18 de junho de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LIII


LIII - Um livro infame: "O Marquês da Bacalhôa"

As qualidades intelectuais e artísticas que não podiam ser negadas a D. Carlos, notável pintor naturalista e estudioso dos recursos oceanográficos da costa portuguesa, faziam contraste com o seu fundo de carácter, hedonista e sobranceiro. O monarca tratava toda a gente por tu, desde os serviçais do Paço aos chefes dos governos. Era dado aos “prazeres da carne”, estando longe de constituir um modelo de marido exemplar. Coleccionava amantes e rumava frequentemente a Paris, para beber champanhe na companhia de coristas complacentes. Constava que nos regressos ao pátrio torrão, ao cruzar a fronteira, proferia desabafos como este: “Cá regresso eu à piolheira”. Um dos inúmeros escândalos de costumes do seu reinado teve-o como protagonista. D. Carlos quis ter por perto uma senhora com quem se relacionara intimamente. Por isso, mandou comprar, através da mediação do juiz António Maria da Veiga, espécie de inquisidor-mor das políticas oposicionistas, dois prédios bem próximo do Paço da Ajuda, mais concretamente na zona de Belém, para que as suas visitas fossem mais cómodas e talvez mais frequentes. Mas o caso transpirou para a opinião pública com grande estrondo. O próprio jornal republicano A Luta lhe fez publicidade, declarando em letra redonda que a compra apenas se destinara a encobrir os amores clandestinos do rei. O caso atingiu tais proporções que João Franco teve de destituir das suas funções o juiz Veiga. Por outro lado, a rainha-mãe, D. Maria Pia, embora bastante popular junto dos mais humildes, dava-se a gastos sumptuários e parecia não ter a mais pequena ideia da situação angustiosa das finanças públicas do Reino. Todos estavam lembrados da avultada quantia de mais de cinquenta contos de réis que D. Maria Pia gastara nas obras do seu guarda-roupa do Palácio da Ajuda. As críticas, por isso, dardejavam com frequência, alvejando a família real e atingindo-a na sua própria dignidade. Sendo caçador inveterado, D. Carlos ausentava-se de Lisboa mais vezes do que o bom senso aconselharia, procurando nas suas coutadas de Vila Viçosa as peças de caça que a sua pontaria ia abatendo.

Não foi surpresa, por isso, que António de Albuquerque, um plumitivo sem grandes escrúpulos e também sem grandes talentos literários, fizesse surgir sob anonimato um romance panfleto infamante para D. Carlos e os seus familiares, intitulado O Marquês da Bacalhôa. O livro apareceu em meados de Janeiro de 1908 e fez imediatamente um sucesso estrondoso. Dado o seu conteúdo escandaloso, foi imediatamente apreendido. Mas isso só lhe aumentou a procura, continuando a circular e a ter potenciais leitores, que o procuravam obter por portas travessas. O tema central, nele desenvolvido, residia numa descrição deplorável da vida do Paço e dos mais directos familiares do rei. Eram todos caracterizados como dissolutos, sensuais e dúplices, faltando a todos os compromissos, mesmo os conjugais. Em suma, o livro era um registo imaginário de cenas de alcova e de episódios deslustrantes, enxovalhando a todos os níveis a realeza e a aristocracia mais próxima da Corte. E como o romance misturava, com malévolo engenho e pretensão de realidade, cenas e episódios verosímeis com alusões e imputações meramente fantasistas, a curiosidade citadina respondeu a tais estímulos com uma excepcional e generalizada curiosidade. A prova do estado comatoso do regime foi, de algum modo, certificada pela fraca reacção a este vergonhoso escrito. Os protestos dos monárquicos não se fizeram ouvir senão muito debilmente. O campo republicano rejubilou discretamente, vendo na desqualificação moral da família real e dos seus áulicos a concretização de um dos objectivos da sua própria propaganda.

9 de junho de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LII

( Presos políticos no tempo da ditadura de João Franco )

LII - "Uma Ditadura de Sangue e de Suborno"

É imperioso que se sublinhe infatigavelmente esta realidade: a ditadura de João Franco foi favorecida pelo rei D. Carlos, que a desejava ardentemente, apesar dessa manifestação de excepcionalidade legal vir ao arrepio da vontade de todas as formações e sensibilidades políticas. E esta ditadura significou no país a instabilidade, a insegurança, a violência e o atropelo do mais vago vislumbre de constitucionalidade. A visita que o chefe do governo fez ao Porto, em 17 de Junho de 1907, deu origem a episódios de permanente tumulto. Coimbra recebeu a passagem do comboio oficial mimoseando-o com o arremesso de indizíveis coisas. No regresso a Lisboa, finda a visita, viveram-se momentos de uma previsível contestação, tendo-se imediatamente travado, na estação do Rossio, as mais graves escaramuças entre populares e forças policiais. Houve vítimas mortais entre os civis. O Jornal da Noite, órgão de imprensa do franquismo, logo se apressou a declarar que todos os excessos tinham sido devidos sobretudo ao chefe republicano José Relvas e a José de Alpoim, eminência notória da Dissidência Progressista.

As constantes perturbações da ordem pública, longe de terem favorecido uma serena meditação sobre as suas causas profundas por parte de João Franco e do seu patrocinador régio, reforçou neles a vontade de tudo submeter, utilizando, na totalidade, o ferro e o fogo disponíveis. É isto que explica a saraivada de textos legais, aprovados à pressa, para ser conseguida não tanto a pacificação racional de uma situação anómala, mas antes para ser alcançado o vexame de uma capitulação perante o arbítrio daquele Poder, que quase ninguém acarinhava. A imprensa hostilizava o governo? Logo o decreto de 20 de Junho a submeteu à vigilância dos governadores civis. As datas previstas para a realização de eleições municipais ameaçavam o “quero, posso e mando” ? Fez-se à pressa o decreto de 14 de Outubro, adiando-as sine die. Havia sinais de insurreição clandestina? A réplica veio com a atribuição de competências alargadas aos Juízos de Instrução Criminal, através do decreto de 21 de Novembro, apelando para o julgamento de atentados contra a segurança do Estado. Era uma figura tão vaga, esta da abstracta “segurança do Estado”, que ninguém a sabia identificar com rigor. As autarquias revelavam-se refractárias ao franquismo? Imediatamente se dissolveram as vereações legítimas, que o decreto de 12 de Dezembro substituiu por “comissões de gerência”, aliadas do governo. Lentamente, Portugal converteu-se numa coutada desse “regedor de paróquia”, boçal e iracundo, que era João Franco. E a dignidade real sofreu a usura homóloga, o implacável embaciamento dos restos do prestígio que sobrava do passado.

Foi em ditadura que se resolveu o candente problema dos “adiantamentos à Casa Real”, embora de maneira desastrada e pouco transparente. As dívidas da realeza foram, segundo muitas vozes, francamente deflacionadas. Procurou depois estabelecer-se um encontro de contas com os montantes de arrendamentos ao Estado de propriedades da Casa de Bragança. Uma parte significativa da opinião pública contestou que o iate “Amélia” , adquirido com verbas públicas, fosse integrado no património régio. O
Correio da Noite, representativo do Partido Progressista, veio falar numa “ditadura de sangue e de suborno”, não recuando um milímetro em relação à salvaguarda da figura do monarca. Este era apresentado “armado de bacamarte, atirando aos adiantamentos”.

Estava ali, à vista de todos, uma ditadura desacreditada e uma monarquia periclitante. D. Carlos decidiu vibrar-lhe mais uma machadada ao conceder ao jornal parisiense
Le Temps, através do jornalista Joseph Galtier, uma entrevista no decurso da qual produziu afirmações pasmosas. Uma das mais devastadoras foi a de que dera a Franco as condições da ditadura porque nele se plasmavam “garantias de carácter”. Ou seja: o raciocínio a contrario permitia concluir que os demais governantes, passados ou potenciais, tinham sido garrotados pelo rei … por não se lhes reconhecer “carácter” !! O insulto era tão explícito e provocatório que suscitou uma hecatombe de fidelidades monárquicas. Augusto José da Cunha, antigo ministro e ex-perceptor do rei, o Par do Reino Anselmo Braamcamp Freire e um descendente do honrado Marquês de Sá da Bandeira, Faustino de Sá Nogueira, entre muitos outros que se calaram por inércia, logo vieram a público manifestar a sua decepção. Por seu turno, com a sua certeira e letal acutilância, João Chagas logo veio caracterizar o deprimente espectáculo, falando num rei que governava “contra todos os partidos e homens que o serviram”.

Era possível decair ainda mais? O futuro iria provar que sim.