30 de abril de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XVII

Aspecto actual da Sociedade de Geografia de Lisboa

XVII - O FRUSTRADO IMPERIALISMO PORTUGUÊS

Primeiro, foi a África a atemorizar os colonizadores costeiros: era negra e ignota, exalando eflúvios de desconhecido e de intimidação. Depois, o desafio da sua obscura identidade levou até lá aventureiros de origens desvairadas: garimpeiros, geógrafos, botânicos, geólogos, exploradores de ambições plurais. E toda esta casta de gente estava disposta a perder a própria alma, desde que ali ganhasse a descoberta do que, até então, se esquivava à dádiva do exposto e do entregue Primeiro, foi o susto de irromper em clareiras inesperadas, como se do chão se desprendesse o aroma activo da rejeição e da iminência das feras. Depois sobreveio o apelo à intrepidez individual, ao desafio lançado aos próprios limites da integridade. Tudo isto era relativamente antigo – mas também relativamente politizado, pois que a Europa já há muito havia ultrapassado a casta idade da inocência … Aos jornais e revistas de referência da Grã-Bretanha começaram a chegar, entre 1840 e 1873, as narrativas circunstanciadas das deambulações do missionário inglês David Livingstone, que fizera o reconhecimento do rio Zambeze, da lago Niassa, dos territórios do Tanganica e que se abalançara a demandar as nascentes do Congo. Em 1867, inesperadamente, a Europa foi informada de que a região de Kimberley, no meridião africano, se fazia notar pela descoberta das suas imensas jazidas diamantíferas. Os testemunhos vertidos em ouvidos profanos pelo boca-a-boca dos intrépidos regressados, somados às novidades que se foram escrevendo em revistas universitárias ou de simples divulgação, contribuíram para a lenta mudança da imagem do continente africano. A África deixou de ser identificada com o exótico continente dos miasmas doentios, com o ninho da fauna desconhecida e potencialmente perigosa, com o azulejo pitoresco de etnias locais extravagantes. Passou a ser vista, pelo contrário, como o equivalente da Terra Prometida, pronta a resgatar a angústia  recessiva e paralisada do modo europeu de produção capitalista.

E Portugal? Qual era a sua resposta às novas condições e apetites da vocação colonialista? O país herdara do passado a “doutrina do pacto ou sistema colonial”. Tal doutrina era praticada por todas as potências colonialistas ou colonizadoras do tempo. Reservava-se para as metrópoles, nos seus termos, o exclusivo da transformação das matérias-primas coloniais. Isto significava que as colónias não poderiam proceder à sua industrialização, transformando os próprios recursos. Esse benefício ficava reservado, em exclusivo, para as metrópoles. A vocação da economia autóctone ficaria prisioneira de uma recolecção puramente agrária. Mas a verdade é que Portugal revogara em 1808, de forma explícita, esta doutrina. A transferência da Corte para o Rio de Janeiro, sob o pavor da invasão do exército de Junot, na primeira acometida francesa, saldara-se por uma abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. Se antes as frotas mercantes oriundas do estrangeiro tinham obrigatoriamente de aportar a Lisboa, para aí realizarem as suas cargas e descargas, a partir de então passaram a rumar aos portos brasileiros, concluindo aí os seus negócios. Esta subalternização metropolitana agravara-se em 1811, quando se franquearam todos os portos ultramarinos ao comércio internacional. Porém, as sucessivas governações portuguesas não fomentaram a fixação de contingentes demográficos lusos no interior das possessões coloniais. A revolução de Setembro de 1836, através de Sá da Bandeira, procurou definir as regras gerais de um futuro regime de ocupação. Mas o setembrismo foi um fogo-fátuo. E tudo continuou entregue ao santo remanso da sonolência. Pois não é espantoso que um país de tradição colonialista, iniciada nos finais do século XV, só em 1875 tenha criado, em Lisboa, a sua Sociedade de Geografia?

Portugal secundou como pôde a “corrida a África” que as restantes potências europeias desencadearam, logo que se aperceberam do manancial de riquezas que o continente negro albergava no seu seio. Mas podia menos do que qualquer uma das restantes. Por isso, o nosso imperialismo quase não merece tal nome. Toda a tradição lusitana de transferência de contingentes demográficos se fazia através da travessia do Atlântico, fixando-se no Brasil, em termos permanentes ou episódicos. E, por outro lado, as finanças públicas permaneciam, como sempre, anémicas e desequilibradas. Era impossível, porém, ignorar o desafio. Por isso, a Sociedade de Geografia, sob o comando de Luciano Cordeiro, irá organizar as expedições ultramarinas de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, entre 1877 e 1878. A expedição de Serpa Pinto teve o condão de demonstrar que entre Angola e Moçambique existiam linhas de continuidade que possibilitavam sonhos de ampliação territorial. Com base nisto iria nascer um sonho cor-de-rosa. Na altura ninguém poderia saber que esse sonho viria a transformar-se num dos nossos mais angustiantes pesadelos.    

26 de abril de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XVI

XVI - GÉNESE DO IMPERIALISMO EUROPEU

A génese do imperialismo europeu marcou profundamente a propaganda republicana. É indispensável que se compreendam as motivações de uma Europa em crise de crescimento industrial. Evite-se, acima de tudo, a leitura preconceituosa ou anacrónica do expansionismo colonialista. O Antigo Regime só foi vencido porque os estratos burgueses ascendentes, medindo as forças próprias e as alheias, decidiram que era chegado o momento de render a coligação aristocrático-clerical no varandim da hegemonia social. Isto foi acompanhado de uma nova forma de produção de bens materiais que contrariou a lógica agrária e substituiu o artesanato tradicional pela manufactura, primeiro, e pela imaginosa generalização da maquinaria industrial, logo de seguida. Esta industrialização era inevitável – e é isto que as diversas cartilhas do mecanicismo histórico se recusam a entender. A população europeia crescia sem retorno desde os meados do século XVIII. Se os mesteirais da Idade Média, com o seu culto canónico da obra-prima e a sua correlativa lentidão laboral, podiam corresponder às exigências de vida de populações estacionárias ou até regressivas (lembremos a calamidade da peste negra), o seu ritmo produtivo era impotente para satisfazer as necessidades de vastas massas populacionais, com mais dilatadas e sustentadas esperanças de vida. Se a industrialização foi o patamar burguês de uma inovadora iniciativa económica, ela não deixou de ser também – e talvez sobretudo – a única possibilidade que se colocava ao sistema produtivo para alimentar, vestir e calçar uma cada vez mais incontável legião de carenciados (hoje chamamos-lhes consumidores). A Europa desenvolveu o seu potencial mecânico até ao nível da saturação. Queremos com isto dizer que a produção industrial, impulsionada pelo incentivo do lucro e pela justificação da utilidade real, haveria de reconhecer o momento em que só o primeiro subsistia e em que o segundo se evolara. A fábrica, em sentido genérico, inundara o mercado tão copiosamente que este deixaria de comprar as suas mercadorias. O problema que então se colocou foi este: como continuar a manter os níveis económicos e as expectações dos seus agentes?

A Europa olhou então, uma vez mais, desde o tempo das grandes descobertas marítimas, para além de si mesma. Excedentária em mão de obra e em produtos acabados, traçou a estratégia de exportar para mundos desertificados ou semi-vazios o que nela própria se revelava sobrante. As duas Américas, as ignotas paragens da Austrália e da Nova Zelândia, assim como a enigmática África, poderiam ser a alternativa de escoamento das gentes sem trabalho e das mercadorias por vender. Foi assim que nasceram outras civilizações industriais, geograficamente muito remotas da matriz europeia, mas incontestavelmente marcadas pelas suas virtudes e estigmas.

Desde a primeira descoberta do seu imenso perfil, a África foi pouco mais do que uma promessa adiada. Os colonizadores primitivos – espanhóis, britânicos, holandeses, portugueses – assumiram perante ela uma postura de desconfiança. Terra de escuridões pigmentares, de palustres sezões, de orografias e hidrografias simplesmente supostas, a África era demandada por uma navegação de cabotagem, sem a pretensão de lhe explorar a interioridade e de lhe desvelar os íntimos mistérios. Trocava-se, junto à costa, o marfim dos elefantes por panos coloridos ou por garrafas de aguardente. O café em grão era descarregado nos porões por negros violentados pelo jugo do soba ou pela brutalidade do mareante cúpido. Esses carregadores não raramente foram associados à própria carga como escravos, sem que lhes fosse respeitado o querer ou salvaguardado o arbítrio. Portugal não diferiu deste modelo. A África começou por ser, para os nossos, apenas uma costa, uma fímbria de areia ou uma escarpa mais agreste, onde os nautas marcavam a sua passagem através das inscrições de Ielala ou dos padrões encimados pela cruz de Cristo – de um Cristo indiferente, afinal, à sorte dos gentios acorrentados. Mas a imagem africana iria mudar significativamente a partir de cerca de 1870. Passou a ser mais amada pelos que aí aportaram? Não. Passou simplesmente a ser mais cobiçada por aqueles que a viriam, pouco depois, a violar selvaticamente, em nome do que chamavam … Civilização.    

16 de abril de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XV


XV - RODRIGUES DE FREITAS, PRIMEIRO DEPUTADO DA REPÚBLICA

Homem franzino, de estatura meã, com um rosto em que se distinguia uma testa alta, uns olhos bem rasgados, perscrutadores, e um farto bigode romântico, de longas guias, extravasando as comissuras da boca, assim foi fisicamente José Joaquim Rodrigues de Freitas, o primeiro deputado republicano que se fez escutar em plena Câmara Baixa da monarquia constitucional portuguesa. Homem do Porto, tão profunda e afectivamente identificado com o pulsar da sua cidade que todos o designavam por Freitinhas, símbolo de honradez, rectidão e desinteresse no serviço de representação em que se viu investido, Rodrigues de Freitas foi uma espécie de Galaaz idealista e generoso. Chegou à convicção republicana através da percepção autêntica da sua bela alma de patriota. Militou durante anos no seio do Partido Histórico, que afivelara a pretensão, em certo momento, de representar a tendência mais inovadora do liberalismo monárquico. A prova dos factos, a lenta necrose do tecido social e a análise dos comportamentos das figuras do Poder levou-o a dissentir da peleja que travava. Não o fez, porém, sem aviso prévio. Por isso o veremos, altaneiro na sua caracterial humildade, a proferir em plena Câmara dos Deputados, em 1874, um discurso memorável, no qual sustentou a superioridade do regime republicano sobre o monárquico.

Tirara um curso brilhantíssimo, de engenharia de pontes e estradas, na Academia Politécnica do Porto. Aí coleccionou uma tal profusão de prémios académicos, que logo então se desenhou o seu futuro de pedagogo e lente da mesma escola. Interessou-se também pela Ciência Política e pela Economia, escrevendo todo um conjunto de bem fundadas considerações sobre estes objectos da sua curiosidade intelectual. Assim surgiram obras como as Breves reflexões sobre a questão bancária (1864) e a Crise monetária e política de 1876 – causas e remédios. Mas foi nos discursos parlamentares que deixou o selo mais evidente da sua competência e seriedade. Eram alocuções muito moderadas, embora inflexivelmente denunciadoras dos malefícios causados ao país. E eram também peças que mantinham afinidades com a mentalidade científica, tanto pelo seu cuidado demonstrativo como por certo escrúpulo de rejeição para com a retórica empolada e o verbalismo estéril. Foi assim que Rodrigues de Freitas ganhou o respeito e a estima dos próprios adversários políticos.

O primeiro deputado republicano da história portuguesa candidatou-se pelo Porto, nas eleições de Outubro de 1878, e, embora tivesse havido outras candidaturas da mesma área ideológica, só ele acabaria por ser eleito. Nesta disputa, o governo, procurando simular algum pluralismo, patrocinara discretamente em Lisboa a candidatura republicana de José Elias Garcia. O único resultado visível que tal expediente alcançou foi o da cisão que desde logo se tornou explícita no interior do Centro Republicano Democrático de Lisboa, através da demarcação indignada de personalidades que interpretaram este patrocínio governamental como uma intolerável intromissão e uma vergonhosa cedência. Os dois restantes candidatos republicanos – Teófilo Braga pelo círculo 94 e Manuel de Arriaga pelo círculo 96 – não obtiveram sufrágios suficientes para a eleição.

O terceiro quartel do século XIX trouxera ao país um arejo de modernização evidente, mas alcançada através do crescimento da dívida externa. Ultrapassadas as convulsões internacionais de 1870 e de 1871, a Europa entrara em bonançoso pousio, seguindo-lhe Portugal o exemplo. Este abrandamento de tensões traduziu-se, entre nós, por um clima de tolerância em relação às organizações e instituições de oposição. Por isso, Rodrigues de Freitas não deixou de saudar, num dos seus discursos, o bom senso e o espírito de tolerância com que as regiões do Poder tratavam os centros republicanos. Por outro lado, este clima de franco pacifismo não apenas convinha a um movimento republicano que apenas ganhava expressão nas grandes cidades, como ainda coincidia com o significado do historicismo positivista. Os adeptos do positivismo entendiam que o desenvolvimento histórico transitava necessariamente por estádios de evolução que haveriam de transportar as colectividades das iniciais instituições “teocráticas” às finais instituições “científicas”, através da mediação intermédia e provisória das instituições liberais, tidas como “metafísicas”. Assim sendo, não subsistiam razões para estratégias de revolução ou de confronto. Tudo se jogava no campo da conversão pedagógica das mentalidades. O bom republicano teria apenas de difundir aos ignaros a sua Verdade, aguardando tranquilamente que o Tempo cumprisse a sua promessa, fazendo cair na mão expectante dos republicanos o fruto, finalmente maduro, da República sonhada. José Joaquim Rodrigues de Freitas foi o exemplo mais acabado desta leitura da realidade. Conciliador mas também firme, dialogante mas também afirmativo, justo, impoluto e humanista, ele foi decerto o grão-paladino dessa Távola Redonda republicana, vivendo ainda o sonho ingénuo dos começos.  

 

10 de abril de 2009

VOGAR NA MEDIOCRIDADE

Nota : Este texto, pelo pequeno porte democrático do governante visado, NÃO FAZ PARTE  do "MEMORIAL  REPUBLICANO"

Há momentos, na vida de um Cidadão, em que é necessário vir à ribalta da opinião pública fazer uma pergunta crucial, assim expressa : mas o que é isto? Senhores do Poder, que lá do vosso Império (como diria o poeta Aleixo) tendes o mundo na mão ( o pequeníssimo mundo português, na vossa pequena e valetudinária mão), pedimos o obséquio de nos dizerem, claramente e sem sofismas, esta coisa elementar: para onde nos levais? Peremptoriamente, o que é isto?

Primeiro foi a historieta do vosso moleque que se atreveu a qualificar o professorado secundário como um bando de vadios e de absentistas a quem é necessário deslombar, talvez com o mesmo caceteirismo político com que um outro vosso moleque declara que o necessário é “malhar” nos oponentes políticos. Depois é a invasão de sindicatos por sicários policiais, com o propósito de apurar quem vai ou quem não vai a manifestações sindicais. Na mesma linha, é a história lamentável do funcionário que comete o crime de lesa-majestade de contar no serviço, entre amigos de laracha, uma anedota inócua sobre Sua Alteza o Senhor Primeiro Ministro e que se vê afastado da função, ameaçado de ostracismo, remetido a uma prateleira secundária, como se fosse gafo ou maldito, à boa maneira medieval. Mas que é isto?

E como se tudo isto fosse negligenciável, como se tudo isto fosse um episódio de diversão, como se tudo isto não contasse rigorosamente nada para a caracterização de um País adulto, senhor de si, medularmente democrático e progressivo, chega-nos agora essa história bufa e achatada de uma longínqua Loja do Cidadão (oh, céus!, vede bem, DO CIDADÃO), onde as Senhoras funcionárias, por despacho de Sua Alteza Sócrates ou do Conselheiro Acácio que o representa, não podem usar, em serviço, gangas, decotes, perfumes, minissaias e talvez também, por arrastamento, símbolos da Playboy. Ou seja: os serventuários de Sócrates converteram-se em padrecas frustrados, em polícias farejantes da Decência Pública, em seminaristas sexualmente carenciados, em vigilantes da “gurka” socrática, em comissionistas redutores da coxa ao léu e da ganga proletária. Mas que é isto?

E se eu dissesse a Sua Alteza Ministerial Socrática que me chateiam muitíssimo as suas gâmbias, pouco musculadas e ridículas, quando ele faz a cena hilariante do atleta, em correria esbofada na Meia-Légua da Ponte 25 de Abril, nos quinhentos metros de Pequim, nos duzentos e cinquenta metros de Londres, nos cinquenta metros de Cabo Verde? Se eu lhe dissesse – e comigo muitos concidadãos deste Portugal – que a revelação explícita das seus peludos apêndices inferiores é, para nós, um crime lesivo do bom-senso, do bom-gosto, do atletismo e do decoro católico? Seria que um membro da sua “nomenklatura” – talvez o tal “malhador” do vira minhoto – lhe iria transmitir o ridículo sem remédio dessa encenação de atleta falido e pseudo-modernaço, incapaz do atingir os mínimos da credibilidade atlética e da consistência político-olímpica?

Entendamo-nos: por que razão haverá de ser mais indecorosa a explicitação de um bom palmo de coxa feminina numa Loja do Cidadão do que a implicitação de um mau palmo de coxa primo-ministerial, para além do mais, anémica, a correr como um doido, em nome de Portugal, pelas ruas das principais cidades deste nosso humano Cosmos? Estão também proibidos os perfumes e as gangas. O Legislador prefere, em nome do abrutalhado Zé Povinho bordaliano e do seu representante socrático, o fedor “construtivo” da sudação espontânea, o mau cheiro irreprimível do funcionário público com o banho por tomar, a excitação pituitária do sovaquinho em crise de asseio. E que dizer das gangas? As gangas dos operários, dos estudantes, até mesmo dos burgueses citadinos descontraídos? Horror, horror! O nosso Primeiro – ou quem galhardamente o representa – prefere o calção de látex, preferencialmente de boa marca, com o logótipo (eventualmente) da Universidade onde o nosso Engenheiro-de-obra-feita se formou, deformou ou conformou. Talvez seja uma forma de propagandear a decência, a lusa capacidade do “desenrasca” e sobretudo a submissão a poderes intelectuais de bom quilate.

É isto um governo? É isto um País? É isto uma Colectividade virada ao futuro? É isto um projecto de vida?

Temos problemas de formação, problemas de educação, problemas de saúde, problemas de emprego, problemas de economia, problemas de habitação, problemas de segurança, problemas de burocracia, problemas de justiça. Mas agora, alguém com poderes de decisão entendeu juntar ao sudário das insuficiências deste pobre e miserando Portugal mais uns tantos problemas: o das gangas “ganzadas”,o das coxas as léu (com inclusão das de Mister Sócrates, por sinal inestéticas e derreadas), o dos decotes superlativos (não costuma correr em tronco nu, Senhor Primeiro? ), o dos perfumes inebriantes (será que alguém gosta de cheirar a esterqueira?).

E assim vogamos, vergados ao primado da mediocridade. 

7 de abril de 2009

MEMORIAL REPUBLICANO XIV

Augusto Comte, fundador da filosofia positivista

XIV - O POSITIVISMO, FILOSOFIA DO REPUBLICANISMO

A geração republicana que desenvolveu entre nós a sua propaganda, entre 1870 e 1890, reclamou-se adepta da corrente filosófica do positivismo. Esta filosofia, concebida e fundamentada especialmente por dois estudiosos franceses, Augusto Comte e Emílio Littré, difundiu-se com celeridade na Europa, a partir dos meados do século XIX. Correspondia ela ao acelerado desenvolvimento das “ciências de rigor”, desde a Física à Biologia, desde a Química à Medicina. O positivismo valorizava um saber construído sobre os dados dos sentidos, desconfiava das grandes hipóteses teóricas não verificadas e pretendia introduzir na gestão e administração da sociedade um conjunto de processos de investigação e análise tão exactos como os que haviam permitido, até então, o espantoso progresso dos conhecimentos científicos e das correspondentes aplicações técnicas.

Poderia a evolução histórica revelar as suas leis e princípios determinativos? A sucessão dos regimes político-sociais obedeceria a implacáveis e ignorados processos de sucessão? Estariam as colectividades sujeitas a ritmos de desenvolvimento que pudessem ser previsíveis e facilmente diagnosticáveis? Existiriam instituições, poderes, tipos de comando e modalidades de hierarquia cuja vigência pudesse ser exclusivamente reportada a fases históricas características, entrando em agonia a partir do momento em que o tempo desvanecesse a sua temporal justificação? Entre todas as particularizações do positivismo,  uma houve que fascinou verdadeiramente os nossos militantes republicanos, sobretudo os que se manifestaram antes do Ultimato inglês. Homens como Júlio de Matos, Teófilo Braga, Alexandre da Conceição, Alves da Veiga, Consiglieri Pedroso, Sebastião de Magalhães Lima ou Ramalho Ortigão (o Ramalho dos inícios dos anos 80 e não aquele que haveria de abjurar, mais tarde, do republicanismo programático), acreditaram que Augusto Comte descobrira a verdadeira e única lei do desenvolvimento social. A “lei dos três estados” não se limitava a aparecer como uma entre várias abordagens da historicidade, como uma entre diversas filosofias da história. Esta plêiade aceitou que o melhor do conhecimento sociológico repousava nessa explicação normativa que ilustrava a passagem das teocracias aos regimes demo-liberais e destes aos futuros e definitivos regimes “científicos”.

Galileu descobrira as leis do movimento dos corpos físicos em queda livre? Decerto. Mas também Comte desvelara as leis da mutação social, agindo invariavelmente em todos os quadros históricos, caracterizadores da “marcha das civilizações”. Comte era o Galileu dos movimentos colectivos, aplicando o seu pragmatismo demonstrativo ao último continente condenado até então a uma espécie de virgindade cognitiva: o continente dos fenómenos sociais. Assim, haveria uma relação de íntima correspondência entre os estados mentais do Grande Ser colectivo, da Sociedade naturalizada, e os estados institucionais que o exprimiam inevitável e necessariamente. No estado mental teológico, cuja capacidade interpretativa dos fenómenos remetia, em última análise, para a intromissão do Divino, as instituições não poderiam ser senão as da Teocracia, com a sua sacralidade do Poder e a sua hierarquia rígida. Mas as filosofias do século XVIII haviam desmantelado o dogmatismo religioso, impelindo as colectividades para as diversas formas de explicação individual, de natureza metafísica. Ora, este individualismo só poderia exprimir-se politicamente através de “regimes de opinião”, liberais-democráticos, agindo através do sufragismo e da vontade maioritária. Porém, este resultado histórico não era o definitivo. Ele só chegaria com a universalização da mentalidade científica e com a organização do que Comte designou por Estado Normal. Esta sociedade seria forçosamente agnóstica, por se ter libertado de todas as formas de teologia; e seria também obrigatoriamente republicana, por se entender que a monarquia era a abusiva irrupção do teologismo no plano de um tempo que já havia superado o poder régio, esse poder discricionário, arbitrário, de um sobre todos. Nenhuma demonstração poderia fazer-se a favor da monarquia, ainda que esta pudesse ser constitucional, uma vez que ela era a expressão completa do anacronismo.

Uma sociedade “sem Deus nem Rei” – eis a fórmula do comtismo político, prontamente adoptada pela geração republicana portuguesa anterior ao Ultimato de 1890.