Um dia, descobri numa velha mala, desde há muito lançada para o desvão de um sótão poeirento, o seguinte manuscrito, incompleto e truncado, quer por lhe faltarem páginas, quer porque a humidade do local o tornara, em certas passagens, ilegível:
“ Sim, é verdade, eu odeio-o. Há nele um não sei quê de superioridade que me irrita e desconcerta. Ontem mesmo aproveitou a oportunidade de estarmos sós e perguntou-me: «Conheces o Carnaval, Opus 9, de Schumann?». Forte asno! Como se fosse só ele a gostar de música clássica. Senti-me tão vexada que lhe virei as costas, não sem que antes dissesse para os meus botões – Qualquer dia, pagas-mas todas juntas! Claro que é absolutamente necessário (ilegível a partir daqui)”.
Texto de uma outra página:
“ […] se te apetecer. Sofre muito. Já nem canta pela manhã. E eu estava muito habituada a esse acordar. Sabes que o bicho se me afeiçoou deveras. Não admira, criei-o desde muito novo, era quase um pássaro implume. E habituei-o a vir mordiscar-me o dedo, para pedir comida. Mais tarde, já o podia levar comigo para o banho e ele ficava empoleirado no (grande mancha de humidade, alastrada por várias páginas, impedindo a leitura)”
“Imagina que decidi ir ouvir o Carnaval, de Schumann. Um horror! Não sei como se pode gostar daquilo. E na festa da mamã lá estava ele, cheio de prosápia, rodeado de discípulos meios embasbacados. Passou por mim, quase sem reparar que eu existo e limitou-se a dizer «Olá, está com bom parecer.». Senti vontade de o esbofetear.”
Mais à frente:
“ […] Lembro-me como se fosse hoje. Trilhou a pata no bordo da gaiola e, espantado com um gesto que fiz por inadvertência, partiu-a, sem que eu me tivesse dado conta disso. Depois foi o declínio. As minhas leituras deixaram de ser acompanhadas […] e cabeceia muito, talvez por causa da febre. […] isto porque, se a intenção dele é desqualificar-me perante toda a gente, interpelando-me acerca de pintores ou literatos de meia tigela, que ninguém conhece nem quer conhecer, cá estou eu, para lhe fazer a cama sem que disso se aperceba. Infame! Já tenho o meu plano bem meditado e não irei falhar. Assim, […] e depois de […] atraio-o ao meu quarto e acuso-o de atentado ao pudor, em altos berros. O Papá anda com medo dos ladrões e tem um revólver na mesinha de cabeceira. Se eu o segurar bem e não deixar que mostre o rosto, virando-se, o Papá dispara de […] verdadeira dor de alma. Acredita que eu gosto dele, mas irá custar-me muito […] já mal se mexe […]”
Noutra página:
“ […] pois, como sabes, morreu. Não me culpo de nada. De certa maneira, agora estou muito mais em paz. Ouvi outra vez o Carnaval, Opus 9, de Schumann, e começo a gostar daquilo.”
O manuscrito não vinha assinado. Apesar disso, decidi comunicar o caso à Polícia e à Sociedade Ornitológica.