27 de janeiro de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO II

 

As “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”

(Na imagem - O Casino Lisbonense, ao Largo da Abegoaria, no tempo das Conferências Democráticas)

 A modernização capitalista de Portugal, levada a cabo a partir de 1851 pelos sucessivos governos regeneradores e impulsionada especialmente por Fontes Pereira de Melo, revelou-se muito penalizadora para as camadas sociais menos abastadas. Fontes crivou de impostos os contribuintes, não tendo feito a menor discriminação entre os que podiam pagar e os que, por manifesta fragilidade económica, se debatiam em agonias de sobrevivência. Os assalariados e a “burguesia magra” sofreram com estoicismo, durante cerca de quinze anos, esta situação. Mas a revolução espanhola de 1868 e a Comuna de Paris de 1871 vieram agitar as consciências dos mais informados, incentivando sonhos e acendendo esperanças em torno de novos ideais de reorganização social e de mudança política. Os vocábulos “república”, “democracia” e “socialismo” tornaram-se comuns, não tanto para os mais ignorantes e sofredores, mas para os mais doutos ou estudiosos.

O drama da Comuna de Paris foi seguido em Lisboa por Antero de Quental e em Coimbra por Teófilo Braga. Antero acabara já o seu curso de Direito em 1864 e frequentava agora em Lisboa uma tertúlia de amigos, a que tinham dado o nome de Cenáculo, e que funcionava informalmente num quarto do Bairro Alto, arrendado por Jaime Batalha Reis. Teófilo Braga, por seu turno, apesar de também já formado e doutorado, estava ainda por Coimbra e viria a sofrer, nesse preciso ano de 1871, o desgosto de lhe haverem defraudado a promessa de o proverem lente de Direito da mondeguina Universidade. Mas voltemos ao Cenáculo da capital do Reino. Por lá apareciam também três personalidades muito singulares. Uma delas era longilínea, frágil, supersticiosa, atenta às novidades literárias de França e dava pelo nome de Eça de Queirós. A outra era hercúlea, desempenada, de gesto largo e passada firme e assinava-se Ramalho Ortigão. Uma terceira revelava-se retraída, observadora e circunspecta, trajando sempre de negro e chamando as pessoas de parte, para lhes assegurar que, segundo os seus informadores, estava em vias de estalar na Europa uma vingadora e justiceira revolução. José Fontana, caixeiro da livraria Bertrand, reagia assim à revoada de observações que aqueles senhores, mais letrados, iam fazendo. Ferviam as discussões acerca dos últimos acontecimentos de Paris e trocavam-se sarcasmos. A vozearia durava até às tantas e a vizinhança, espavorida pela insónia forçada, reclamava sem grande proveito.

Foi no seio deste memorável Cenáculo que chispou a ideia de virem a organizar-se no Casino, ao Largo da Abegoaria, umas Conferências Democráticas. As grandes questões, aquelas que verdadeiramente importavam ao futuro da Humanidade, iriam ser aí debatidas “com radicalismo”, como explicava Antero em carta expedida para o seu conterrâneo Teófilo Braga, convidando-o a ser também orador. Ramalho Ortigão, de costela mais conservadora e céptica, decidiu ficar de fora. Em 18 de Maio de 1871, o jornal A Revolução de Setembro publicava o manifesto anunciador das Conferências. Era ele assinado por alguns dos frequentadores do Cenáculo e por outros menos assíduos, elencando os nomes de Antero de Quental, Jaime Batalha Reis, Eça de Queirós, Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Germano Vieira Meireles, Augusto Seromenho, Manuel de Arriaga, Augusto Fuschini, Oliveira Martins, Guilherme de Azevedo e Salomão Saragga. Neste documento se declarava que as Conferências iriam preocupar-se, sobretudo, “com a transformação social, moral e política dos povos”, agitando na opinião pública “as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas” e sendo também estudadas “as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”. O vocábulo “transformação”, repetidamente utilizado, ressalta do documento, dando a medida desta insurreição intelectual em marcha.

Antero de Quental apresentou a iniciativa e proferiu a primeira conferência, que se debruçou sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares. Na sua opinião, o atraso da Península tornava-se explicável pela acção nefasta nela desempenhada pela monarquia absoluta e pela Inquisição católica, não deixando igualmente de enfatizar o irrealismo da aventura marítima dos Descobrimentos. Augusto Seromenho falou sobre a literatura portuguesa e lamentou o carácter formalista e artificial de muitos dos coevos escritores. Seguiu-se-lhe Eça de Queirós, que dissertou sobre o Realismo como Nova Expressão da Arte, destroçando a estética do Ultra-Romantismo reinante, que se apresentava sem um pingo de autenticidade. Adolfo Coelho, chegada a sua vez, pronunciou-se sobre A Questão do Ensino, demolindo sem piedade o obsoleto edifício do sistema escolar então vigente. Fizera-se, até este momento, o requisitório da monarquia tradicional e constitucional, da Igreja católica ultramontana, da literatura sem verdade artística e sem intenção social, do ensino ultrapassado, caduco e falho de actualização. Muitos motivos para a Monarquia reinante se preocupar? Sem dúvida. Por isso, ela não iria permanecer passiva ante o anúncio da próxima conferência de Salomão Saragga – um judeu… – a qual versaria sobre Os Historiadores Críticos de Jesus. O gabinete de António José de Ávila apressou-se a dissolver e ilegalizar as Conferências, brandindo o argumento da impiedade, da salvaguarda dos bons costumes e da necessidade de manutenção da tranquilidade colectiva.

A República acabava de dar um passo mais. Outros se seguiriam, como veremos proximamente.

22 de janeiro de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO - I

O contexto histórico que precedeu a propaganda republicana

 Quando os primeiros ideais republicanos começaram a divulgar-se em Portugal, de forma consistente e promissora, o nosso país ainda comportava governações monárquicas que vinham desde os primórdios da nacionalidade. É natural que assim tenha sido. A República, como filosofia de sociabilidade e como forma de governo, supunha um desenvolvimento dos valores da Cidadania e uma maturação cultural que não se compadeciam com os atavismos de que o país enfermava. Assim, foi necessário, primeiro, que Portugal mudasse a forma monárquica do regime, passando de uma monarquia tradicional, típica do Antigo Regime, para uma monarquia constitucional, o que veio a acontecer – embora por pouco tempo, devido ao miguelismo – a partir da revolução de 24 de Agosto de 1820; depois, foi ainda imperioso que essa versão constitucional da Monarquia, solidificada a partir de 1834, demonstrasse a sua incapacidade de proporcionar aos portugueses os níveis de desenvolvimento mental, material e ético que eles ambicionavam. Só a partir de então estariam reunidas as condições necessárias para uma eficaz doutrinação divulgadora dos valores e dos objectivos do republicanismo.

A Monarquia constitucional portuguesa viveu uma história convulsa e pouco consensual até 1851. Os seus principais protagonistas encontravam-se divididos entre o ramo conservador dos “cartistas” – defensores da Carta Constitucional de 1826, outorgada por D. Pedro, então Imperador do Brasil – e o ramo dos “vintistas”, mais radical e mais próximo dos anseios populares, defendendo esta corrente o que se dispunha na Constituição de 1822, surgida pouco depois da revolução de 1820. Do confronto entre estes sectores resultaram diversos episódios históricos: a revolução de Setembro de 1836 e a guerra da Patuleia de 1847 configuraram momentos, embora efémeros, de afirmação “vintista” ; pelo contrário, o cabralismo dos anos 40 dará resposta ao modelo mais repressivo da inspiração “cartista”. A revolução da Regeneração, ocorrida em 1851, representará a vitória clara do sector “cartista”, ou seja, da versão mais conservadora do liberalismo. Após o agitado ciclo do confronto, iria experimentar-se um ciclo mais bonançoso, baptizado por alguns como a “época dos melhoramentos materiais”.

A Regeneração recebeu de Oliveira Martins uma outra nomenclatura. Teria sido, segundo ele, o “nome português do capitalismo”. Tratou-se de uma capitalismo tímido, caseiro, mais interpretado por especuladores bolsistas do que por grandes banqueiros ou por grandes grupos económicos, uns e outros inexistentes. O político “cartista” que tentou viabilizar este projecto chamava-se Fontes Pereira de Melo. Mas como fazer grandes obras públicas, se Portugal não tinha dinheiro? Elas foram feitas com os empréstimos, onerados com elevadas taxas de juros, que os sucessivos governos fontistas contraíram, sobretudo na praça financeira britânica. Mas só existia um processo para que Portugal fosse pagando o capital e os juros desses empréstimos. Tornou-se necessário aumentar a carga fiscal, impendendo esta mais duramente – como sempre! – sobre os menos abonados.

Por volta de 1870, já a opinião pública mais esclarecida encarava com apreensão a continuidade do fontismo. Se era inegável que Portugal encetara uma via de modernização e ganhara algum terreno ao abismo que o separava da restante Europa transpirenaica, o seu “capital humano” mantinha-se inalterado. O analfabetismo ultrapassava os 85% da população; o minifúndio agrícola (e Portugal era um país de agricultores) mal dava para comer; as doenças, como a cólera e a febra amarela, devastavam os organismos famélicos e depauperados dos mais pobres; crescia a mendicidade; o saneamento público não existia, mesmo nas grandes cidades; os professores, sobretudo os da instrução primária, ganhavam salários de indigência.

Por outro lado, a vizinha Espanha sofrera um forte abalo político, através da eclosão de um movimento revolucionário, em 1868. Por lá, começava agora a falar-se em República. Também em França, na continuidade da guerra franco-prussiana, se erguera com vigor a Comuna de Paris, em 1871, que o liberal-conservador Thiers haveria de afogar em sangue. Vocábulos como os de Socialismo, Democracia Social e Comunalismo (não confundir com comunismo, pois são conceitos distintos) iam irrompendo das bocas dos resistentes.

Foi este o pano de fundo sobre o qual se iria desenhar a ideia portuguesa de República. Disto trataremos no nosso próximo texto.

21 de janeiro de 2009

PRO RES PUBLICA


CENTENÁRIO DA REPÚBLICA 
 
 

Comissão Cívica de Coimbra para as Comemorações do Centenário da República 
 

                                                                APELO 
 

Cidadãs / Cidadãos 
 

Em 05 de Outubro de 2010 assinala-se o I Centenário da República. 

Pelo Decreto-Lei nº 17/2008, de 29 de Janeiro, foi criada a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, a decorrer entre 31 de Janeiro e 5 de Outubro de 2010. 

Os abaixo assinados, Cidadãos de Coimbra, republicanos e democratas, em harmonia com os objectivos gerais das Comemorações, definidos pelo Governo e Presidente da República, entendem constituir-se em Comissão Cívica de Coimbra para as Comemorações do Centenário da República.  

É nossa intenção dinamizar, com as instituições, colectividades, associações e cidadãos que adiram a este projecto, um conjunto de iniciativas culturais diversificadas a nível concelhio, em ordem a contribuir para uma maior mobilização e participação da sociedade civil nas comemorações e para uma maior visibilidade dos objectivos pretendidos, especialmente junto das gerações mais jovens.  

Convidamo-la (o) a aderir a esta Comissão Cívica, a divulgar este Apelo e a participar no breve Acto Público da sua apresentação que, terá lugar no dia 31 de Janeiro, sábado, pelas 11h00, junto ao Monumento ao 25 de Abril, na Rua Antero de Quental. 

As adesões devem ser comunicadas para ALTERNATIVA – Associação Cultural para o Desenvolvimento do Ser Humano, alternativa.acdsh@gmail.com  
 

Coimbra, 21 de Janeiro de 2009 
 

Alternativa - Associação Cultural 

Associação 25 de Abril (Delegação Centro)

Amadeu Carvalho Homem 

Anabela Monteiro 

Augusto Monteiro Valente 

Carlos Esperança 

Fernando Fava 

José Dias 

Rosa Campos  

16 de janeiro de 2009

A REPÚBLICA QUE FALTA ...

Um dos argumentos mais utilizados pelos defensores de regimes políticos apartados da Democracia é o da Ilustração e o da Competência. Assim, segundo eles, os ignorantes e os iletrados não deveriam possuir voz activa nas mais importantes decisões da vida social. Falam em abstracto no mérito intelectual e no conhecimento teórico e técnico de uns tantos, conferindo só a esses o “mérito” e a “capacidade” para gerir os interesses da colectividade. Os demais seriam uma espécie de “exército de reserva” – a terminologia de Marx revela-se concludente – para concretizar os objectivos sapientes e competentes desta hoste de iluminados. Tal discurso teve a sua voga e a sua pertinência até à revolução industrial. Na primeira metade do século XIX ainda se faziam ouvir vozes de estudiosos do fenómeno social, como Villermé ou Buret, defendendo que as chamadas “classes laboriosas” não necessitariam de quaisquer nutrientes espirituais, bastando-lhe, quando muito, os rudimentos da escrita, da leitura e do cálculo. Foi necessário um longo e porfiado combate, travado com firmeza e decisão pelos republicanos europeus, para que a maioria viesse a adoptar o ponto de vista segundo o qual um País será tanto mais eficaz – para já não falar nos valores da Justiça e da Felicidade – quanto mais informados e cultos fossem os seus cidadãos. Todos os seus cidadãos, frisemos bem. Mas o problema de agora, no Portugal de hoje – talvez até mesmo em toda a Europa de agora e de hoje – não será o do acesso universal das pessoas à educação e à cultura. O “grande político” hodierno é o que pretende cultivar uma postura de reserva e de ocultismo, uma iniciática solidão, apenas partilhada com meia dúzia de apaniguados. Longe vão os tempos em que funcionários públicos de topo, autarcas, ministros, secretários de Estado, Presidentes da República, etc, davam conta aos seus concidadãos, olhos nos olhos, de quase todos os aspectos fulcrais da sua administração. Como as coisas mudaram! E é assim que, de tempos a tempos, acordamos, espavoridos, com a notícia inesperada de que esta figura pública é um celerado, de que aquele antigo ministro é um biltre, de que aquele alto servidor do Estado é o braço (que finalmente se entremostra) de uma “Cosa Nostra” qualquer … Falta transparência e dignidade a esta política e a estes políticos. Digamos a verdade toda: nesta República Portuguesa falta, antes de tudo, muito mais República.

11 de janeiro de 2009

ZEUXIS

Quando o último raio de sol se despediu da Ágora de Atenas ainda por lá ficou Zeuxis, o pintor, medindo a praça, para cá e para lá, com passadas nervosas. Uma donzela passou por ele e sorriu. Um inimigo cruzou-se com os seus passos e invectivou-o. Um escravo dirigiu-lhe uma furtiva mesura. Mas Zeuxis não colheu o perfume do sorriso feminino, nem repeliu o furor da invectiva, nem correspondeu à mesureira homenagem. Mergulhara no mais fundo de si para tentar resolver o mais espinhoso dos problemas: como representar a Beleza?

Zeuxis sonhara fixar para sempre a perfeição de Helena, aquela que justificara, só por si, uma cruenta guerra, aquela mesma mulher que Homero, rendido, havia considerado incomparável. Como se poderia então representar o único, o sem par, o Belo absoluto? E Zeuxis estugava cada vez mais as suas passadas, como se perseguisse uma solução esquiva, um enigma pitagórico, uma cifra misteriosa da Pítia de Delfos. Quem o vira nesse febril vai-vem, batendo as areias rangentes sob o compasso das suas sandálias, também o viu estacar de chofre, erguer ao céu os braços e gritar: - É isso, é isso, tenho de seguir já para Crotona.

Foram muitos os sóis que banharam a Ágora de Atenas sem que nela se voltasse a encontrar o rasto de Zeuxis, o pintor. Mas certo dia – dia de rosas em botão e de vivíssima luz – a praça encheu-se de rumores e glórias. A donzela correu a casa e disse à mãe-matrona que era imperioso que se deslocassem a casa de Zeuxis, para que pudessem contemplar, ao menos uma vez, a maravilhosa pintura que ele trouxera de Crotona. O inimigo confidenciou a amigos seus que haveria de ir ao domicílio de Zeuxis para o desmascarar, provando que a obra chegada de Crotona era da autoria de Parrásio, o émulo pintor. O escravo murmurou a um liberto que haveria de suplicar a Zeuxis a mercê de mirar Helena, pois assim encontraria forças para continuar a viver.

Zeuxis estivera, de facto, em Crotona. Corria a fama de que aí se acolhiam as mais formosas mulheres da terra. E as mais belas das belas foram as escolhidas para servirem a Zeuxis de modelos. Retirou de uma o fulgor do olhar, de outra o sedoso dos cabelos, desta o equilíbrio da fisionomia, daquela a elegância do porte, daqui o redondo dos seios, dali o arco da cintura. Nasceu Helena como obra sem par da síntese de particularidades sem par. E como depois do amor todo a animal fica triste, houve até quem dissesse que Zeuxis teria chorado quando chegou ao fim da sua pintura.

Passado algum tempo, Zeuxis voltou a passear na Ágora. Recebeu novamente o sorriso da donzela e a mesura do escravo. Mas o inimigo dirigiu-se-lhe, interpelando-o com a ira no rosto e a peçonha nas palavras: - Zeuxis, ouve bem o que eu te digo. Só me convencerás do teu génio quando lograres pintar tão bem o Feio como, segundo dizem, pintaste o Belo.

Muitas foram as luas que correram o céu da Ágora sem que ninguém tivesse voltado a ver Zeuxis. Recolhido ao lar, o pintor produziu febrilmente a megera mais escalavrada, mais repelente e hedionda que alguma vez pôde ser representada em todo o historial da arte. Todos esperavam agora que o inimigo se curvasse ao seu talento. Todos aguardavam que Zeuxis transportasse para o meio da Ágora a prova do seu triunfo, agora definitivo, sem contradita. Mas Zeuxis não se resolvia a sair de casa e permanecia em sombria contemplação ante o seu horrível e talentoso trabalho. Alguns o viram a chorar muito. Dias depois, o escravo bateu-lhe à porta e disse-lhe num sussurro: - Senhor, está tudo à tua espera na Ágora, para que possas ser aclamado, como mereces. Senhor, onde está o teu trabalho? E Zeuxis respondeu: - Já não existe. Aniquilei aquela velha ignóbil. O escravo fitou-o com a maior perplexidade : - Senhor, que razões te levaram a fazer tal coisa? E Zeuxis disse-lhe o seguinte, com voz cansada: - Era necessário que o fizesse. O Belo de Helena foi retirado da beleza de todas as mulheres de Crotona que me serviram de modelos e é um hino a essas dádivas bondosas. Chorei de alegria quando pintei Helena porque ela representava não apenas o Belo, mas também o Bom e o Justo. Estas coisas nunca poderiam ser encontradas numa só mulher, mas em várias. Mas vê tu, escravo, que para pintar o Feio eu não tive de o procurar em parte alguma. Retirei-o todo de mim. Não tive de ir a Crotona. Encontrei-o na minha própria casa. Foi então que chorei de lástima por mim mesmo, de mágoa por ter cedido ao desafio de um inimigo perverso. Não pude consentir em ter comigo, todos os dias, a prova da minha fraqueza. Por isso destrui pelas minhas próprias mãos essa obra impura.

 

A Ágora de Atenas guardou por muito tempo a memória deste episódio, até ser destruída pela voragem do implacável Tempo. Zeuxis, porém, ainda vive: no fulgor dos olhares, no sedoso dos cabelos, no equilíbrio das fisionomias, na elegância dos portes, no redondo dos seios e no arco das cinturas do Ideal feminino.  

7 de janeiro de 2009

CANTAR !

Em regra, uma boa parte dos nossos Amigos são recrutados nas fileiras dos que connosco exercem a mesma profissão ou dos que connosco partilham as mesmas paixões. O risco que assim se corre é o de sermos monocórdicos nos temas e nos desenvolvimentos das conversas, devido à comunidade dos interesses e das preocupações. Penso, contudo, que tanto os Amigos como os Amores, para poderem sê-lo com renovado encanto, deveriam poder surpreender-nos. Mesmo que apenas de longe em longe. Por que razão amamos tanto o maravilhoso? Por que se abrem as corolas das almas à brisa de uma diferente sedução? Que correnteza nos impele para Universos tão distantes da trivialidade e para paisagens tão marcadas pelo apelo do exótico?

Há uns anos, tive como colega de trabalho numa instituição universitária uma talentosa Amiga, cheia de vivacidade e de arguta inteligência. Factores de convergência, como o gosto partilhado pela poesia e pelo cinema, foram cimentando solidamente esta relação social. Acontecia, porém, que os anos se passavam sem que ela apresentasse a um júri a tese que lhe iria permitir alcançar o topo da sua carreira académica. Era coisa que me intrigava e me impelia a insistir sempre na mesma questão: - Então como vai a tese? Para quando, a marcação das provas? E a minha Amiga lá me ia enfileirando justificações, um tanto engasgadas e trôpegas : -As aulas, sabe? E também os trabalhos domésticos, e as exigências desta vida de agora, que não deixa tempo para nada. Até que um dia ela atingiu o ponto supremo de saturação. Nem eu sonhava que lhe estava a ser tão incómodo. E quando a interpelei outra vez – e a investigação, corre lépida? – esta Minha Amiga desferiu-me um olhar magoado, acusador, e disse baixinho: - Eu nunca lhe disse o que hoje lhe vou confessar. Mas a tese não me interessa para nada. Será uma prova de sobrevivência, um ganha-pão, entende? O que eu queria mesmo era cantar, cantar num palco grande, ainda que só estivessem duas ou três pessoas a ouvir-me!

Pois é, as amizades de profissão acabam por nos ser tão triviais que raramente as conhecemos … Já há muito tempo que não me encontro pessoalmente com esta Amiga. Mas surpreendo-me todas as vezes que, pensando nela, me pergunto: - Será que já encontrou o seu palco?  

3 de janeiro de 2009

MERECER O NOME

Eu podia ter tido como apelido um Silva, ou um Sousa, ou um Ferreira, ou um Santos. E todos estes apelidos haveriam de ser, por igual, excelentes. Mas como o meu saudoso Pai era um roble, um daqueles carvalhos meditativos, possantes e copados, e como a raiz familiar remontava também aos homem, eu passei a ser designado, pelos amigos, pelos colegas, pelos simples conhecidos, como “o Carvalho Homem”.  Em caso de zanga bem puxada e renitente, alguns dos meus oponentes afrontavam-me com expressões como estas : “ Mas que carvalho de homem” … e às vezes até tiravam o v, para me irritarem. Outros, mais gentis e crescidotes, sublinhavam a minha puerícia e chamavam-me assim: “Anda cá, carvalhito!”. E eu ia, mas convencido de que haveria de crescer e de me fazer também possante, também copado, bem distante da vulgaridade de uma arvorezita de trazer por casa.

Um dia, numa sessão de catequese, para onde era despachado pela guia de marcha da Senhora minha Mãe – uma católica de tamanha ortodoxia que nunca compreendeu muito bem que o Vaticano se tivesse decidido a substituir as missas em latim (língua sagrada, meu filho, língua do céu) por missas em vulgar – o Senhor Prior contou-nos, a todos nós, catecúmenos em carteira, a história de um Santo cuja angélica postura só fora alcançada na senectude, após uma vida de dissolução e de rebeldia. E o tal sacerdote concluía sempre a narrativa com esta observação: - E finalmente, meninos, ele mereceu o seu próprio nome.

Aquilo fez-me pensar. Passei a imaginar que um Silva tivesse de ser intrépido e acutilante, como um acúleo ou uma zagaia, para merecer tal nome. Dei comigo a cogitar que um Sousa deveria possuir uma poética modulação de alma e uma acção social tão persuasiva como a das águas de um regato, que vão mitigar o torrão ressequido ou a raiz sedenta, para lá de todas as dificuldades da orografia. Defendi no meu íntimo que um Ferreira estava vocacionado para uma firmeza sem quebranto e para uma lealdade sem sofisma; e que também um Santos haveria de condensar no mais fundo do seu coração todas as virtudes, todas as generosidades e todos os altruísmos a que se podem elevar os caracteres de excepção.

Carvalho Homem – e ainda por cima Amadeu por nome próprio (escolhido pela Mãe, por amor ao Marido terreno e por devoção ao Pai Celestial). Espinhosa missão esta, a de merecer tal nome …