28 de julho de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LV


LV - A Revolta de 28 de Janeiro de 1908


O vulcão revolucionário de Lisboa fumegava como nunca. A ditadura franquista produzira no universo político uma irritação como poucas vezes se vira. Não eram agora só os republicanos a desejarem o retorno à normalidade constitucional e a devolução das garantias cívicas, atacadas em todas as frentes. Era uma vasta frente de oposição, na qual se divisavam regeneradores, progressistas, dissidentes, anarquistas, socialistas e até a grande massa anónima dos cidadãos vulgares, sem filiação partidária definida. Falava-se em aprisionar e até em eliminar fisicamente João Franco. Os presságios timbravam pela convergência e unanimidade. Uma onda de boatos invadiu a opinião pública quando foram presos João Chagas, Alfredo Leal, França Borges e sobretudo António José de Almeida. Este era o idolatrado tribuno do republicanismo, o Verbo revolucionário por excelência, o mentor de todas as esperanças de amanhã, o aval de todas as indignações. João Franco recebia pelo correio, todos os dias, numerosas cartas, expressando a maioria delas os protestos mais indignados e consignando uma minoria das mesmas o incentivo da solidariedade e do apoio. Uma dessas cartas recomendava com ênfase que não se tocasse em António José de Almeida. Muitos atentos observadores da realidade previam um desenlace catastrófico. Raul Brandão escreveu num dos seus volumes de “Memórias”: “Isto, toda a gente o afirma, acaba logicamente no atentado pessoal”. Não eram outras as palavras de Cunha e Costa, ao vaticinar: “Há mais de duzentas pessoas apostadas em matar João Franco. Isto acaba por um atentado pessoal”. O ditador procurava trocar as voltas aos inimigos, mudando frequentemente de domicílio e tornando o seu paradeiro difícil de situar.
A conspiração progredia a olhos vistos. No sector militar distinguia-se especialmente o oficial marinheiro Cândido dos Reis, com os seus longos bigodes pendentes e um olhar vivo mas melancólico. Por seu turno, os conjurados militares começaram a reparar num humilde comissário naval, Machado Santos de seu nome, sem nada de especial a recomendá-lo senão o ardente desejo de derrubar as instituições e um optimismo ingénuo, a roçar a insensatez. Aliás, era no grupo dos marinheiros que a revolução recrutava boa parte dos seus efectivos, com destaque para João Serejo, Álvaro Andreia e Marinha de Campos. Também os civis se movimentavam. Alguns deles eram responsáveis cimeiros do Partido Republicano, mas outros não apresentavam outros créditos para além dos da sua generosidade para com a causa do republicanismo. Contavam-se neste número o comerciante Alfredo Leal e o seu irmão, proprietários da casa comercial “A Liquidadora”, a qual serviu de depósito de armamento para a conjura em marcha. Na zona de Alcântara situava-se a “Tipografia Liberty”, na Calçada do Sacramento, que os irmãos Lamas (Franklin e Augusto) haviam convertido num foco conspiratório muito activo. O rebentamento de bombas em Lisboa, nomeadamente na Rua do Carrião, certificava a natureza de um clima social crispado, pronto a explodir ao primeiro pretexto.
Traçaram-se estratégias, discutiram-se movimentos de tropas, combinaram-se ataques a zonas e instituições vitais para o poder monárquico e em tudo isto se distinguiram, pela sanha combativa e pela intransigência próxima do ódio, os homens da Dissidência Progressista de José de Alpoim. Monárquicos, portanto! Mais: sobram os testemunhos dos que afiançam que a maior parte do armamento, distribuído sobretudo a civis, veio das hostes alpoinistas. Hostes monárquicas, portanto!
Depois de vários avanços e recuos, a eclosão do movimento revolucionário ficou marcada para 28 de Janeiro de 1908. Mas ficara combinado que os sinais de desencadeamento da acção só seriam accionados após se conhecer a prisão de João Franco. Isto revelou-se fatal para o sucesso do empreendimento. Afonso Costa, ao qual tinha sido cometido a chefia civil da revolução, negou-se a avançar antes de lhe ser afiançada a neutralização do ditador. Um dos mais importantes locais de concentração dos revolucionários iria funcionar no ascensor da Biblioteca, que viabilizava a ligação entre o Largo do Pelourinho, paredes-meias com a Câmara Municipal, e o Largo da Biblioteca. O projectado assalto ao edifício autárquico far-se-ia a partir dessa posição. A audácia era grande, uma vez que o local era contíguo a uma esquadra policial. Além do mais, o elevador encontrava-se paralisado e sem prestar o serviço para que tinha sido concebido. Mas foi lá que se concentraram os mentores do movimento, os quais, pelo seu número e notoriedade pública, atraíram a atenção e a perplexidade de um guarda de giro. Foi este que denunciou à sua chefia hierárquica o insólito da situação. Por isso, lá acabaram por ser presos Afonso Costa, o visconde da Ribeira Brava, Álvaro Pope, Egas Moniz e outros conjurados de menor envergadura. Gorara-se esse 28 de Janeiro, apesar de incidentes sangrentos que aconteceram em locais sensíveis da cidade de Lisboa.
Estava feito o ensaio geral da revolução republicana, a estalar num futuro próximo. Mas antes dela ocorreriam outros dramáticos desenlaces.

4 de julho de 2010

MEMORIAL REPUBLICANO LIV

LIV - A Carbonária Portuguesa

A história do carbonarismo em Portugal está por fazer e dificilmente poderá ser erguida com inteira garantia de veracidade. Escasseia a documentação, até porque este tipo de organizações secretas não pretendia guardar memórias para o futuro, uma vez que pesavam mais as urgências do presente e, por outro lado, o sigilo equivalia à garantia de defesa contra a agressividade policial. O movimento, em Portugal, terá remontado ao período do Ultimato, sabendo-se que a revolta de 31 de Janeiro de 1891 já contou com a organização secreta de núcleos populares armados. Mas foi indubitavelmente sob os rigores da ditadura franquista que a Carbonária Portuguesa se organizou e mais disciplinadamente se ampliou. Referimo-nos àquela organização que foi dirigida por uma Alta Venda dirigida por um triunvirato a que pertenciam Machado Santos, Luz de Almeida e António Maria da Silva.
A Carbonária Portuguesa apresentava a “choça” como unidade de base, sendo esta composta por um número de combatentes inferior a vinte; as “barracas” eram constituídas pelos chefes de cerca de vinte “choças”; as “vendas” eram formadas pelos presidentes de vinte “barracas”. A “Alta Venda” resultava da agremiação das chefias de vinte ou mais “vendas”. Os desígnios da organização eram muito claros, pois pretendiam aliciar e armar um exército popular, completamente devotado à tarefa de destruir o regime monárquico pela força. As aliciações, na maior parte dos casos, faziam-se nos quartéis, chamando à causa as praças e os sargentos de condição económica e social mais humilde. Esta regra era também observada nos recrutamentos feitos fora das unidades militares. Exigia-se ao novo membro uma dedicação ilimitada, que ia ao ponto do sacrifício da vida, se tal fosse necessário. As traições, delações ou denúncias seriam punidas com a morte do prevaricador. Por outro lado, as iniciações faziam-se solenemente, em locais ermos, obedecendo a um cerimonial proto-maçónico, no qual era usual a exibição de armas e todo um solene interrogatório, tendente a comprovar a solidez de vontade do neófito. Os símbolos carbonários reproduziam esta mística de combate, neles aparecendo os punhais, os machados, as estrelas de cinco pontas e os triângulos formados por três pontos de vértice invertido. Era invocada frequentemente a divisa que fora divulgada pela revolução francesa de 1789: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
Se Machado Santos centrou a acção da Carbonária preferencialmente no plano militar, António Maria da Silva e Luz Almeida trabalharam intensamente as regiões do interior de Portugal, agindo sistematicamente junto dos estratos mais baixos da sociedade civil. No interior do Partido Republicano, nem todos apreciavam por igual a latitude e intenção do movimento carbonário. Se António José de Almeida o apreciava, vindo a ser o elo de ligação entre o Directório do Partido Republicano e a Carbonária, João Chagas não lhe dava qualquer cobertura e procurou mesmo dissuadi-lo. O seu receio é que, chegada a hora, viessem a fazer-se revoluções paralelas sem coordenação. O ensaio geral do carbonarismo em luta verificou-se no decurso da tentativa revolucionária de 28 de Janeiro de 1908. Tal tentativa malogrou-se, devido a notórias deficiências de planeamento, embora o movimento congregasse sectores muito diversificados, que iam do republicanismo ao anarquismo e deste á Dissidência Progressista de José de Alpoim, estando ainda representados alguns militantes isolados do socialismo.
É muito provável que fique para sempre no limbo do virtual o apuramento do número global dos carbonários, quando a organização atingiu o máximo da sua capacidade de aliciação. O que se sabe é que a Carbonária Portuguesa foi a mais impaciente quando se tratou de marcar a data da eclosão revolucionária e conformou-se dificilmente com os sucessivos adiamentos das alturas inicialmente previstas para o efeito. E é também sabido que foram os civis e militares carbonários os elementos mais activos e decididos na difícil e indecisa marcha da revolução de 5 de Outubro de 1910.