25 de janeiro de 2013

NOVAS AVENTURAS DE VERCINGETORIX

( A fotografia reproduz, com fidelidade total, o próprio Vercingetorix) O meu gato Vercingetorix está agora diminuído. Ou porque esteja constipado ou porque lhe tenha aparecido um pólipo na laringe, passa o tempo todo a roncar baixinho, no acto de respirar. Isto constitui para ele um grande transtorno. É que ele é o guerreiro indiscutível cá de casa. Basta referir as emboscadas heróicas, cumpridas atrás de todas as portas, para surpreender o Fugitivo, gato medroso que só aparece para comer ou beber e que, mesmo assim, está sempre de pata no ar, apto a bater em retirada, no caso de suspeitar de algum perigo. Ora, a partir do momento em que o Vercingetorix ronca – e ronca audivelmente – o expediente do esconderijo perde o seu secretismo. E é ver o pobrezinho, tardes inteiras, em posição de ataque, sem que a vítima apareça uma só vez. Como o alvo favorito já não vai na conversa, o Vercingetorix começou por ensaiar alvos em alternativa. E foi meter-se, pobre dele, com a Czarina. Ora, a Czarina tem muito mais unha do que o Vercingetorix. É uma gata imperial, de indiscutível personalidade, que nunca suspeitou, nem ao de leve, que um tenro de um Vercingetorix se atrevesse a acometê-la. Por isso, o primeiro – e último, digo eu – ataque bélico do putativo lutador à aristocrata teve o desfecho previsível. A Czarina ficou primeiro especada, como quem não acredita no miado pífio e plebeu do Vercingetorix. E, logo a seguir, ferrou-lhe a coça mais monumental que registam as crónicas dos gatos. É triste assistir ao quadro de um guerreiro de raça a fugir desabaladamente à frente do pêlo eriçado da Czarina. Eu, que isto vislumbrei, nutri nessa altura pelo Vercingetorix uma infinita piedade. E estou decidido a patrocinar-lhe , na clínica veterinária, a necessária operação para que desapareça o comprometedor ronco. E não darei parte disto ao Fugitivo. Aliás, este Fugitivo, exemplo denodado de cagaço, é tão furtivo que só me foi permitido dar conta dele quando o Vercingetorix lhe ferrou sovas homéricas. Ora, se eu tenho gatos em casa, é para poder vê-los. Já tenho saudades da camuflagem silenciosa do Vercingetorix, pelas picadas das portas deste seu lar. E que ninguém tente demover-me a fazer dele um campeão de "full-contact" .

20 de janeiro de 2013

PARA UMA PSICANÁLISE DO PORTUGAL DE HOJE

Povo de camponeses e pescadores, fomos um todo social que ruminou a sua própria pobreza de meios. Lavrar o campo ou colher do mar os frutos possíveis, nisto consistiu o destino dos nossos maiores. Foi essa escassez de riquezas que nos levou aos descobrimentos marítimos. Estes teriam sido motivo de orgulho e ufania para os Grandes do Reino. Para os pequenos, para os embarcadiços sem fortuna, a demanda do Reino do Preste João foi apenas a oportunidade de não rebentar de fome. "Os Lusíadas" - há que afirmá-lo - foram a epopeia dos filhos d'algo, jamais o espelho da arraia-miúda sem amanhã. Esta foi aplacada a golpes de Evangelho, com frades estonteados a guinchar de púlpitos histéricos que a miséria do hoje, a fome do agora, estava prestes a ser resgatada no amanhã da Eternidade. A Inquisição garantia a obediência de algum recalcitrante. E este era conduzido ao braseiro com a mesma impassibilidade com que era conduzido o coirão de um porco à matança e ao estonar das cerdas. Era aquilo um Povo? Lérias ! Aquilo era tão somente um magote de animais de rosto humano que os mais ladinos ajoujavam de obrigações e privavam metodicamente de todos os direitos. Foi assim toda uma existência multissecular. E desta hauriram os poderosos um jeito senhoril e imperial de reivindicar sacrifícios em proveito próprio, como se estes não apresentassem o rosto abjecto da espoliação forçada mas simulassem a face augusta da Justiça sem mácula. Tais antecedentes explicam tudo deste nosso presente. Os tiques dos poderosos são os mesmos, sem tirar nem pôr. E o jeito conformado dos pobretanas apenas reproduz o cagaço de que venha por aí alguma nova Inquisição, com um padreca intonso a resmonear uma “Avé-Maria” e a novamente acenar com uma Bem-Aventurança, administrada de acordo com o breviário, ou seja, a atingir depois de se ter esticado o conformado pernil. Somos o que somos. E é pena. Portugal, enquanto Povo, enquanto História, enquanto Identidade, tinha condições potenciais, já não digo para ser grande, mas para ser Ele-próprio, sem vergonha.

16 de janeiro de 2013

O DRAMA DO MARIDO DA MADAMA

Quando se discutia, aqui há uns anos, a viabilidade de um sistema económico e político para Portugal, havia quem sustentasse coisas que nos pareciam ter sentido. Os defensores do sistema capitalista afirmavam, entre vários outros princípios, o seguinte : os seres humanos são portadores de desiguais capacidades de apego ao trabalho e é justo que os que mais e melhor trabalham acabem por angariar maiores vantagens para a sua vida pessoal, ganhando mais e tendo uma vida mais confortável. Este argumento caracterizou adequadamente uma fase do desenvolvimento do capitalismo no nosso país, o qual pode ser designado por capitalismo individualista. Mas ao longo do tempo as coisas foram mudando. O burguês mediano, aferrado a um trabalho bem remunerado e com um nível de vida compatível, viu crescer ao seu lado, tentacularmente, a realidade da Alta Finança. Esta mora distante de si. Não tem rosto. Não bebe o café com ele. Não lhe frequenta a casa. É anónimo. A crise actual permite esclarecer este burguês de uma comezinha realidade : o capitalismo já não é o que era. E “está-se nas tintas” para o pequeno e médio burguês. Anichou-se todo atrás da couraça dos bancos, das grandes companhias de seguros e das multinacionais. E o nosso pequeno e médio burguês, em declive para a mendicidade acelerada, pergunta-se pelas sólidas realidades de outrora : as de um trabalho bem remunerado, que lhe permita o gozo honesto de um jantarzinho num bom restaurante ao fim de semana, com a Madama, e de umas férias em Acapulco ou no Varadero. E conclui que isso foi chão que deu uvas. A Alta Finança rouba-lhe tudo: o bom salário, a pensão folgada, a casa de cinco assoalhadas, as férias na estranja e a jóia que ele costumava oferecer à Madama quando ela fazia anos. O capitalismo dos banqueiros e financistas internacionais virou a página que narrava as aventuras e delícias deste capitalismo individualista, e tanto se montou nos lombos do trabalhador por conta de outrém como nos cachaços destes burgueses individualistas, que hoje vemos, meios assarapantados, continuando a votar em partidos de Direita, sem perceberem nada do que lhes está a acontecer, enquanto não os espoliam da casa, do carro, das férias … e talvez da própria Madama, se ela for louçã e bem apessoada.

12 de janeiro de 2013

UM PORTUGAL QUE O FMI DESCONHECE

O memorando do FMI acerca das desejáveis “reformas” a introduzir em Portugal constitui a prova mais evidente do seu total desconhecimento acerca do País que pretende intervencionar. Encerrado o ciclo do Império, Portugal ficou reduzido ao seu território afonsino e às sua ilhas adjacentes. Destas últimas, desvaneceu-se consideravelmente o interesse estratégico dos Açores, a partir do momento em que os Estados Unidos da América os declaram menos relevantes. A Madeira é um simples entreposto turístico e dificilmente poderá ser outra coisa. Ou seja : Portugal vale e valerá o que puder provar o seu território continental. As duas vocações tradicionais deste Portugal – a agricultura e as pescas – foram-nos confiscadas, por assim dizer, a partir da integração do País na Europa. Que resta ? Resta uma economia de serviços , sobretudo uma economia de serviços estatais. É um facto que o sector administrativo público sofreu , a partir do 25 de Abril de 1974, um inaceitável e excessivo empolamento. Mas isso não retirou à máquina administrativa do Estado a sua função equilibradora , no que toca à garantia de subsistência que proporcionava a uma significativa parte da população. Ou seja : a condição de funcionário público constituiu, desde sempre, um cimento aglutinador da organicidade social portuguesa. Não existem em Portugal funcionários públicos “porque sim” ; existem entre nós funcionários públicos porque tal actividade se perfila, para grande parte dos portugueses, como o único meio de vida. É sabido que esta visão é vigorosamente negada pela tecnocracia dominante. Diz esta que não senhor, que há que inovar, que há que incentivar a iniciativa privada, que isto é a visão do Passado e que outro será o Futuro. Infelizmente (ou talvez não), Portugal é o que é : uma formação social pobre, periférica e completamente dependente do exterior. Como realidade económica, Portugal possui fracos recursos ou, pelo menos, possui recursos em pousio, sendo o mar o maior e melhor deles todos. Mas parece não ser por aqui que quer ir quem nos governa. Verdade seja dita que quem nos governa também não confere objectividade às tais e tão decantadas “novas oportunidades” de uma “ nova “ Política e de uma “nova” Economia. O que se verifica é a tentação de descompensar inteiramente a hierarquia da Função Pública, diminuindo-a drasticamente na base, para a fazer crescer no topo ou, pelo menos, para fazer acrescer até ao limite máximo as benesses desse tal topo. O tal mundo de negócios prometido pela tecnocracia tem vindo a provar ser o território dos negócios crapulosos, da empenhoca siciliana, da especulação desenfreada e do financismo ladravaz. Para que Portugal se converta socialmente numa espécie de sociedade de tribalismo engravatado ou de miserabilismo apodrecido – e sem hipóteses de regeneração – só falta despedir da Função Pública os milhares de trabalhadores referidos pelo memorando do FMI.

9 de janeiro de 2013

"TENHO DE RESOLVER ISTO ..."

Andei ontem à procura de um contacto, no meu telemóvel. Quero explicar que sou bastante indisciplinado em quase todas as minhas actividades não profissionais. Ou seja, vou dizendo de mim para mim, com excessiva frequência : "Tenho de resolver isto". E as coisas ficam adiadas. Mas há uma tarefa que deveria ter sido cumprida por mim com maior escrúpulo : a de suprimir, no telemóvel, os contactos dos que já partiram. E eis-me - não tanto temeroso, não tanto aterrado, mas seguramente pensativo - a enumerar a lista dos que deveriam ter sido piedosamente suprimidos da minha tecnologia, em tempo próprio. "São já muitos", encontrei-me a murmurar, "são já muitos ...". . E ainda disse com os meus botões : "Tenho de apagar os contactos inúteis". Mas logo pude ouvir uma voz, talvez a minha, talvez a deles : "Mas tais contactos serão mesmo uma inutilidade ?" . E acabei por os deixar ficar. "Tenho de resolver isto". Um dia ...