27 de março de 2011

MADOFF EM OFF

Estive a ler com o maior interesse, na Revista do último número do jornal EXPRESSO, uma entrevista exclusiva concedida por BERNARD L. MADOFF, o mediador e conselheiro de finanças que cumpre actuamente nos USA, uma pena de prisão de 150 anos, por ter realizado a maior fraude de todos os tempos nos negócios de Wall Street, onde passava por Guru.

Reduzida ao essencial, a “estória” até é simples: Madoff foi construindo, ao longo do tempo, uma reputação de “mago da manobra bolsista”, pois a sua intuição lhe permitia pagar aos seus clientes maiores dividendos do que os seus concorrentes. Quando o mercado “amuou”, os pedidos de colocação financeira, provindos de todos os sectores da especulação capitalista, abateram-se sobre ele, ainda com mais insistência. Os especuladores não admitiam realizar menos “mais-valias”, apesar de todas as advertências da contracção económica. E todos eles viram em Madoff o equivalente a Nosso Senhor Jesus Cristo no Jardim das Oliveiras, quando Ele disse aos Apóstolos que brevemente iria partir para o convívio do Pai. Os homens do dinheiro esperaram também ouvir de Madoff que a coroa de espinhos do capitalismo não era tamanha que não lhes permitisse brevemente a entrada na Eternidade do Dinheiro sempiterno, ficando-lhes reservada uma cadeirinha de oiro, com um Espírito Santo a cantar-lhes sobre as cabeças o responso de pecúlios incomensuravelmente elásticos.

Madoff não foi mais do que a Dona Branca (lembram-se?) de Wall Street. Disse a todos que sim e embolsou quantidades surreais, irreais, cósmicas, de dólares, que tratou de colocar … a 2 ou 3 por cento !!! Mas como era necessário continuar a receber montantes e a reforçar a imagem de “mágico da corretagem”, Madoff ainda foi pagando aos primeiros clientes dividendos principescos, da ordem dos 10 a 12 por cento. E quanto mais ressoava no Sinédrio do Dinheiro o eco das façanhas de Madoff, mais voraz e incondicional se revelava a clientela. Madoff declarou o seguinte , na entrevista em causa: “O Presidente do Banco Santander veio ter comigo. O Presidente do Crédit Suisse veio ter comigo. O Presidente do UBS veio ter comigo. Eu tinha esses bancos todos”. Até ao momento em que a ficção se tornou insustentável e em que Madoff concluiu que, embora com promessas de investimento no valor de 700 milhões de dólares, ele próprio teria de pagar juros no valor de 7 mil milhões de dólares (!!!!!!!). Madoff foi condenado e preso; um dos filhos suicidou-se; um número indeterminado de beneficiários indirectos concluíram, de um dia para o outro, que estavam reduzidos à total indigência. Uma bronca danada, diria o Senhor Pickwick para a Alice do País das Maravilhas.

Não consta desta “estória exemplar” o que aconteceu ao Presidente do Santander, do Crédit Suisse e do UBS. Mas, à semelhança de uma outra “estória” recentemente divulgada, estamos em crer que todos eles estarão bem (graças a Deus), todos se consideram “vítimas” e “irresponsáveis” na hecatombe, todos eles dirão que são impolutos, que “toda a gente terá de nascer duas vezes para ser mais honesta do que eles” e que o CAPITALISMO é, sem refutação possível, o melhor dos regimes.

Tem paciência, Madoff. Vais ver que 150 anos passam num instantinho …

20 de março de 2011

DEMOCRACIA E PRESIDENCIALISMO


A opção pelo presidencialismo e a adopção do voto obrigatório parecem-nos ser, no actual momento político de Portugal, as respostas mais adequadas ao futuro do país. Já é quase fastidioso declarar que a Democracia sonhada a partir de 25 de Abril de 1974 se converteu numa partidocracia. E como a generalidade dos partidos políticos esqueceu a função essencial que os poderia dignificar, ou seja, serem as verdadeiras escolas de civismo e de formação política do cidadão eleitor, sobrou para eles o papel menor, inconsistente e trapaceiro, de se converterem em agências de emprego fácil para os seus arregimentados. Hoje, já ninguém nutre o mais pequeno vestígio de respeito pelas formações partidárias que por aí agitam as suas bandeiras. Os comícios ou actos públicos reunidos pelas respectivas chefias são frequentados por gente recrutada à pressa, à qual se pagou a viagem ou prometeu uma empenhoca qualquer, ficando os cantos da sala reservados para os “aparachiques” ou para os crentes em estado de misticismo ideológico, cada vez em menor número (que isto de ser incondicional também cansa e o cretinismo tem limites). É uma impossibilidade lógica conceber que estes aparelhos políticos, durante anos condenados ao ramerrão da inércia e à angariação sabuja do voto comprado, se convertam, por intercessão da Virgem Maria, dos pastorinhos, dos textos do Ulianov ou do “livro vermelho” de um tal Tung, no espaço nobre da honradez patriótica e da dádiva aos supremos interesses colectivos. Aliás, a vocação ínsita dos partidos foi sempre a de representarem os segmentos em que se divide a unidade da opinião pública. Assim sendo, a deriva de cada um deles para o reducionismo interpretativo, feito através do maniqueísmo entre os seus “bons” militantes e os “maus” que neles se recusam a votar, é quase uma consequência necessária da partilha da realidade entre o Céu e o Inferno. Como é de supor, os gestores mais inteligentes destas organizações de suprimento laboral não acreditam minimamente na endogenia angélica dos seus, suspeitando também que não poderá ser universalmente verdadeira a maldição diabólica que impende sobre os outros. Mas esta miragem dá-lhes jeito, pois lhes legitima o mando … e o pecúlio.

Não estou com isto a declarar para sempre danados os partidos políticos. Tem-se dito – e eu corroboro – que sem partidos políticos não haverá democracia. O que se pode acrescentar à fórmula – que desde já declaramos verdadeira – é a verificação, tangível e inegável, de que só com eles também não há.

O presidencialismo, ou seja, o cometimento das supremas responsabilidades governamentais a um Presidente da República votado pelo mais universal dos sufrágios – que é o que impõe (o que impõe, não receemos a palavra) o voto obrigatório – funcionaria como mecanismo correctivo de uma Democracia que caminha a passos largos para a falência económica e para o descrédito político. É que o comum dos votantes discerne mais cabalmente sobre a personalidade do que sobre a organização. Uma personalidade expende opiniões, apresenta um intimismo facilmente escrutinável, funciona como a referência inequívoca de um sistema de valores, assume individualmente um quadro de responsabilidades que dificilmente se esvai. A organização partidária é mais opaca e menos tangível; desdobra-se em canteiros e escaninhos que poucos conhecem; esbate e dilui em múltiplos segmentos de decisão e de favorecimento o que se quereria completamente publicitado; auto-reproduz-se em ninhadas de aspirantes que incorporam automaticamente os tiques menos aceitáveis dos que já se encontram instalados. Um mau Presidente apresenta a vantagem de poder ser sempre substituível por um Presidente melhor. Um mau partido não possui esta capacidade regeneradora, pois se encontra vinculado a toda uma cultura reprodutiva de um modo-de-ser e de estar que é específico da organização. O sistema até hoje vigente fez alastrar esta especificidade ao conjunto dos regimentos partidários existentes, pelo que, com exclusão dos crédulos ou directos “beneficiários”, dificilmente poderá sustentar-se a exclusão deste ou daquele em relação a um prognóstico que se nos afigura geral.

Claro que, ao escrevermos este texto, não estamos a tracejar a minúcia de um Poder alternativo ao que está. Contentamo-nos em adiantar duas ou três notas, com que se poderia lançar o alicerce de uma Democracia Republicana Presidencialista. Por muito má que esta viesse a revelar-se, estamos persuadidos que seria sempre infinitamente melhor do que a titubeante e venal realidade que nos rodeia. Se outro efeito não tiver, este depoimento possui para nós a inigualável vantagem de não assistirmos sem protesto, de mãos vazias e braços cruzados, ao estertor de Portugal.

11 de março de 2011

PRO PATRIA

Ficam aqui, topicamente enunciadas, as linhas gerais de um projecto político-social que me faria sair de casa no dia 12 ou em qualquer outro dia.

1 - Democracia presidencialista. A mais importante eleição, por sufrágio directo e universal, seria a do PR, o qual teria a responsabilidade de formar governo.

2- Voto obrigatório para todos os Cidadãos portugueses.

3- Representação parlamentar (com cadeira vazia no Parlamento) de votos brancos.

4- Impossibilidade de derrube do governo na legislatura de duração a definir.

5- Tabela de remunerações da função pública percentualmente indexada a um máximo, o qual seria referido à remuneração presidencial.

6- Tempo de trabalho uniforme para a concessão do direito à reforma.

7- Regime de tempo integral e dedicação exclusiva para toda a função pública.

8- Obrigatoriedade de passagem de recibo em todas as transacções ou actos económicos.

9- Reorganização concelhia, definida em função das realidades regionais e dependente, sobretudo, de mínimos populacionais.

10 – Reorganização urgente da Justiça portuguesa, a ser estudada por um Colégio Universitário mandatado para o efeito, o qual teria de se pronunciar num máximo de um ano e meio. Esta reorganização deveria garantir que qualquer processo se encontraria concluído num máximo de três anos.

11 – Financiamento do poder autárquico por fontes próprias, claramente enunciadas, com proibição taxativa de subsídios ou empréstimos excedentários.

12 – Declaração inequívoca de preferência, em parcerias e alianças políticas, económicas, sociais e culturais, com países de expressão lusófona.

13 – Salvaguarda do laicismo nas relações entre as Igrejas e o Estado.

8 de março de 2011

A "MANIF" DO DIA 12


Por responsabilidades próprias e alheias, a “manif” do dia 12 está a assentar em imperdoáveis equívocos. O primeiro desses equívocos resulta do facto de alguns dos seus promotores terem vindo à praça pública para reclamarem a destituição de “toda a classe política”. Ora, como o conceituoso Louçã, o arrenegado Jerónimo e o impagável Alberto João, o “do jardim”, se apressaram a declarar a sua solidariedade ao evento – e talvez até a respectiva presença no mesmo – Portugal irá assistir a esta singularidade: a de três ilustres cidadãos exigindo, impantes e impávidos, que os destituam da cena política e os afastem como pestíferos (o que talvez não fosse demasiado mau). Por outro lado, a “geração à rasca” pratica uma espécie de fascínio maximalista. Não se limita a exigir o afastamento dos crapulosos, dos desonestos, dos desonrados, dos pulhas, dos traidores ao povo e ao país, dos apátridas. Nada disso: é necessário, segundo o seu parecer, destroçar, varrer, aniquilar, TODA a “classe política”. E aqui, ressoam nos meus ouvidos os consabidos anátemas de todos os totalitarismos. Também Lenine pediu, na Rússia, TODO o Poder para os sovietes; também Mussolini reclamou, em Itália, a extirpação de TODAS as oposições; também Hitler impôs, na Alemanha e depois no mundo, a perseguição a TODOS os judeus; também Salazar, mais melífluo, aconselhou, em Portugal, a filiação na União Nacional a TODOS os “bons portugueses”. É o bafio do “déjà vu” a intrometer-se no cotão da fatiota da “geração à rasca”. Um outro equívoco radica na pobreza das declarações de intenção. Quem se manifesta, deveria manifestar-se pela positiva: não queremos isto e preferimos aquilo; rejeitamos estas práticas, mas preconizamos que se adoptem aquelas; não queremos ir por esta viela, mas propomos que se caminhe por aquela azinhaga. Ou seja: uma manifestação ditada pelo puro e duro fascínio “manifestativo” é ainda mais pobre do que a pobreza material (efectiva e inaceitável) da “geração à rasca”. A “manif” do dia 12 arrisca-se a congregar o “lumpen mental” de Lisboa e do Porto – o que é verdadeiramente tragicómico, sobretudo se ponderarmos o grau de empenhamento cívico, lucidamente fundamentado, que é agora exigível a todos e a cada um de nós, no exausto Portugal de agora.

É verdade que uma boa parte da “classe política” portuguesa se instalou, com vilania velhaca, na fruição de prebendas inaceitáveis, no egoísmo de privilégios injustificáveis, na manigância de negociatas reles, no tripúdio de valores democráticos fundamentais. Mas desejar a inculcação da ideia de que TODA a “classe política” se atascou no lamaçal da indignidade é, em si mesmo, a demonstração da incompetência de diagnóstico de quem quer atirar a “geração à rasca” para o beco sem saída da impotência. E isto fornece aos desejosos da manutenção do “status quo” este argumento irretorquível: “Coitados dos rapazes. Nem ideias têm. Divertem-se em desfiles inócuos e nada mais”!

Nestes últimos dias, o apregoado carácter apartidário desta “manif à rasca” conheceu um novo e paradoxal desenvolvimento. Segundo alguns, o evento visaria sobretudo os não-sei- quantos-anos da prática governativa do PS e do PSD. Ou seja: já nem sequer se salva o putativo distanciamento que poderia assacar-se à rejeição do “sistema”. É apenas UMA PARTE do dito “sistema” que irá ser alvo de execração. Mas, afinal, em que ficamos: é TODA a “classe política” que se vai crucificar ou já só UMA PARTE dela? E quem acredita, lealmente, com a autenticidade dos que prezam uma coisinha elementar chamada Verdade, que as demais formações partidárias se encontram na completa Bem-Aventurança política, por uma espécie de desígnio providencial, de milagre continuado, de banho santo sem mácula?

A “geração à rasca” merecia mais. E merecia melhor. E deveria ter procurado melhor aconselhamento. É que, por este caminho, tudo aponta para que continue, de futuro, ainda mais “à rasca”…

4 de março de 2011

PORTUGAL


Certo dia, num início de Primavera, o telefone tocou. Do outro lado estava Artur Portela, pedindo-me para fazer a apresentação, em Coimbra, do seu livro “História Fantástica de António Portugal”. Senti-me honrado com o repto. Desde os meus tempos de universitário que eu admirava Artur Portela e o seu pendor satírico. Para mim, ele era “A Funda”, esse título memorável, com base no qual foi feita a demolição de muitos dos aparatos senis do Estado Novo. Aceitei. Li o livro num sopro e fiz a apresentação que me era pedida na Casa da Cultura, em Coimbra, no já remoto passado de um 25 de Março de 2004. Creio ter tomado umas notas e improvisado a intervenção. Digo “creio”, porque nas gavetas domésticas nunca encontrei, em letra de forma, essas minhas palavras. A Prezada Amiga e Poeta Isabel Mendes Ferreira foi desenterrá-las à Internet, sem que eu suspeitasse que elas aí poderiam estar. Tais palavras, agora convertidas em texto, aqui ficam. Para ilustrarem duas leituras: a leitura de Portugal, feita por Artur Portela, e a releitura dialógica que a sua obra me permitiu realizar sobre os destinos da Pátria comum.

« Esta “História Fantástica de António Portugal” não é assim tão... fantástica. É apenas fantástica a metodologia adoptada, sendo mais uma história simbólica do que fantástica, na medida em que o simbolismo de uma figura que tem olhos verdes com reflexos rubros, anexado que está ao próprio país, vai, de algum modo, acompanhar todos os textos, desde o assassinato de Miguel Bombarda até aos momentos posteriores à nossa adesão ao espaço europeu. Se me é consentido, a primeira reflexão que eu queria fazer seria sobre o modo como certos autores, para ficarem mais próximos do povo que somos, acabam por se socorrer desta metodologia. Isto nos remete para uma questão: o que é um símbolo e de que modo funcionam os símbolos, sobretudo quando pretendem traduzir a verdade profunda de um povo e de um país. Eu penso que o simbolismo está acompanhado de uma certa perspectiva onírica. Abordamos a verdade de um país com os olhos do sonho e diz-nos Freud que a interpretação dos sonhos é uma interpretação que se faz através de processos típicos, como o processo de condensação. Isto é, um ir buscar, em momentos precisos, exactamente aquilo que nos foi definindo enquanto seres colectivos, enquanto colectividades. Os processos de condensar em momentos particularmente visíveis e em momentos dramáticos a verdade do nosso sentir e da nossa espontaneidade dão forma à metodologia seguida por Artur Portela nesta longa digressão que começa com o assassínio de Bombarda e que vai praticamente até aos dias de ontem. E não é por acaso que nesta peregrinação nos vão surgir os momentos mais densificados da História de Portugal, como por exemplo o regicídio ou a fuga da família real. Também aqui cabe aquele episódio, que é picaresco, um pouco humorístico, mas que define tão bem o espírito de um tempo, todo ele percorrido por tensões diversas, ou seja, aquela circunstância de, pelo facto de se ter soltado um disjuntor num eléctrico, Afonso Costa se ter atirado pela janela e ter partido uma perna. Como simbólico é o sofrimento português nas trincheiras da Flandres. Assim também o caso da "Noite Sangrenta" e do assassínio do António Granjo. Como é a reconstrução da figura de Sidónio Pais. Como é o advento de António Oliveira Salazar. Como é a Exposição do Mundo Português. Como é o modo como aborda os torcionários da DITA, que é a PIDE. Como são os massacres africanos. Como é o início da revolução de Abril. Como é o enfoque dado ao problema da nossa adesão ao espaço europeu. E o que se contém de extraordinário e de contraditório - porque o espelho da alma portuguesa é o de uma viva contradição – no que respeita às missões humanitárias portuguesas no exterior, as quais, não raro, muito pouco de humanitário contêm, servindo muito mais a causa da guerra do que a causa do humanitarismo e da paz. Finalmente, não podia deixar de me referir ao modo como esta abordagem se encerra: através de um julgamento feito a António Portugal, que é um “alter ego” do Autor.Não sei se estou a interpretar bem ; mas penso que este António Portugal não mantém com o autor o mesmo tipo de relação que podemos encontrar entre a figura do Zé Povinho e Rafael Bordalo Pinheiro. Bordalo Pinheiro constrói a figura do Zé Povinho como um “outro” , como algo que está para além dele, que é diferente, como uma entidade que densifica tudo aquilo que Bordalo Pinheiro não queria que Portugal fosse. Mas este António Portugal, o de Artur Portela, é uma figura que, ao contrário da figura do Zé Povinho, o aproxima do próprio criador. É como que um prolongamento, em certos casos com reticências, do seu próprio processo de criação. Mas estava eu a falar do julgamento a que é sujeito António Portugal que, como figura simbólica que é, e como alma portuguesa que traz, responde “sim” a todas as perguntas. O nosso “Portugalinho” responde que sim a todas as perguntas, sobretudo quando elas são feitas pela Autoridade. António Portugal é julgado pelos historiadores literários, homens de " história toda curta ".É uma abordagem extremamente irónica, extremamente humorística, sorridente, sem deixar, no entanto, de ser, nuns casos lírica, noutros casos intensamente dramática. Por exemplo, no momento em que Artur Portela pergunta " A que sabem os beijos de Genciana?" ( que é o mesmo que perguntar a que sabem os beijos de uma certa portugalidade afectiva, a que sabe Portugal, a que sabe o abraço que o povo português pode dar à sua terra, à sua gente) a pergunta encerra alguma amargura e dramatismo. Não posso deixar de ler uma passagem que é uma das leituras mais pertinentes, mais verdadeiras da nossa essência de portugalidade que alguma vez li: "Tanta súbita culpa, tão densa, tão ferozes estes brandos costumes, tão sempre o mesmo e tão de longe, tão antigo, tão familiar, tão hereditário, tão simultaneamente fantástico e real, tão matador, tão desinfiel, tão escarnecedor, tão maldizente, tão alongado amigo, tão amante, tão demandante, tão salgado, tão negreiro, tão roceiro, tão mineiro, tão mesticeiro, tão troca-voltas, tão apiratado, tão exilado, tão queimador, tão mirone de cadafalsos e de chãos salgados, tão enforcador e forcado, tão iluminado, tão importador, tão revolucionário, tão aventalado, tão mata-frades, tão rubro, tão verde, tão camionista de mortes, tão bombista de urinóis, tão amochado, tão clandestino, tão estátua de dor, tão polícia, tão cravista, tão polícia de polícias, tão ateador de fogos, tão defenestrador, tão entrado nos eixos, tão sacador de perdidos fundos, tão deseuropeu, tão linguista, tão papagaio, tão bom aluno, tão instalado, tão untador de mãos, tão jonglador de contabilidades, tão imprescritível, e assim imprescrita toda esta culpa. E depois quem, Portugal? Sim, mas e os beijos, que sabor? E depois que Portugal?" (pág.as 249-250) Acho que esta página deve ter sido escrita num valioso momento de raríssima, preciosa inspiração. Aliás, todo o livro está cheio desses momentos. Mas esta página é, para mim, antológica, porque simultaneamente nos dá a simbiose do que nós fomos e somos e continuamos a ser enquanto povo: uma combinatória de grandeza e da falta dela. Portugal e os portugueses nunca deixaram de ser isto, um povo que se lança para todos os desafios para depois, subitamente, de um modo um tanto espantado, verificar que perdeu tudo ou quase tudo. E que foi, por um instante, magnífico, brilhante, realizado no momento em que se sente na crista das coisas; só que depois, lentamente, há como que o refluxo das coisas, o refluxo dos entusiasmos, das esperanças, dos próprios símbolos. E Portugal fica confrontado consigo mesmo, fica com um nó na garganta. Este excelente romance é um pouco feito neste registo. Vê-se que Artur Portela é um português em Portugal, um português lúcido num tempo que exige cada vez mais lucidez, e que a relação que mantém com os diversos momentos da História Contemporânea de Portugal e a relação que mantém com o seu António Portugal é uma relação dupla, como se estivesse num permanente exercício de sonho acordado. É como se Portugal lhe chegasse cheio de perfume, de garra mas simultaneamente cheio de uma simbólica de finitude ou de quase finitude em que, apesar de tudo, se acredita. E é neste novelo de ser e não ser, neste magma de contradição, que eu vejo que a “História Fantástica de António Portugal” é a história de António Portugal vista na fantasia dos nossos sonhos e das nossas esperanças »

(Texto agora revisto e pouco corrigido)

2 de março de 2011

ELEGIA PARA UM FIM DE MUNDO


Escrevo-te a partir do século oitenta e cinco

E quero dizer-te que não te reconheço.

No teu tempo, o mundo era só um começo

...Ignorante das certidões em que me finco.

A voz de Homero já não chega a mim.

Ulisses não pisou a gruta do obscuro Polifemo

Nem singrou pelo mar, nem teve barca e remo

Nem sereias cantaram anunciando o fim.

Escrevo-te a partir do século oitenta e cinco

Na linguagem dos signos virtuais

Morreu Dante, Camões e todos os demais

E a Beleza abalou, partiu, fechou o trinco.

Eu próprio nem como homem me conheço

E neste corpo torcido trago a fogo escrito

O drama do que foi fome, guerra e grito

Do que ditou em mim a marca do destroço.

Sabes, eu sou o último dos homens da tua geração

O que terminou a hecatombe anunciada

O que da vida e da esperança fez o nada

O que foi o profeta da própria maldição.

Lanço esta carta ao mar, dentro do desespero

Neste sinal de alarme inútil e perverso

Cerca-me agora o silêncio do Universo

Quebrado a espaços por meu uivo fero.

Recomece então a Natureza ou Deus

O seu teimoso e incessante retomar

Possam novas alquimias renovar

Caminhos, outros homens, outros céus.