26 de fevereiro de 2012

O RELVAS



Eu bem sei que o actual governo é constituído pelo supra-sumo do neoliberalismo “fashion”. Eles usam nos apêndices capilares a brilhantina “Troika”, nas axilas o desodorizante “Merkel”, nos pés o antimicótico “Sarkozy”, no olho do rabo o papel higiénico “Soberana Dívida”. E todos eles são irresistíveis, europeus até se dizer “basta!”, mundanos até ao suspiro orgiástico que clama “ai menino, que não posso mais!”. Mas, sendo todos e cada um repletos de “glamour” e de irresistível cheiro a “patchuly”, um deles sobre todos se destaca. Ele é o D’Artagnan dos três mosqueteiros, o Chico Fininho desta nova Cantareira, o Zorro desta pândega acampada, o Carlos Gardel deste tango pífio, o Marquês de Sade desta Gomorra decadente. Ele é – perfilem-se Cidadãos, apalpem-se Cidadãs ! – ele é O RELVAS. O Relvas está para a política como a herpes está para uma cópula mal dada. Declina a fama do governo? Os sinais de falta de tusa são por demais explícitos? Chama-se o Relvas-Viagra. Belém já nem sequer se tem nas canelas, o conselheiro-mor Ângelo, o Correia, resvala pelo espaldar de uma caquexia mais do que evidente? Oh Relvas, vem cá e besunta-me nas partes baixas com pó de cantáridas. E Ângelo, o Correia, com aquele fácies de “a-horse-is- a-horse-of –course-of –course”, soergue-se da nitreira das especulações financeiras semi-tóxicas e dá o que dá um intestino grosso depois de uma boa feijoada. Salva-se a Pátria da Dívida e enche-se de ventos malcheirosos a Bolsa da Pátria em dúvida. E o Relvas, aclamado pelos suspiros de todas as meretrizes do Cais do Sodré e de todas as coceiras do Bairro Alto, vai à TV, penteadinho “cumócaraças”, de falinhas mansas como o corno do dia, mas teso, muito teso e hirto como o espeque do Kilas, “o mau da fita”, e declara, impante, grande, perfumado e taxativo: “Carnaval? Nunca, nunca mais!”. E Lisboa – que digo eu? – e Portugal, desde o bairro da Porcalhota até aos confins de Alçaperna, repete, em eco de semi-cúpio, “Carnaval, Carnaval nunca mais, disse o Relvas”… Por mim, estou em crer que só uma sombra esfíngica e florentina assomará, nas entretelas do Relvas, capaz de lhe disputar o brilho, a glória, a Imortalidade, a Eternidade inerente ao “Triunfo dos Porcos”. E essa sombra poderá ser a do Portas do Eduardo VII. Mas garantem-me que ainda hoje, quando o mandarete de serviço bateu à porta do quarto do dito plural, pelo meio-dia de uma decepcionante jornada virginal, se ouviu um longo e plangente suspiro, logo seguido destas palavras, altamente enigmáticas (ou talvez não) : “Ora a minha vida! E não é que o Relvas nunca mais vem? Criado, criado, chama-me já um táxi! Sus ! Depressa! Com carácter de urgência! Tenho de seguir já para o Eduardo VII. É a hora dos taratas regimentais” … A verdade é que nunca se irá saber do “consumatum” das respectivas quecas. Mas sabe-se que fornicados, fornicados, ESTAMOS NÓS. E, a prazo, também o Relvas, se Deus Nosso Senhor for servido.

22 de fevereiro de 2012

A GUERRA DAS ÁGUAS



A hora que passa é gravíssima: eclodiu a “guerra das águas” na vetusta e prestimosa Assembleia da República. O Partido Socialista andava, desde há muito, preocupado com as sumptuárias despesas da classe política. Neste particular, ele poderia iniciar a sua acção morigeradora pelos vencimentos de nababo dos Administradores públicos, pelos esbanjamentos das parcerias público-privadas, pelas inconcebíveis derrapagens das obras públicas oficiais, que são pagas três, quatro e mais vezes sobre a orçamentação original, pelos gastos dessas Instituições póstumas e fossilizadas que se identificam com os ex-Presidentes da República e com os ex-Presidentes da Assembleia da República, os quais, mesmo em pousio, salvaguardam o direito a automóvel fornecido e pago pelo Erário, e também a motoristas, e igualmente a um secretariado, e ainda a funcionários administrativos, e sei lá eu a mais quê. O Partido Socialista poderia ir por aqui e por mais uma miríade de temas, justificadores do facto indesmentível de existir numa das mais débeis economias da Europa uma das mais presunçosas e delapidadoras classes políticas desse mesmo espaço. Mas não. Por algum lado teria de se começar. E o Partido do Seguro escolheu, seguríssimo, as águas consumidas pelos Muito Ilustres e sedentos Deputados de ambos os sexos. Ora essa, então era lá possível que se preferisse a burguesíssima água mineral à popular e proletária água da torneira !?? E foi então que surgiu a proposta. E, na sequência da proposta, romperam as hostilidades. De um lado, as velhinhas torneiras de S. Bento, que debitaram o honesto líquido em que lavaram as mãos, talvez, o José Estêvão, o Duque de Ávila, o Marquês de Saldanha, o António José de Almeida, o Alves Martins, Bispo de Viseu, o Conselheiro Coiso, primo do Acácio. Do outro lado, alinhadas e refulgentes no seu plástico acabado de encher, as garrafinhas de Fastio, do Vidago, das Pedras Salgadas, da Serra do Açor, dos cumes da Estrela, das nascentes de Penacova. Os exércitos, de dentes a ranger, estiveram ao ponto de se engalfinhar quando o Lello apareceu e obtemperou: “A proposta é uma insensatez. Seria preciso que se comprassem copos e jarros, muitos copos e abundantíssimos jarros; e que houvesse um “staff” especializado na limpeza dos ditos copos e dos aludidos jarros, todas as vezes em que as gargantas dos Senhores e das Senhoras Deputadas já estivessem completamente regadas pelo líquido elemento”. E Lello acrescentou : “ Só na compra de jarros gastar-se-ia uma pequena fortuna, algo a rondar os 4.500 ou 5.000 euros”. Aí, as torneiras de S. Bento irritaram-se deveras e replicaram: “Pois olhe, nós, que até somos de cobre, já não vemos “Solarine” há mais de três gerações e nem sequer reivindicamos esse elementar direito de sobrevivência que consiste em nos substituírem a tubagem ”. Mas o Lello trazia as continhas feitas, tim-tim-por-tim-tim. E rugiu, solene: - “O consumo de água mineral é trinta vezes mais barato do que a ingurgitação da água da torneira”.
Parece que o Partido Socialista não irá dar-se por vencido. Aguardam-se, temerosos, feros, rugidores, os próximos episódios. Parece que, por solidariedade, os autoclismos da Assembleia da República entrarão todos em greve. E ainda não se sabe como o Lello irá descalçar esta bota. O que consta é que reforçou a sua encomenda de água de colónia. Fez bem.

17 de fevereiro de 2012

ANO DA GRAÇA DE 1930



Eu precisava de lhe dizer duas ou três coisas. É uma forma de dizer; se calhar, precisava de lhe dizer quinhentas coisas, ou quinhentas mil, sei lá. O que se passa é que, mesmo querendo falar-lhe, eu embato no meu mundo, sabe? Fico por lá, tão soberanamente isolado como um caroço num pêssego antes de ser comido. Se me sinto bem? Mas claro que me sinto bem, neste ano da graça ( ou será da desgraça?) de 1930. Foi ontem, não foi? A “coisa” começou em 1914 e só parou em 1918. Era muito interessante observar o mundo a partir das trincheiras, se não fossem os piolhos, a água chilra, a caganeira e as arengas dos oficiais superiores. Por exemplo, o meu Amigo já observou a “terra de ninguém” antes de um bombardeamento? Aquilo é como a lua, cheia de crateras em sítios errados. Mas o que impressiona mais é o silêncio, um silêncio solene, hirto. Se um silêncio pode ser hirto? Claro que sim. Homem, quero apenas significar-lhe que há silêncios de uma rigidez impressionante. Isto, bem entendido, antes dos bombardeamentos. Quando estes se iniciam, se formos apanhados no meio da “terra de ninguém”, aconselham os manuais a correr para as crateras já feitas. É uma espécie de cálculo de probabilidades, mas sem cálculo. Parece que as bombas nunca rebentam no mesmo sítio. Claro que isto já não se verifica com mortos. Como é que eu sei? Ora essa, foi só olhar… Não está a perceber? Eu explico: o Fadigas (sabe quem era o Fadigas aquele gajo de Faro que dormia por cima do meu beliche e a quem eu dizia “olha lá, se tiveres muito medo, não me mijes em cima”), bem, o Fadigas, numa surtida, foi cortado ao meio por um estilhaço, a menos de meio da “terra de ninguém”; nem chegou a gritar. Teve uma morte santa. Eu ia perto dele e só ouvi uma chiadeira breve, um som parecido com o de uns travões de automóvel em emergência. Depois olhei e lá estava o tronco dele com um buraco do tamanho de dois punhos. Pois bem, eu e mais uns tantos regressàmos à trincheira quase surdos, sim, mas ilesos. Eu não perdi o sentido do sítio onde o Fadigas tinha sido ceifado. Decorei os relevos do terreno, entende? A verdade é que no bombardeamento seguinte, eu vi umas pernas serem projectadas a uma altura de uns três ou mais metros. Só podiam ser as do Fadigas. Por isso é que eu digo: essa coisa de escolhermos uma cratera para safarmos o “coirão” pode funcionar para vivos. Para mortos, não. Caso contrário, as pernas do Fadigas não tinham voado uma data de metros. Memórias do diabo! Mas, olhe, há um consolo que eu e os poucos que escaparam, mesmo gazeados, não poderemos deixar de sentir. A Europa aprendeu. Vai ver que nunca mais tornará a haver uma guerra mundial. Isto lhe digo eu, à fé de quem sou, neste ano da graça ( é da graça, sem dúvida) de 1930.

13 de fevereiro de 2012

O QUE SOBRA



Do que vai do útero da Terra ao pináculo do Sol,
Nada te digo. Prefiro sepultar o que pressinto.
Do que fica na mesa do festim, depois da boda,
Nada te falarei. Prefiro ouvir a solidão faminta.
Do que tenho na mão obstinadamente fechada,
Nada te entregarei. Prefiro esta secura na jornada.
E contudo, tudo, mas mesmo tudo me poderás pedir
Se souberes soletrar o que sobra de mim depois do mal.

12 de fevereiro de 2012

AMEDEO MODIGLIANI




Sim, era ele que pintava
Mulheres fusiformes, ovaladas
Em tons de ocre e gestos-arte-nova
Era ele que lhes depunha nos olhos
Uma ternura do não-sei-quê
E foi ainda ele que as vestiu de vento
Mulheres-brisa, enigmáticas, quase diria
Sem lamento, se não fosse para evitar a rima.
Sim, foi ainda ele que lhes colocou
Na altura das coxas meias de seda
E lhes deu seduções de cores roxas
Mas retiro já destes versos tal paleta
Só para evitar a rima. Amadeu se chamava
Como eu e como Mozart. Mas comigo não se vê
Cavalete de apoio. Com Mozart, sim.
Ele pintava notas com pincel de tintas
Mergulhadas em soluto de Fitzgerald.
Comigo não te safas, pá !
Deste-me um poema
E mal não está (digo eu,
Rendido assim á rima desde já ) …

7 de fevereiro de 2012

À MEMÓRIA DE CHARLES DICKENS E DA SENHORA MINHA MÃE




Correm hoje duzentos anos sobre a morte de Charles Dickens. Foram raros os rapazes da minha geração que o não leram, quer em edições juvenis condensadas, quer em traduções integrais, que no meu tempo de "menino e moço" traziam a chancela das "Edições Romano Torres". Pela mão da minha saudosa Mãe, ao tempo professora de língua inglesa do Colégio de S. Tomás de Aquino, em S. Pedro do Sul, eu comecei pelo "Um Conto de Natal", passei às "Grandes Esperanças", aventurei-me depois pelas "Aventuras do Senhor Pickwick" e desemboquei finalmente no "Oliver Twist" e num dos meus livros mais acarinhados, um daqueles livros aos quais murmuramos, como a uma primeira namorada - "isto é para a vida toda" . Refiro-me a "David Cooperfield". Claro que, tal como nos arroubos românticos juvenis, Charles Dickens iria depois sofrer concorrências poderosas, como as de um Thomas Mann, de um Hemingway ou até de um Steinbeck. Mas o certo é que persistiu sempre, no meu imaginário, aquele "smog" londrino, por onde perpassavam velhos abutres como Fagin, famílias tão singulares como a dos Chuzzlewitt, cocheiros cabeceantes de sono e de emanações etílicas, industriais impantes de Poder, mas de coração razoavelmente empedernido, governantas frustradas e com um lastro de tirania na alma, operários famélicos com residência fixa nos "slums" dos "East Ends" e todas as contradições inerentes a processos de imperialismo colonialista, que atingiram o seu cúmulo nos tempos dessa espécie de divindade tutelar, puritana e orgulhosa: a Rainha Vitória. Claro que, nessas alturas, eu me ficava pelo entrecho mais imediato e perceptível, ou seja, pelo drama dos meninos órfãos, pelos harpejos das meninas casadoiras e pelas garras vorazes dos prestamistas que iam desfilando, pávidos e arteiros, pelas palavras mágicas de Dickens. A minha Mãe, essa, perguntava sempre : "Leste tudo? De que gostaste mais ? Tiraste proveito ?". E eu dizia-lhe que sim a tudo, quanto mais não fosse para que ela me deixasse voltar a escolher um novo volume, no quiosque improvisado da Feira de S. Mateus, em Viseu, onde em Setembro eu sabia ser credor de três volumes, pagos pelo Poder paternal, que também esportulava o gasto das farturas e da Laranjina C. E foi assim que Dickens ficou em mim, impregnando-me a alma e a sensibilidade até aos dias de hoje. Depois vim a aprender outras coisas, que também em Dickens se continham, mas que já exigiam um segundo estrato de compreensão, para o qual se tornavam necessários os instrumentos fornecidos pela História e pela Filosofia. Apercebo-me hoje que Dickens abriu as portas da alma humana, mas só entreabriu as janelas da dignidade humana, pois foi - como, de resto, talvez não pudesse deixar de ter sido, dada a natureza do seu tempo - um coração mais compassivo do que revoltado, num momento da evolução da Humanidade que já requeria denúncias frontais e não tanto súplicas evangélicas. Mas se hoje eu ouvir, descendo do majestoso silêncio dos céus, uma voz que meigamente me pergunta "Leste tudo? De que gostaste mais? Tiraste proveito?" eu irei responder assim, com os olhos marejados de lágrimas (como Dickens) : "Sim, Mãe, li tudo e de tudo tirei proveito; mas, sabes, de quem sempre e sempre gostei mais, foi de ti".

4 de fevereiro de 2012

DESINFECTEM-SE !



O primeiro-ministro em funções - e último em decência - acaba de tomar uma decisão que lhe vai a preceito: negar a tolerância de ponto na terça-feira de Carnaval. Com isto, o dito herbívoro só está a ser consequente. Ele não é tipo de Carnavais. Prefere a sexta-feira de cinzas ... Sente-se melhor em ambientes mortuários, soturnos, de preferência com cheiro a mofo e teias de aranha pelos cantos. O fulano é uma mortificação viva. Compraz-se em declarar que somos pobres e pobres iremos ficar. Há nele um casco de sado-masoquismo invencível e um estranho gozo com o sofrimento dos sofredores. Mas, façamos-lhe justiça, neste particular ele é um colosso de constância, um avatar de coerência. Do mesmo modo que certa morbidez temperamental só atinge orgasmos com auto-flagelações ou com hetero-punições gratuitas, assim este saltitão só consuma os graus de satisfação com que sonha quando reduz à miséria os velhos, vergasta os fracos e condena à mendicidade os valetudinários. Este gajo não é um ministro jovem : é uma múmia saída das alfurjas de um culto nocturno qualquer. E como não nos é consentido saber até que ponto o espécime irá chegar, neste momento tudo deve ser consentido à Cidadania, na exploração do quadro das possibilidades legais. Deixámos entrar em Portugal a pestilência do que é infecto. Haja ao menos a coragem de lavar as mãos. Coisa que não chega. A seguir, será necessário desinfectá-las !