23 de novembro de 2007

( ? )

Gosto de pensar que um dia voltarei.
Gosto de pensar que quando morrer
(Daqui a dois ou três séculos vou morrer,
Podem crer ! E voltarei sedento e lento)
Serei um tapete de nuvens no fundo de mim.
Gosto de pensar que sou corpo imortal
Numa alma mortal parida em solilóquio.
Mas o que eu gosto mesmo de pensar
É que o meu tempo se distende como iô-iô
Para cima e para baixo do que sou.
Gosto de me pensar cogumelo em micélio
No meio de uma floresta verde e parva
Onde vagueia uma Branca de Neve
Vagamente prostituta que me enerva.
E hei-de ser também um vagalume
Portador do lume vago do que jamais será.
Mas o que gosto mais de pensar, como o mocho
Sábio da fábula de Esopo ou La Fontaine
É em ser eu próprio, no colo d’uma tipa
Que até pode ser a tal Marlene do Anjo Azul.
Pendem papagaios esparvoados e colados
Nas costas do Peter Pan
Nos braços do Sandokan
Nas coxas do Anjo Azul.
Tudo isto é grandioso. E taful .

12 de novembro de 2007

TIMOR-PAVOR


O poema que hoje aqui transcrevo é datado quanto à particularização dos eventos históricos que o fizeram nascer. Mas creio que o não é quanto à especial fereza do homúnculo em que poderemos transformar-nos, bastando para tal o império do ódio, a urgência da vingança, a exigência do interesse ou apenas o abandono ao nocturno magma dos nossos instintos mais reptilianos.

Não me peçam que escreva sobre Timor.
Dilacera-me escrever sobre Timor
Porque Timor é agora a Besta galopante,
O Mal infrene, o fétido bafo do Inferno.
Vexa-me falar de Timor porque Timor
É a espécie humana virada do avesso,
O outro lado do pesadelo que nos habita.

Não me peçam que diga sobre Timor
Uma só palavra murmurada
Um só e final som ciciado
Um único e vago suspiro.
Eu temo ser um Aitarak
À espera da oportunidade genocida.
Eles, os Aitarak, são mamíferos
E bípedes de imagem similar
À minha própria imagem.
Foram paridos como eu
Em gestação de nove meses.
Têm o polegar oponível
E a postura erecta
E tudo isto parece ser igual
Ao meu próprio polegar,
À minha própria postura.
Eles, os Aitarak, terão já tido
Doenças como algumas
Das que me fizeram sofrer
E mulheres como algumas
Das que me fizeram amar.
Olhando-me na vidraça
Eu me pergunto
Se o Homem abstracto,
Maravilha verbosa
De Platão e Kant,
De Rousseau e Nietzche,
De Santo Agostinho e Unamuno,
Não será no concreto
Um Aitarak, só um Aitarak
Não mais que um Aitarak
A que se juntou perfume,
Gravata e código civil.

É sobretudo esta suspeita
(A da espécie humana
Não ser mais do que um vómito
De infâmia, composta pelas fezes
Da mais pura perfídia) ,
É sobretudo esta dúvida
(A de não sermos todos senão
Homicidas a que faltou
Oportunidade de matar)
Que torna Timor
A suprema vergonha
De toda a raça humana de mortais.


Coimbra, 9 de Setembro de 1999

9 de novembro de 2007

CORPO E ALMA

Acabamos por não pensar muito nisso, é certo. Mas o existencialismo tem razão, quando nos declara que somos uma vida concreta antes de podermos ter a consciência de que também somos uma substância pensante, um cogito, tal como Descartes o quis definir. Foi esse o tal “erro de Descartes”, título de uma obra de António Damásio? Não sei. Quanto a mim, não basta a prova de que um ser humano, com uma cabeça trespassada e com zonas encefálicas lesadas perde por inteiro a consciência moral. É que entendo tão redutora a ideia de um primado da matéria sobre o espírito quanto a tese contrária. Parece-me, isso sim, que as manifestações materiais e as explicitações espirituais ganham invariavelmente, em momentos cruciais, em situações-limite, uma autonomia que nos leva a conhecermo-nos como se fossemos apenas matéria ou apenas espírito, conforme os casos em equação. Nos textos de Albert Camus, os seres humanos perseguem e prosseguem a existência como se a vida fosse um absurdo sem saída, como se as evidências físicas se esgotassem no incaracterístico, qualificação semelhante à das prescrições morais. Ou seja: é mais frequente do que parece que um homem ou uma mulher se enrolem totalmente numa das fracções da sua natureza, dita simbiótica. Um homem propõe-se viver e tem esperanças na escolha – é um espírito em livre golpe de asa e o corpo não é mais do que um acidente secundário. Um homem quer morrer e sente que a perseveração na existência é um absurdo – é um corpo que se afunda nos seus próprios limos, para quem a fenomenologia do espírito não é mais do que o anedotário do nada. Talvez que a maior servidão da antropologia ocidental repouse no princípio da razão suficiente, na aparente força de uma causalidade estrita, que pretende, a todo o custo, manter-nos, em todos os momentos e situações, prisioneiros de uma ficção: a de que temos de ser corpo e alma, em hierarquia conveniente, conforme as chamadas “provas evidentes” da “demonstração científica”.

5 de novembro de 2007

SACRALIZAÇÃO DO PODER

Qualquer manual de sociologia política nos garante que toda a sociedade organizada colhe a sua identidade a partir da instauração de um foco de Poder. O grupo reconhece a sua coerência a partir da sua anuência a uma proposta de legitimação que promana de um instituidor, ou seja, de um legitimador originário. É este contrato social que unifica a colectividade e se opõe a todas as tendências dispersivas que dentro dela possam manifestar-se. O cimento agregador da homogeneidade grupal resultará, portanto, da submissão de cada um ao conjunto das normas obrigatórias para todos. Mas o instituidor, proponente do contrato social, quebra esta regra da igualdade no próprio momento em que a propõe. Atentemos no facto da legitimidade do instituidor não ser colhida a partir do exterior, isto é, a partir da sua subordinação a uma proposta exógena, diferenciada de si mesmo, vista como outra, mas ser estruturada a partir do seu reduto interior, da sua vontade endógena, sentida como intrinsecamente sua. O Poder do instituidor assenta, portanto, na diferença, mesmo quando a sua intenção primordial proclama o propósito de aniquilar todas as diferenças individuais. O titular do Poder é encarado, portanto, como diferente. Ele furta-se aos próprios princípios de legitimação de que foi proponente. Na realidade, todos se submeteram à sua vontade e se moldaram aos seus pressupostos. A percepção deste estatuto de diferenciação e de excepcionalidade provoca nos demais um conjunto de reacções típicas de pasmo e de assombro. Esse titular ilegítimo da fundamentação social legitimadora – dizemos ilegítimo, porque se limitou, originalmente, a um exercício de auto-legitimação – , longe de ser punido pela sua diferença ostensiva, é compensado pela outorga e investidura de uma condição de superioridade. O colectivo, o todo tribal doravante homogéneo, reconhece-se unificado por um potente acto de vontade que o transcendeu e que se situou fora dele e para além dele. O significado de tudo isto é transparente: o Poder ganhou dimensões sacrais e expressões de religiosidade. O respeito, a mesura, o reverencial temor que o sagrado implica, sendo reconhecidos como potentes instrumentos de submissão social, fornecerão aos usufrutuários do Poder uma legitimação a posteriori indisputada e indiscutível.