29 de maio de 2011

SOBRE O GROTESCO


Apercebemo-nos fragmentariamente da realidade. O nosso fragmento é o recanto da nossa humanidade. Mas é só um recanto. Ando às voltas com o grotesco na arte, na literatura, na caricatura e dou-me conta que o vocábulo não merece a desvalorização que se lhe associa. Imputamos ao grotesco uma condição de monstruosa menoridade. A verdade é que nele residiu a primeira mensagem da abordagem da realidade plástica como um todo. A descoberta, no século XV, da “Domus Aurea” , de Nero, revelou aos olhos espantados dos arqueólogos do tempo um novo modo de ver. É que, salvo opinião mais qualificada, a Arte mais não é do que a incessante ruptura da solidão, a caminho de um novo diálogo. Ora, o diálogo que foi travado até à Renascença ressentiu-se do facto de se julgar que a dominância de Deus tornava Dele dependentes as realidades criadas e sublinhava a precaridade e fragilidade de todas as “criaturas”, fossem vivas ou inertes. Ora, o que foi revelado nos frescos que, por se encontrarem no subsolo, tiveram a designação de “grotescos” – como coisas vindas das grutas – isso que desta sorte foi trazido à tona das perplexidades humanas, consistiu num tipo de objectividade que repudiava a segmentação do real. A lógica dos “três reinos” – animal, vegetal e mineral - , tão esforçadamente estabelecida na Meia Idade, recebia aqui um desmentido formal. É que a haste de uma flor, nascida da terra, podia prolongar-se para o rosto de um sátiro, ou enovelar-se numa folha de acanto, ou configurar-se num animalejo monstruoso, ou até servir de sustentáculo ao trono de uma deidade. Ou seja, o “continuum” do real – dizemo-lo hoje … - anunciava Darwin ou as diversas modalidades de monismo. Esta novidade foi intuída claramente pelo génio do Romantismo oitocentista e por um dos seus mais qualificados intérpretes : Victor Hugo. Foi ele que, no prefácio do “Cromwell”, veio afirmar que a arte do seu tempo e a que se lhe seguiria não mais poderia olvidar que entre a objectividade e a subjectividade, entre a matéria e o espírito, entre o animal e o homem, entre o belo e o feio, entre a covardia e o heroísmo, entre a serpente e a maçã, vai a distância que separa o Todo das partes, ou seja, vai a cesura que inexiste entre o Físico e o Metafísico.

25 de maio de 2011

PEDIDO ENCARECIDO AOS AMIGOS

Este vosso Amigo tem o prazer de vos comunicar que, desde a presente data ao próximo dia 5 de Junho, se dará metodicamente a práticas de grande higiene mental. Isto significa que, excluído o tempo necessário ao desempenho de obrigações profissionais e sociais, irá ler bons livros, escutar muito boa música ligeira e música clássica de excelência, dispensar ao seu jardim os cuidados que as plantinhas exigem (elas não têm culpa nenhuma de vicejarem em período eleitoral) e só ouvir da caça aos votos os nacos necessários à emissão de vocalizações inerentes ao exercício do riso.

Os meus Familiares já estão instruídos no sentido de ligarem baixinho as telefonias - como antigamente se dizia - , bem como as duas televisões cá de casa, para que a minha homeostase não seja minimamente perturbada. Desenham-se contudo no horizonte ameaças a este projectado plano de beatitude individual: elas provêm da passagem à minha porta de umas quantas carripanas, munidas de altifalantes, que projectam sons estrídulos, a partir do aparelho fonador de uns desgraçados que só fizeram as Novas Oportunidades, repetindo incansavelmente que os concidadãos podem e devem votar nos malfeitores do costume. Chegado o fatal dia 5 de Junho, irei depositar na urna (refiro-me à eleitoral e não àquela que a "gajada" reserva para Portugal) um papelinho imaculadamente branco. Deixo, finalmente, um pedido aos meus queridos Amigos e Amigas. Se tiverem de entrar em contacto com este vosso admirador, tenham a bondade de aventar todos os temas da vossa e minha preferência - v.g., a filosofia dos séculos XIX e XX, a pintura de Jerónimo Bosch ou de Goya, a próxima época futebolística do SPORTING, o sabor das alheiras transmontanas, o surrealismo, as desgraças do Cavaleiro da Triste Figura (não me estou a referir ao Conejo, não), o fado castiço de Lisboa, a qualidade da próxima colheita vinícola dos tintos maduros, a sápida fascinação da vitela de Lafões, a influência da Geração de 70 na Cultura portuguesa, o significado polissémico do arroto após uma boa refeição, o fascínio do modo de contar de Fernão Mendes Pinto e muitas outras contumélias subjectivo-funcionais - mas NUNCA, NUNCA, EM MOMENTO ALGUM a mais passageira alusão às beijoquices do Portas, às diarreias verbais do Conejo, aos dislates justificativos do promotor do computador Magalhães, às tonitruâncias dos "manhãs a cantar" do Jerónimo-que-não-é-e-nunca-poderia-ter-sido-Bosch, assim como ao melífluo cantor, cheio de louçanias, da Esquerda-com-trufas.

Entendido? Conto convosco! Por favor, não me desiludam !

12 de maio de 2011

PELA MÃO DE TALES


Na origem dos mundos, tudo era silêncio e perplexidade. Apenas os sentidos viviam em alerta, pois só deles resultava a continuidade do acto de viver. E foi assim que os primeiros filósofos tentaram discernir o suporte do suportado, o fundamento das coisas fundamentadas, a raiz vivente dos fenómenos vivos a partir de generalizações ou intuições operadas com base nos dados que lhes afectavam as sensações. Como é sabido, a primeira cosmogenia foi parturejada por Tales de Mileto, o qual imaginou ser a água essa “arché” procurada. Porquê a água? Porque o elemento líquido era aquele que mais visível e imperativamente se podia invocar por um pensamento que tivera a ventura de nascer junto dos azuis marítimos de uma costa recortada e polvilhada por ilhas centenares e centenárias. Os peixes enrolavam-se nas loiras areias das praias gregas, sucumbindo em esgares de prata e em preces de regresso ao líquido e salgado elemento. E foi também probatório o facto de guerreiros tão poderosos como os que atacaram as muralhas de Tróia terem sido vistos a sucumbir quando o vermelho mar do sangue vertido se derramava agora pelos bronzes das espadas ou pelas metálicas defesas dos arcaboiços violados. E foi ainda inequívoco que o ventre húmido das mulheres dava fruto quando à feminil humidade do seu sexo se juntava a varonil humidade do sémen que os homens nelas derramavam, por noites de prazer e carinho.

Afinal, na estrita base de todos os cometimentos filosóficos só um fermento leveda o pão da arte cogitante: o acto, tão singelo, de uma primeira interrogação, à qual se junta outra, ainda mais outra e outra mais porque isto de roubar segredos à Natureza é mais complicado do que roubar carinhos a mulheres insaciadas.

Voltemos a Tales. Dele se conta que, em certa noite, saído a observar o firmamento, tanto se distraiu com a abóbada celeste que caiu numa cova. Talvez pelo seu carácter eminentemente simbólico – a dialéctica do perto e do longe, do realismo pragmatista e do idealismo mais metafísico, do imanente e do transcendente – esta historieta da vida de Tales riscou o horizonte de toda a cultura ocidental, de Esopo a Diógenes Laércio, de Pedro Damião a Voltaire, de Pierre Bayle a Nietzche, ficando omitidos no inventário muitos e muitos outros “parafusadores de Infinitos”. O que há de mais curioso e humano na anedota de Tales radica na infinidade de variações narrativas da sua desditosa queda. Disseram uns, que Tales saíra de casa acompanhado por uma bonita jovem, que quando o viu caído o advertiu, perguntando-lhe como poderia ele acalentar a esperança de conhecer o Além se não se precatava com o que estava colocado mesmo em frente do seu nariz. Para outros, a bonita jovem não tivera propósitos de mofa, mas de gentil advertência. Segundo uns, a mulher não era assim tão juvenil, tratando-se antes de uma matrona, bem servida de anos; de acordo com outros, a queda não despenhara Tales num buraco, mas numa nitreira, atulhada de dejectos e sujidades. Disseram estes que o pobre milésio perdera neste episódio a vida, pois o trambolhão acontecera do cimo de um penhasco. Asseguraram aqueles que não teria sido sua a falta de cuidado, mas antes da mulher que o acompanhava e dele se queria vingar, devido a razões que não serão para aqui chamadas.

O que esta anedota contém é o próprio sortilégio da Filosofia – que não é mais do que a demanda da Verdade. E ao longo dos preguiçosos séculos foi ficando, igual a si próprio, o desafio incitante de a procurarmos – à Verdade – por penhascos, montes e vales, de noite, de dia e ao lusco-fusco, completamente sós ou favoravelmente acompanhados, vencendo as boas ou as más-fés, junto à nesga da fronteira da Jónia, ou junto ao mar Egeu ou nos limites obscuros de terras que ainda sejam de ninguém. A Verdade – eis o Ideal eterno e puro, neste tempo agreste de Sofistas …

9 de maio de 2011

ARCIMBOLDO


Eu olhei e vi, Arcimboldo.

Eram raízes e frutos sazonados

E peixes aos cardumes, encantados

De sal e maresia a marulhar na areia.

Eu olhei e vi, Arcimboldo, como se não visse

As folhas e os livros e os goivos de campa

E o músculo tenso a subir esta rampa

E o verbo na boca a dizer o que disse.

Eu olhei e ao ver quis tentar entender

O que, ficando dito, ficava por dizer

Diálogos suspensos, aporias implumes

Sincréticas visões, ilusões, vagalumes

Da “natura naturans” ao que foi naturado

Tradução por fazer em livro bem fechado...

E o Livro, Arcimboldo? Esse Livro da Gnose

Início do Saber, final vital de osmose ?

Há escritas no céu que só alguns conhecem

Em confusas matinas que se desvanecem.

A Luz chegou, enfim, varando a noite.

Haja, pois, quem a queira e quem nela se afoite.

2 de maio de 2011

VIA DOLOROSA EM CASTELO DE VIDE

No salão nobre da Câmara Municipal de Castelo de Vide encontra-se exposta esta pintura mural. Trata-se de uma Virgem com o Menino, que de maneira flagrante não é virgem, nem bela, nem nova, sem contudo deixar de perder toda a dádiva que uma maternidade pressupõe. Não quis saber quem a tinha pintado e cultivei uma ignorância militante. O mural lembra Paula Rego e pede-lhe de empréstimo o mesmo género de “estética do feio”. Mas aqui, o “feio” não é mais do que a amarga mas necessária meditação sobre a humana servidão. Uma simbólica maternidade, ou apenas uns braços de Mulher, talvez avó, suportam um menino. E o rosto é todo o revolver de um passado longo e dolorido. Rostos de espanto e de dor sustida são também os das figuras, masculina e feminina, que enquadram a Mulher-Mãe-Avó do nosso recontar. Aquilo não é bem uma pintura – é mais a síntese da Via Dolorosa e mortuária da Humanidade em movimento. Apesar de tudo, o fresco conserva a nobreza das coisas verdadeiras, ainda que sinistras. Esta cadente e candente melopeia, este recontar do que tão fragilmente podemos ser, está enquadrado por duas citações. Uma delas reporta-se ao rosto apavorado do “Grito”, de Edvard Munch, e a outra, segundo creio, a uma das fisionomias geométricas da "Guernica”, de Picasso. A pintura revela ainda a presença de um anjo branco, mas revolto, como se tivesse acabado de levar um tiro, como se as suas asas brancas estivessem prontas a despenhar-se no solo. O Artista quis que na base da pintura se definisse um pequeno reduto pedregoso, cercado por arame farpado.

Foi isto que eu vi num dia de chuva, no salão nobre da Câmara Municipal de Castelo de Vide. Lá fui, com mais trinta e dois Companheiros, levar um cravo rubro ao Tenente-Coronel Salgueiro Maia, sempre Capitão e sempre Abril a partir do Além-Túmulo. Que isto de ser gente, mesmo trespassada de Dor, mesmo a caminho do Nada, não nos dispensa, enquanto por cá andarmos, de fazer desfraldar os cravos, sempre e sempre, no dealbar de cada Primavera.