12 de maio de 2011

PELA MÃO DE TALES


Na origem dos mundos, tudo era silêncio e perplexidade. Apenas os sentidos viviam em alerta, pois só deles resultava a continuidade do acto de viver. E foi assim que os primeiros filósofos tentaram discernir o suporte do suportado, o fundamento das coisas fundamentadas, a raiz vivente dos fenómenos vivos a partir de generalizações ou intuições operadas com base nos dados que lhes afectavam as sensações. Como é sabido, a primeira cosmogenia foi parturejada por Tales de Mileto, o qual imaginou ser a água essa “arché” procurada. Porquê a água? Porque o elemento líquido era aquele que mais visível e imperativamente se podia invocar por um pensamento que tivera a ventura de nascer junto dos azuis marítimos de uma costa recortada e polvilhada por ilhas centenares e centenárias. Os peixes enrolavam-se nas loiras areias das praias gregas, sucumbindo em esgares de prata e em preces de regresso ao líquido e salgado elemento. E foi também probatório o facto de guerreiros tão poderosos como os que atacaram as muralhas de Tróia terem sido vistos a sucumbir quando o vermelho mar do sangue vertido se derramava agora pelos bronzes das espadas ou pelas metálicas defesas dos arcaboiços violados. E foi ainda inequívoco que o ventre húmido das mulheres dava fruto quando à feminil humidade do seu sexo se juntava a varonil humidade do sémen que os homens nelas derramavam, por noites de prazer e carinho.

Afinal, na estrita base de todos os cometimentos filosóficos só um fermento leveda o pão da arte cogitante: o acto, tão singelo, de uma primeira interrogação, à qual se junta outra, ainda mais outra e outra mais porque isto de roubar segredos à Natureza é mais complicado do que roubar carinhos a mulheres insaciadas.

Voltemos a Tales. Dele se conta que, em certa noite, saído a observar o firmamento, tanto se distraiu com a abóbada celeste que caiu numa cova. Talvez pelo seu carácter eminentemente simbólico – a dialéctica do perto e do longe, do realismo pragmatista e do idealismo mais metafísico, do imanente e do transcendente – esta historieta da vida de Tales riscou o horizonte de toda a cultura ocidental, de Esopo a Diógenes Laércio, de Pedro Damião a Voltaire, de Pierre Bayle a Nietzche, ficando omitidos no inventário muitos e muitos outros “parafusadores de Infinitos”. O que há de mais curioso e humano na anedota de Tales radica na infinidade de variações narrativas da sua desditosa queda. Disseram uns, que Tales saíra de casa acompanhado por uma bonita jovem, que quando o viu caído o advertiu, perguntando-lhe como poderia ele acalentar a esperança de conhecer o Além se não se precatava com o que estava colocado mesmo em frente do seu nariz. Para outros, a bonita jovem não tivera propósitos de mofa, mas de gentil advertência. Segundo uns, a mulher não era assim tão juvenil, tratando-se antes de uma matrona, bem servida de anos; de acordo com outros, a queda não despenhara Tales num buraco, mas numa nitreira, atulhada de dejectos e sujidades. Disseram estes que o pobre milésio perdera neste episódio a vida, pois o trambolhão acontecera do cimo de um penhasco. Asseguraram aqueles que não teria sido sua a falta de cuidado, mas antes da mulher que o acompanhava e dele se queria vingar, devido a razões que não serão para aqui chamadas.

O que esta anedota contém é o próprio sortilégio da Filosofia – que não é mais do que a demanda da Verdade. E ao longo dos preguiçosos séculos foi ficando, igual a si próprio, o desafio incitante de a procurarmos – à Verdade – por penhascos, montes e vales, de noite, de dia e ao lusco-fusco, completamente sós ou favoravelmente acompanhados, vencendo as boas ou as más-fés, junto à nesga da fronteira da Jónia, ou junto ao mar Egeu ou nos limites obscuros de terras que ainda sejam de ninguém. A Verdade – eis o Ideal eterno e puro, neste tempo agreste de Sofistas …

2 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Como é que Tales sabia
que o princípio da existência
veio da água, cuja essência
nem por sombras conhecia?!

JCN

João de Castro Nunes disse...

O génio pode alcançar
o que o saber não consegue
por muito esforço que empregue
para à verdade chegar!

JCN