26 de dezembro de 2011

SOBRE A "ARTE MENOR" DA CARICATURA




Na infância, o mundo é perscrutado por olhos inocentes e curiosos. São os objectos, a diversidade das coisas, que estimulam os nossos órgãos visuais. Apesar disso, o registo objectivo é acompanhado, de forma lúdica, pelo trabalho da imaginação. Num muro coberto de musgo o olhar juvenil pode destrinçar dois cavaleiros numa justa medieval, um velho a percorrer uma floresta, uma vaca a pastar, um moinho junto ao rio ou até um enxame de abelhas à entrada de um cortiço. Olhando para o céu, observando a consecutiva mutação das nuvens, a visão ingénua pode discernir um navio no alto mar, ou um pássaro no seu ninho, ou um rosto patibular. O primeiro esforço foi o do registo do real, com a imperfeição formal de quem ainda não conhecia as regras de perspectiva ou a normalização das proporções. O cavernícola desconhecia os preceitos de Vitrúvio. Por isso, a reprodução dos seus animais ou dos seus caçadores era muito próxima da interpretação inerente aos desenhos infantis.
O esforço artístico da Humanidade fez-se, durante séculos, no sentido da naturalização e da fidelidade aos fenómenos circundantes. Quiseram os homens representar o mundo, “tal qual ele se nos dava, exactamente como ele existia”. E, no entanto, desde o primeiro momento se imiscuiu neste projecto o fermento anarquizante da libérrima imaginação. Onde os olhos viam uma mulher, a imaginação descortinava uma sereia ou até um monstro marinho. Perenizou-se a luta entre o objectivo e o subjectivo, entre o estruturado e a desestruturação voluntária. Na Idade Média, o artista plasmou Cristo – mas só a imaginação supôs a Dor; na Renascença, o pincel pintou os Bórgias – mas só a imaginação pressentiu o punhal.
Chegou-se então à Época Contemporânea. Nela se desenvolveu um património de versatilidade e incontinência, de tripúdio por regras canónicas e de rejeição do “dado”. Mais importante era o “constructo”, esse “quid” com que Lewis Carroll serviu Alice, precisamente ali, do outro lado do espelho. Continuou a fidelização objectiva, a representação “tal e qual”? Decerto que sim. Mas surgiram certos artistas que começaram a baralhar tudo, a empurrar monarcas absolutos dos tronos do seu dogma, a troçar de burgueses ventrudos e de damas em estado de suspiro diferido. Que gente era essa? Era aquela que passou a atribuir a certos pormenores, sobretudo os de significado grotesco, muito mais “vis” expressiva do que essa outra que se revia nos leques dos salões, na majestade dos majestáticos, no realismo da realidade. Era, sobretudo, gente que queria rir e, se possível, troçar. Chamaram-lhe “exagerados”, “tabeliães da vulgaridade”, “cultivadores de uma arte menor”. Foram depois designados de “caricaturistas”. Organizaram-se em legião para a conquista do mundo, tendo por generais Hogarth, Carle Vernet,Thomas Rowlandson, James Gillray, Daumier, Rafael Bordalo Pinheiro, Francisco Valença …
Aconteceu então um grande terramoto na cidadela da Arte. É que mesmo os Artistas que se reconheciam com A grande, partiram para a decifração do mundo com uma aumentada dose de subjectividade e de deselegância. É Belo, isso? E por que não há-de o feio transmudar-se em Verdade na ponta do meu lápis ? Foi então que se produziram inesperadas rendições. À caricatura, ao pormenor cómico, à fealdade satírica foram prestando o seu preito nomes como os de Reynolds, Eugène Delacroix, Gustave Doré, Goya (um génio absoluto), Géricault, Victor Hugo,Toulouse-Lautrec, George Grosz, Paul Klee, Pablo Picasso.
Era a arte “modernista”, expressionista, surrealista, a impor a regra do desregrado, a subjectividade do objectivo, o “às avessas” a um mundo até então excessivamente arrumado. Talvez possamos dizer que foi, é, está a ser, um regresso aos primórdios. Só que agora, os cavernícolas que ainda somos descobriram o doce, subtil e requintado perfume da liberdade criativa sem limites. E desde então o mundo nunca mais foi o mesmo. Ele acabara de descobrir que o mesmo é sempre "um outro". A questão é chegar lá ...

20 de dezembro de 2011

MICROCOSMO-MACROCOSMO



Quando se devassa a realidade – ou o que é suposto sê-lo – com um microscópio electrónico, acontece o que nunca poderíamos imaginar possível. O salto do infinitamente pequeno para escalas de grandeza que nos eram insuspeitas revela um mundo de novidade insuspeitada. O que era apenas a ruga indelével, apresenta-se como a garganta de um abismo; o que passava por ser uma simples penugem, dá-se-nos como o torso imenso e negro do que parece ser uma planta incomensurável; uma pequena variação de pele, uma verruga, por exemplo, revela um temeroso dorso de descontinuidade. As coisas passam a ser outras, porque sujeitas ao olho ciclópico de uma máquina de aumentar. E eis-me assaltado pelo pressentimento de que estou a ser observado pela pupila de Andrómeda ou pela iris do olho imenso de uma outra realidade, tão distante que, longe de me magnificar, me reduz à poeira, longe de me engrandecer, me situa na rasura do espaço minúsculo. Tudo muda então. E para que me servem as regras da lógica, os normativos dos códigos, os princípios da epistemologia, a própria dialéctica? E para que me serve o servir-me? Ou o servir-me de ? Há quem diga que desaparecem coisas no “triângulo das Bermudas”. É possível. Basta que se abra, a partir da vontade de Andrómeda, uma infinitésima partícula deste Ser global.

12 de dezembro de 2011

NATUREZA SOLAR



No côncavo do gineceu
Reconheço-me pólen.
Frutificou a primavera
Que passou por mim
E deu-me forma de romã;
Como se bem outro eu
Tivesse fecundado hímen
Imaculado no fruto que sonhara
Intocado por mazela malsã.
Como se bem outro eu
Tivesse produzido o sémen
Multiplicador da múltipla seara.
Assim me reconheço e sei
Parte do mundo todo:
Como se o veio da minha Grei
Fosse ribeira clara e nunca lodo.

8 de dezembro de 2011

FRIO


Faz frio lá fora, não achas?

As coisas estão brancas por dentro

E a terra revela o estranho silêncio do estéril.

Ao longe, um sol redondo e menos do que morno;

Ao perto, expressões de amantes desavindos.

Está frio aqui, não achas?

Acende-se a lareira?

Mas como e com quê?

A lenha só existe em árvores transidas.

Ainda agora vi um pássaro de penas eriçadas

De pavor e solidão.

Não, não caem co’a calma as aves.

O que cai sobre nós é o protesto de raízes

Procurando alcançar um renovado alento de seiva.

Faz frio, muito frio, não é ?

O fogão de sala prescindiu da sala e ficou só.

E nós também.

Somos frio, não somos?

4 de dezembro de 2011

PELA MANUTENÇÃO DO 5 DE OUTUBRO COMO FERIADO NACIONAL


A opção republicana está além E ACIMA da simples opção partidária. É que não se trata de defender um emblema, uma casta, um sector grupal, uma corporação. Ser republicano significa uma declaração solene de pertença a um ideal de serviço a favor do BEM COMUM ( a famosa "Res Publica" não é mais do que esse Bem Comum). Por isso, com exclusão de opções totalitárias, um republicano pode orgulhosamente afirmar que o é independentemente da sua particularista simpatia por este ou aquele agrupamento institucionalizado e inserido no leque da Democracia concreta. A opção republicana funciona mais como elo de ligação e de confraternidade do que como sinónimo de ruptura e de antinomia. Prezemos o sufrágio universal, a liberdade de consciência, o pluralismo de opiniões, o laicismo na vida civil, a franca tolerância no convívio, o ecumenismo das crenças, o patriotismo na forma de estar, o livre associativismo, o multiculturalismo, a integração sem preconceitos do diferente, a Escola para todos, a Saúde para todos, o viver sem medos de qualquer natureza - prezemos e defendamos tudo isto porque quando tudo isto acontecer dentro de nós, todos diremos com orgulho : "é verdade, SOU REPUBLICANO" .

3 de dezembro de 2011

BREVE NOTA SOBRE A ARTE

A Arte norteia-se por dois grandes princípios. É necessário, por um lado, que o que se vê, o que se ouve, o que se sente, o que se percepciona, nos remeta para além da intuição ou da vivência imediata. A Arte, desta maneira, será sempre uma refiguração da vida. O outro princípio - que vem, aliás, na peugada do primeiro - assegura-nos que o Artista constrói um objecto inteiramente novo, embora utilize recursos, matérias-primas ou processos técnicos já conhecidos. E como o princípio da novidade é complementar do princípio da recriação, isto significa que a Arte é um continuado milagre.