3 de agosto de 2011

QUERER RIMAR

Aquilo passou-se num fim de tarde. Eu descia pela Rua Nova, aquela que bordeja o mar e desemboca na praça grande. Ela subia a mesma rua, numa passada lenta, já denunciadora da chegada de artrites e outras complicações do serôdio da idade. Cumprimentávamo-nos sempre, com certa circunspecção eivada de curiosidade mútua. Ela talvez se perguntasse por que é que eu, com alguma cotação no mercado da opinião pública, andava sempre vestido com negligência; ou , pior ainda, talvez fosse comparando o inflar da cintura e dissesse para os seus botões, de cada vez : “Mas por que raio é que este fulano não faz uma dietazinha? Está cada vez mais gordo”. A admissão deste solilóquio eventual enchia-me de tensões em surdina, porque era para mim mais evidente a perda de forças do que o ganho de gorduras. Mas, pelo meu lado, o que me despertava nela a atenção era o outoniço do porte, como se ela fosse um pêssego quase fora de prazo, mas ainda capaz de ser trincado uma última vez.

Esse era um dia invulgarmente quente, e nem sequer o sopro marítimo evitava uma geral sonolência nas coisas e nos corpos. Nem sei bem porquê, dei comigo a falar com ela depois da saudação inicial : “ Calor danado, não acha?”; e ela respondeu logo, com a pressa de quem se quer fazer compincha : “Calor cabrão, é o que é!”. Dei comigo a rir desabaladamente, porque a última das coisas que eu esperaria ouvir da sua boca era um palavrão daquele quilate. Mas foi assim que a conversa pôde prosseguir, pois não há como um dichote sem vergonha para dessacralizar tudo aquilo que pode ser visto como sagrado nos outros. Quando me viu rir, ela retrucou: “Mas está a rir de quê? É um calor cabrão ou não é ?”. Ao que eu lhe respondi: “Ora, é conforme os cornos do bicho”. Foi a vez dela rir e de tomar uma iniciativa que eu julgava absolutamente interdita : “E se fossemos beber um copo, ali no bar do Beto? Pago eu” ; “Ora essa, não paga nada. Isto está pela hora da morte, mas para um trago em boa companhia ainda dá”. Descemos à Praça, como se fossemos dois velhos amigos que se tivessem perdido depois da Grande Guerra e que subitamente se tivessem descoberto numa viela , das mais apertadas, do bairro judeu.

O Beto estava de camisa aberta no terceiro botão, já sonolento pelo aviar de “cognacs” em proveito próprio , mas, apesar disso, muito loquaz. Disse : “A última das coisas que estes meus olhos pecadores esperavam ver era um par como o vosso. Que é que vos deu?” . Antes de eu me preparar para responder, ela tomou-me a dianteira e declarou, toda encostada ao balcão : “Olha lá a novidade, oh Beto. Isto é do calor”. E eu, para não fazer a parte do choninhas, acrescentei: “Perdão, é do calor cabrão!”. E vai o Beto: “Vocês querem é rimar!”.

A verdade é que , talvez por causa do calor ou da insinuação do Beto … queríamos mesmo.

2 de agosto de 2011

TRIBUTO A VAN GOGH

Nada que possas dizer

Obriga o mundo a mostrar

O que de ti quer fazer.

Nada que possas pensar

Cumpre a sina de assinar

Um decreto do destino.

Hás-de ser sempre menino

Por nunca chegares a ter

Segredos na tua mão.

Serás talvez um tufão

Em dia sem vendaval ;

Uma alma tresnoitada

A brigar consigo mesma

Por tudo se volver nada.

Serás decerto o sinal

Imperceptível, fatal,

No modo como conjuga

A própria arte da fuga.

Melhor que tu é a flor

Que na morte decompõe

Mil cheiros em que viveu

Para recompor depois

As mil seivas que nutriu.

Mas tu, enfim, és o dois

Da unidade perdida

Trazes na alma essa ferida

Do que ficou por fazer.

Aceita, pois, o conselho:

Cheira a flor ao fenecer.

Fazendo do novo velho,

Do velho fazendo novo

E dos dois novo nascer.

Partirás então sem dolo

Envolvido no consolo

Dum fulgente entardecer.