vista muito aliciante, atendendo ao facto da Sociologia viver uma fase de maré alta no seio de muitas instituições europeias de ensino. Mas esta disciplina fora criada pelo génio de Augusto Comte e pelo talento sistematizador de Emílio Littré. O positivismo era encarado, entre nós, como uma ameaça à hegemonia monárquica. Foi por isso que tal proposta não vingou, mesmo depois de reiterada e mais solidamente fundamentada em 1899.

A dobragem do século XIX para o século XX foi feita dramaticamente entre nós. Nunca talvez a palavra “crise” tenha sido usada com mais propriedade: crise financeira, crise cultural, crise institucional, crise de desemprego e fome, crise colonial, crise de existência e de consciência, crise de valores e de valias. D. Pedro V, que o próprio Teófilo saudou como um “rei de boa vontade”, era só um espectro, uma miragem de além-túmulo. Morrera cedo e mal, ceifado por uma moléstia pandémica. Mas se a tensão das vontades e a persistência dos ideais não são dissolvidas pelas Parcas, o generoso monarca, que dera mostras, em vida, de algum sentido de humor, talvez tivesse sorrido quando a República, acabada de fundar, decretou, em 9 de Maio de 1911, a criação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Herdeira directa do Curso Superior de Letras, ela realizava, finalmente, o sonho do defunto monarca.  

25 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XII


XII - UM OPERÁRIO DAS LETRAS : TEÓFILO BRAGA

Soube lutar, amar e odiar como muito poucos. A luta iniciou-a na sua ilha natal de S. Miguel e na sua cidade açoriana de Ponta Delgada, contra as agrestes condições de uma orfandade materna ocorrida na infância; contra o desdém de uma antipática madrasta, que lhe vaticinava uma vida sem futuro; contra a ausência de conforto, tanto afectivo como económico, resultante do segundo casamento do pai e das parcimónias a que forçosamente se sujeitam as famílias numerosas; contra a descrença de um professor do liceu que disse um dia, em plena aula, que, no caso desse seu aluno, “não via moita donde pudesse sair um doutor” (e ouviu como réplica esta contundência – “isso é porque o Senhor Professor não tem faro”…). Mas o pequeno Joaquim Teófilo Braga começou a ser gente na sua ilha, onde versejou, fundou jornais e colaborou no Açoriano Oriental. Concluído o liceu, chegou-se junto do pai e disse-lhe que iria embarcar para as Américas, talvez com o fito de se dedicar ao comércio. O pai sugeriu-lhe a Universidade de Coimbra, acrescentando-lhe , porém, que a mesada iria ser muito curta.

Em Coimbra, o enfezado Teófilo estudou sem descanso e viveu estoicamente: deu explicações, compôs artigos jornalísticos remunerados e redigiu teses a outros estudantes mais abonados e adiantados. Publicou livros poéticos que deram brado, como a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras. A Faculdade de Direito prometeu-lhe um lugar no professorado superior, após o seu doutoramento, e faltou ao compromisso de uma forma deplorável. Ainda em Coimbra, travou, ombro a ombro com Antero de Quental, a mais sonora e fértil polémica cultural e literária que alguma vez entre nós se suscitou. Ambos venceram, nessa memorável "Questão Coimbrã", o “arcadismo póstumo” de Feliciano de Castilho, abrindo as portas a um romantismo social avançado, a caminho do realismo estético. Odiou a Universidade relapsa e os lentes “crassos e crúzios” (Eça dixit). Disputou depois, em Lisboa, um concurso público para a docência do Curso Superior de Letras e arrebatou o cargo de forma quase apoteótica.

Já convertido ao positivismo filosófico de Augusto Comte e Emílio Littré, passou a amar a República e a detestar o conservadorismo monárquico. E também a doar o seu convívio familiar à mulher que namorara ainda em Coimbra e que lhe daria dois filhos, aos quais brindava com brinquedos talhados a canivete, saídos amoravelmente da sua própria mão. Era agora uma figura indiscutível das hostes republicanas. Alinhava à esquerda, identificando-se com a corrente federalista, da qual aceitava a descentralização e o mandato imperativo, o jacobinismo e a intervenção estatal tributária, mas que não secundava inteiramente naquilo que ele apodava de “excessos socialistas”. Presidiu a dezenas de comícios republicanos, proferiu centenas de intervenções públicas, umas científicas ou literárias, outras de teor mais democrático, colocando ardentemente todo o seu saber ao serviço de uma imagem de Pátria sonhada, mais altiva, toucada com o barrete frígio. Era agreste e ácido na réplica e na disputa. E foi, como tal, incensado por uns e odiado entranhadamente por outros.

Metido em casa ou refugiado em bibliotecas, Lisboa habituou-se a vê-lo passar, sempre em passo rápido, sobraçando maços de papéis e transportando o inevitável guarda-chuva, a sua caricaturada “malva”, a caminho do vulgar transporte público. Trabalhou incansavelmente, tanto antes como depois de ocorrer o seu pungente drama pessoal, quando perdeu os dois filhos, em 1886 e 1887. Fazia render o tempo entrando pela noite dentro. Hábil e avarento, arranjou um mecanismo que lhe permitia aproveitar o calor do candeeiro de iluminação para aquecer o chá com que restaurava as suas forças, nessas extensas sessões nocturnas de leitura e de escrita. Ramalho Ortigão traçou-lhe um dia o retrato biográfico, declarando lapidarmente: “Não há prelos que acompanhem a velocidade vertiginosa da sua pena”.

Admirável exemplo de incondicional dedicação ao trabalho, Teófilo Braga foi também um pioneiro em variados domínios do saber. Não existia entre nós uma história literária portuguesa baseada em métodos sólidos e ele criou-a (História da Literatura Portuguesa e Recapitulação); eram rudimentares os estudos sobre etnologia e etnografia lusitana e ele aprofundou-os (O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, A Pátria Portuguesa – O Território e a Raça , Poesia Popular Portuguesa); a reflexão sociológica primava pela nulidade em Portugal e ele iniciou-a (Sistema de Sociologia).

Depois do 5 de Outubro de 1910 ocupou a presidência do governo provisório e chegou mesmo a ser Presidente da República em interinidade, quando Manuel de Arriaga renunciou ao cargo, em Maio de 1915.

Operário das letras, denodado militante de todas as causas democráticas, infatigável investigador, temível polemista, Teófilo Braga viria a falecer em 28 de Janeiro de 1924. Não foi certamente perfeito em tudo, tanto no seu perfil pessoal como na sua singularidade intelectual. Mas só a má fé poderá negar que tenha sido um trabalhador admirável e um marco decisivo na emergência do Portugal republicano.

 

20 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XI

XI - O Republicanismo e o Socialismo : Teófilo Braga e Antero de Quental

Que lugar ocupava a teoria socialista na época da propaganda republicana? Esta questão não pode ser esclarecida sem que nos lembremos que os oradores das Conferências Democráticas do Casino lisbonense, em 1871, estabeleciam com naturalidade a equivalência entre o republicanismo e o socialismo. A República não viria a ser mais do que a fórmula constitucional de um regime sob o qual a equidade económica e o império da justiça social se afirmariam com toda a evidência. Os mais aguerridos clubes republicanos dos primórdios do movimento reclamavam uma orientação federalista similar à dos comunards  parisienses  e à dos republicanos espanhóis da revolução de 1868. Estes homens reviam-se na austera denúncia da exploração do trabalho com que Proudhon esmaltava os seus evangelhos sociais ; admiravam a indomável combatividade de Auguste Blanqui, que passara atrás das grades a maior parcela da sua vida; citavam frases ou passagens de obras de Fourier e Louis Blanc, de Cabet e Saint-Simon; aventuravam-se até a apontar como luzeiros Karl Marx e Engels, que raramente teriam sido directamente lidos por algum deles.

 Mas esta aparente confraternidade já revelava algumas fissuras. Quando Antero de Quental escreveu a Teófilo Braga, tentando convencê-lo a juntar-se aos homens do Casino, a argumentação utilizada apelava para lógicas de unidade que não correspondiam ao íntimo pensamento de ambos. Teófilo, ainda em Coimbra, seguiu atentamente a apresentação anteriana das conferências através do relato, crítico e reticente, de republicanos que foram ao Casino com profundas prevenções e que logo se apressaram a mandar-lhe missivas detalhadas. Um deles, Carrilho Videira, é peremptório: Antero teria sido recebido pelo público com grande frigidez; exprimira-se aos solavancos e sem brilho; na plateia, quase não se vislumbravam operários; e o destinatário, Teófilo, só fizera bem por ter decidido não seguir para Lisboa.

O futuro iria dizer que a leitura da fenomenologia social e da filosofia da história do republicano Teófilo era bem distinta da que defendia o seu conterrâneo Antero. Se o primeiro empolava a resposta política, o segundo opunha-lhe o primado do económico. Para Antero de Quental o proletário não devia pactuar com artifícios eleitoralistas, uma vez que as eleições se identificavam com o canto de sereias da burguesia ávida e manobradora. Mas a isto replicou Teófilo que sem uma porfiada aprendizagem democrática, sem o envolvimento do trabalhador no jogo normal das opiniões presentes num Estado plural, jamais se conseguiriam superar as carapaças do atavismo e de cerrada ignorância das massas. Por outro lado, Antero opinava que o proletariado era o parto medonho da indústria mecânica contemporânea, tratando-se, pois, de uma realidade sociológica inteiramente nova, em rebeldia visceral contra o seio satânico em que tinha sido gerada. Era inevitável, desta maneira, que se travasse o mortífero embate entre a burguesia exploradora e o proletário explorado. Mas Teófilo Braga replicava que a burguesia nascera a partir da emancipação das servidões senhoriais da gleba medieval. O burguês era o filho do camponês subjugado ao senhor feudal que, aproveitando conjunturas históricas e lutas de hegemonia entre monarcas e terratenentes, se promovera pelo estudo, investira poupanças magras, negociara com acerto e finalmente se emancipara de submissões antigas. Assim, o burguês era o irmão bem sucedido do antigo servo medieval. Apresentar a oposição entre ambos como inelutável era fazer a apologia da guerra fratricida, do dissídio dentro de um mesmo ramo familiar.

Entende-se agora que o destino político de Teófilo Braga viesse a ser bem distinto do que coube a Antero de Quental, de quem se iria tornar adversário irredutível e detractor implacável. Aproveitando a inflexão radicalizadora dos anos 70, Antero irá receber em Portugal os delegados espanhóis da Internacional Operária, avançando para a fundação do Partido Socialista, em 1875. Teófilo, por seu turno, irá prosseguir uma infatigável doutrinação republicana, passando a constituir a referência mais segura e mais prestigiada dos homens que ergueram o Partido Republicano, entre 1876 e 1883.

Optar por um ou outro é hoje uma tolice. Admirar os dois é hoje um dever.

 

15 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO X

X - O Zé Povinho da albarda ...

Rafael Bordalo Pinheiro deu o nome de Zé Povinho à figura simbólica através da qual pretendeu captar a verdade íntima dos mais numerosos, pobres e anónimos portugueses daquele seu tempo. Nascido no Verão de 1875, foi desenhado no número 5 do jornal A Lanterna Mágica. O significado do diminutivo é duplo: por um lado, exprime-se, desta maneira, o carinho com que o tratou o seu criador; por outro, dada a sua consentida subalternidade, o quase nulo papel a que se conformou como agente de uma História que sempre lhe escapou, este Zé não poderia reivindicar o entono solene de Povo ou, ainda menos, o aumentativo de “Povão”. É um Povinho que ali está, rafado no corpo e comido na alma pela rapacidade dos políticos tarimbeiros e dos argentários ladinos.

O destino do Zé Povinho foi adivinhado por Bordalo Pinheiro desde o primeiro desenho em que o esboçou. Numas festas de Santo António, patrono de Lisboa, ante um presépio popular no qual um outro António (Maria de Fontes Pereira de Melo), então chefe de governo, dava colo ao rei D. Luís, no lugar de um Menino Jesus ausente, era visível o ministro da Fazenda da altura, vestido como o rapazio dos bairros lisboetas, pedindo ao sacrificado Zé umas moedas “para a cera” do santinho. O Zé, de sapatos cambados e calças rotas, abria a boca, em pasmo paspalhão, coçava a cabeça, puxando para trás o chapéu braguês da sua popular condição … e dava! Voltará a dar sempre, coagido ou manipulado. Dará para as prebendas dos ministros, para as dissipações dos monarcas, para as festas oficiais – cujo significado não entende –, para as negociatas de potentados como Burnay ou como o Marquês da Foz, para as luminárias dos aniversários régios, para os vestidos parisienses e para as cartolas lustrosas da aristocracia, para o equipamento de forças policiais que o espancam, para a modernização de cidades onde raramente se desloca, para os vencimentos de parlamentares que o desprezam e de uma Administração que o maltrata. E, como Rafael Bordalo Pinheiro bem adverte, enquanto o mundo se transforma em mil novas mutações, o Zé, bem povinho e ignaro, “fica sempre na mesma”. Ficará sempre à porta de todos as cenografias por onde se dispersam os ócios burgueses: o Zé não vai aos toiros, não entra na festa do burguês nobilitado, não frequenta a ópera do S. Carlos e nem sequer a “geral” do Teatro da Rua dos Condes, não leva os filhos ao circo do Prince, não tem lugar em quermesses de caridade (onde é o hipotético e mirífico “beneficiado” !!), não espairece no Passeio Público, não namora “de gargarejo”, não usa bengala ou lorgnon, não lê jornais por ser analfabeto. Mas paga, paga incessantemente, paga num jeito de fatalidade interiorizada, paga tudo.

O Zé é manso como um boi ou como um jumento subjugado. Por isso, o seu adereço mais familiar é uma albarda, ou umas dúzias de albardas sobrepostas. Para lhe sublinhar esta psicologia de submissão pacóvia, Rafael Bordalo Pinheiro começou por lhe inventar uma companheira, de xaile e lenço triangular, atado sob o queixo. A essa mulher foi atribuído um nome esclarecedor: Maria da Paciência. Porém, o Zé Povinho não se confunde com um imbecil. Ele pressente vagamente que a grande máquina social o tem como peça propulsora e imprescindível. De tantas vezes que foi espezinhado, em vilipêndio tão ufano quão injusto, retirou ele o saber empírico do seu préstimo, da sua indesmentível utilidade, enquanto verdadeiro alicerce da Pátria. O seu riso é alvar, sem tino, quase sem intencionalidade – e, no entanto, é muitas vezes capaz de arregalar um olho de alimária à beira dum coice vingador. E, sobretudo na cerâmica de Bordalo, o famoso “manguito” dar-se-á como sinónimo de uma clarividência sem teoria, sim, mas apesar de tudo sábia, no desvendamento, mais intuído do que demonstrado, de cumplicidades pulhas, de poderes apodrecidos e de bastidores corruptos.

Rafael Bordalo Pinheiro desesperou-se frequentemente com a sua criatura. E outras tantas vezes desvaneceu-se com ela, reprimindo uma furtiva, uma romântica lágrima mais rebelde. Chamou-lhe bronco, palerma, “pateta das luminárias”, animal de carga. Interpelou-o como se fora o pai preocupado de um filho meio inimputável. Como se alimentasse a esperança, sempre renascida, de ver o seu Zé Povinho promovido, finalmente, à dignidade de Povo. De Povo Português, esse filho que o seu republicano coração estremecia.

 

10 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO IX

IX - UM REPUBLICANO CHAMADO RAFAEL BORDALO PINHEIRO

Representar numa figura humana típica, simbolicamente eloquente, a verdade cultural e temperamental de um Povo foi um desafio não ignorado por muitos países do globo. Assim, a Grã-Bretanha criou um John Bull entroncado e façanhudo; os Estados Unidos da América reviram-se num Tio Sam de face oblonga, coberto por uma cartola adornada de estrelas, por vezes de dedo esticado, sempre pronto a recordar aos concidadãos o dever patriótico; a França republicana encontrou na face feminina e juvenil da sua Marianne, coroada de louros e levemente sorridente, o emblema acabado da sua identidade colectiva.

E Portugal? Desde os tempos da aventura náutica das descobertas se declarava, nos textos emblemáticos de Camões, Fernão Mendes Pinto, Sá de Miranda ou Damião de Góis, que o mediano português da saga embarcadiça revelava um fundo de obediência misturado com uma ponta de rebelião, uma capacidade ímpar de se adaptar a “desvairadas gentes” e a regiões de fim-do-mundo, mas nos moldes de uma infinita saudade, chorada em plangências de fado ou em lágrimas de sal. Contudo, jamais esta inquietação topa-a-tudo, esta arte de partir querendo ficar ou de permanecer desejando zarpar, jamais este traço anímico da nossa contradição lusíada, encontrara o artista-demiurgo que pudesse e soubesse cruzar linhas, harmonizar planos, propor uma tipologia fisionómica, adivinhar vícios e exaltar virtudes, misturar as sombras da hipótese com a luz da Verdade e escrever por baixo: “Nós, enquanto Povo, somos assim. Nem mais, nem menos!”. Mas um dia, à esquina da nossa multissecular forma de ser, assomou um simples desenhador capaz de oferecer corpo e rosto ao Portugal popular de então, conquistando a imortalidade através desse mesmo impulso premonitório. Chamava-se Rafael Bordalo Pinheiro. À sua magna criação deu o nome de Zé Povinho.

Filho de um funcionário da Câmara dos Pares, figura paterna pouco burocrata e dada preferencialmente às artes, irmão mais velho de Columbano – um dos nossos maiores pintores – Rafael Bordalo Pinheiro desejou, nos primórdios da sua juventude, uma carreira teatral que lhe fugiu. Que lhe fugiu? É uma forma imprópria de dizer. Mais rigoroso é declarar que se tratou de uma vocação que sofreu um câmbio de metamorfose transfiguradora. O palco passou a ser o papel de desenho, o desempenho transferiu-se para o seu lápis, os actores, para além dele próprio, desdobraram-se na imensa galeria das figuras relevantes do seu tempo e, finalmente, as suas peças identificaram-se com os jornais que fundou e ilustrou. O Zé Povinho surgiu nos primórdios da sua carreira, adornando A Lanterna Mágica, no verão de 1875.

Chamado ao Brasil, onde fez uma multidão de amigos entre os cultores da boémia artística e um pequeno reduto de rancores entre os magnatas da Finança e da Política, Rafael Bordalo Pinheiro brindou as Terras de Vera Cruz com as folhas O Mosquito, Psit!!!  e O Besouro. O Zé Povinho foi com ele, aparecendo como comparsa menor em crónicas figuradas da realidade social do povo irmão. Por esta altura, já Rafael Bordalo Pinheiro era republicano; e também maçónico, pois fora iniciado, antes do périplo brasileiro, na loja “Restauração de Portugal”. Fiel a si mesmo, escolheu como mentor iniciático o pintor espanhol Goya, essa espantosa figura de artista, na qual se combinam as notações grotescas e as visões de pesadelo, o escarninho dos rostos e as denúncias da crueldade.

Regressado a Portugal, a vida do “irmão Goya” identificou-se totalmente com a sequência dos seus jornais. Foram eles O António Maria (primeira série, entre 1879 e 1885), Pontos nos ii (entre 1885 e 1891), outra vez O António Maria (segunda série, entre 1891 e 1893) e finalmente A Paródia (entre 1900 e 1905/06). Neles traçou, com o vigor do riso, o perfume da ironia, a bravata da sátira e a pesada denúncia do burlesco, a crónica mais exaustiva que alguma vez surgiu em Portugal, no decurso de cerca de um quarto de século de história pátria. Chegam à boca da cena monarcas (D. Luís, D. Carlos, Dona Maria Pia) e ministros (Fontes Pereira de Melo, Anselmo Braancamp, Rodrigues Sampaio), financeiros (Burnay), escritores (Ramalho, Eça, Junqueiro, Antero) e figuras típicas (o Justino bailarino, o Santos “Pitorra”). E tantos, tantos mais.

Rafael Bordalo Pinheiro finou-se em 23 de Janeiro de 1905. Mas o pano de boca não correu. A comédia continua. E o Zé Povinho voltará sempre, nas asas dos que o amam, quase tanto e tão bem como Bordalo o amou.

 

5 de março de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO VIII

(Na imagem: Manuel Fernandes Tomás, chefe do "Sinédrio" vintista)

VIII – O VINTISMO, MATRIZ DO NOSSO REPUBLICANISMO


Quais eram as diferenças que os nossos primeiros republicanos reivindicavam em relação ao sistema da monarquia constitucional que regia Portugal desde 1836?

Reportando-se ao sistema constitucional vigente, os republicanos portugueses enfatizavam o abismo que separava as cláusulas da Carta Constitucional de 1826, adoptada pela monarquia em funções, daquelas que tinham sido consagradas pela Constituição de 1822, que tinham tido uma vida extremamente curta. Era notório, desde logo, que o cartismo consagrava um sistema eleitoral baseado na capacidade económica dos eleitores e não na dignidade espontânea que emanava da simples existência desse eleitorado. Que queremos dizer com isto? Queremos dizer que a Carta Constitucional só concedia direitos efectivos de voto aos cidadãos que satisfizessem determinados montantes de censo (ou seja, de imposto) ao Estado. As leis determinavam taxativamente que os cidadãos que pagassem cifras inferiores às que estavam previstas na lei não poderiam votar. Estes eram reduzidos, desta maneira, ao estatuto minoritário de cidadãos passivos, estando condenados, portanto, à simples contemplação da vida política activa, sem que nela pudessem intervir. As decisões fundamentais sobre a vida futura da Nação eram entregues ao pequeno grupo dos terratenentes, uma vez que o sistema tributário (ou censitário) incidia predominantemente sobre os titulares de bens imobiliários. Isto significava que o exercício da actividade política, no que esta tinha de mais nobre e decisivo, ficava confiado a uma pequena bolsa de proprietários fundiários, uma vez que as cargas de impostos sobre os direitos de propriedade imobiliária conferiam estatutos diferenciados de cidadania. Em fórmula sintética : aqueles que não fossem proprietários ficavam condenados à simples e passiva contemplação do jogo político, em relação ao qual se deveriam considerar condenados a uma espécie de silenciamento legal.

A Carta Constitucional de 1826 entregava o poder legislativo a duas Câmaras. Eram elas a Câmara dos Deputados, que era electiva, e a Câmara dos Pares, que era de nomeação régia. Isto significava que as propostas ou projectos de lei, emanados da Câmara electiva dos Deputados, poderiam ser aniquilados pela consideração de oportunidade ou de simples autodefesa régia, formulada pela Câmara dos Pares ou Câmara Alta. Esta última Câmara, de cooptação régia, poderia sempre paralisar e aniquilar a capacidade de iniciativa da outra Câmara, a qual, embora sujeita a sufrágio, lhe estava irremediavelmente subordinada. A vontade do Rei iria preponderar sempre sobre a vontade da Nação.

Para além disto, a Carta outorgada em 1826 por D. Pedro IV – que fora o primeiro Imperador do Brasil – determinava que o Poder Moderador (forma eufemística de designar a realeza tout court) poderia utilizar um direito de veto absoluto em relação às propostas ou projectos de lei emanados da Câmara dos Deputados. Era um segundo crivo selectivo que funcionava a jusante da própria concordância dos deputados. Expliquemos melhor: uma proposta ou projecto de lei, emanada da vontade dos representantes populares, ou seja, da vontade dos deputados, só teria esperanças de futura vigência se houvesse, por um lado, a concordância da Câmara dos Pares e, por outro, a condescendência do monarca. Esta dupla tutela que se exercia sobre os representantes da Nação dava bem a nota da subalternização da vontade do Colectivo sobre a vontade particularista do chefe da aristocracia e dos seus sequazes.

Estas clarificações sobre a história dos textos constitucionais portugueses tornam-se crucias para que possamos apreender a futura matriz vintista dos republicanos portugueses. A nossa República reivindica a sua herança a partir do património ideológico dos homens que constituíram o Sinédrio e que quiseram impor à Corte e à aristocracia, foragida no Brasil, uma arquitectura cívica na qual a vontade do representante eleito prepondera sobre o arbítrio particularista do ungido de Deus e do cooptado pelo Paço.

Ora, a Constituição de 1822 não previu uma Câmara dos Pares, retirou ao monarca o veto absoluto e entregou ao deputado eleito o centro de gravidade da vida política. Foi por todas estas razões que o nosso republicanismo reivindicou a sua origem vintista.