29 de outubro de 2008

HOMENAGEM A MONTAIGNE

" No mais elevado trono do mundo, não estamos nós sentados em cima de um traseiro ?"
(Michel de Montaigne, Essais, III, 3)

Em dia d’aniversário

D. Duarte quis saber

Se podia engrandecer

Seu saber imaginário.

 

Quis conhecer seus limites

Medir todas as leituras

Comparar as criaturas

Com seus próprios apetites.

 

Julgou ser excepcional

Muito acima do vulgar

Pois se dava a divagar

Coisas só do seu bornal.

 

Mas de súbito irrompeu

Do profundo da barriga

O flato duma intriga

Do comido ao que comeu.

 

Duarte então entendeu

Como qualquer plebeu

Esse dom que o adornava

E em vapor o tornava.

 

Era de simples matéria

A heráldica passada;

Há lá coisa mais provada

Na bicheza pouco etérea !

 

25 de outubro de 2008

GERIR O EGOÍSMO


Tenho de confessar que perfilho uma concepção desalentada e céptica acerca da bondade intrínseca da condição humana. Nem sequer direi, acompanhando Rousseau, que o ser humano era originariamente bom, antes de ser moralmente destruído pelas delícias convencionais da civilização. O caso, para mim, perfila-se ainda com maior dramatismo. Somos bichos egoístas desde o nascimento. Experimentemos dar brinquedos a uma criança e coloquemos uma outra a seu lado, para que ambas possam recrear-se. Aquela que primeiro identificou os objectos como seus, desde que abandonada à espontaneidade da sua imediata reacção, não permitirá que a outra lhos dispute, sequer que os utilize com posterior retorno. Ou, na melhor das hipóteses – talvez advertida por alguma voz adulta mais caridosa -, consentirá em partilhar os seus jogos, sim, mas fazendo sentir a outrem o seu incontestável estatuto dominante. Acredito no altruísmo? Sim, mas apenas como resultado derivado e reflexo de um porfiado exercício de Cultura. Por isso foi ela para mim, mais do que uma opção, um destino que quis abraçar e uma forma de minorar (sem contudo substituir) o instinto primitivo. 

Somos egoístas desde o começo e iremos manter-nos como tal até ao fim. Há implicações de natureza política que devem derivar-se desta dimensão antropológica. Estou persuadido que as propostas de organização social nada ganham em abandonar-se à ficção verbal da solidariedade, do altruísmo, da grande tirada oratória idealista, da propaganda ruidosa e estéril através da emoção. Tudo teriam a ganhar, porém, se metodicamente, implacavelmente, friamente, concebessem equações de convivência que apontassem para uma gestão criteriosa e para uma correcta ponderação dos egoísmos em luta. O Estado seria então, como foi desejado por alguns teorizadores sociais da época contemporânea, o agente moderador do Todo sobre o agenciamento individualista das partes. Ou, dito de outro modo, o obreiro do altruísmo geral possível sobre a força dispersiva das subjectividades. São estas as razões que me fazem acreditar numa Democracia Social, num Socialismo humanista e realista que não desconheça ou sofisme o Homem concreto na sua vida concreta. Aquém disto temos Darwin; além disto temos Estaline. E entre as propostas sociais de um e de outro, que o Diabo possa vir, para fazer a sua escolha.

23 de outubro de 2008

DORIAN GRAY REVISITADO

Óscar Wilde escreveu um dia uma parábola imorredoira: a do Retrato de Dorian Gray. O protagonista era um dândi cúpido, exibicionista e dúplice, talvez um pouco à maneira do próprio Wilde. Por isso, ia vogando, aparentemente incólume, por entre os rumores da agitação social e os brilhos dos salões mundanos. A sua aparência, cuidada, quase perfeita, servia de salvo-conduto para a obtenção das chaves do sucesso, que lentamente o elevavam às culminâncias da sua ambição. E no entanto … E no entanto, à boa maneira da denúncia romântica, Dorian Gray apercebe-se que aloja no seu próprio domicílio o instrumento denunciador da sua verdade mais íntima. Um espelho, um simples e inocente espelho, irá registar-lhe em cada dia a progressão dos vícios, a devastação das concessões malévolas, a aliança com o lodo mais infamante dos infames do seu tempo.

Dizem os estudiosos do corpo humano que este se degrada implacavelmente porque a usura do tempo  lhe mina a robustez material e o viço orgânico. Hoje claudica um pouco mais o sistema respiratório, amanhã o digestivo, depois o circulatório, finalmente tudo junto, até ao colapso final. O que ainda ninguém pôde ou quis estudar, com assumida intenção reformadora, foi o desgaste inexorável da Alma (seja lá isso o que fôr para padres ou laicos) com a decadência irreversível daquela matriz de original inocência e bondade que talvez um dia tenhamos exibido no nosso rosto, adormecido e suave, de crianças. Cedemos hoje num princípio, amanhã num juramento, depois num compromisso, agora num valor fundamental, logo num pilar de carácter, até entregarmos toda a nossa integridade ao primeiro proxeneta que entenda explorar o nosso corpo moral. No entanto, talvez guardemos, em local discreto e privadíssimo da nossa própria casa, o impassível espelho dos Dorian Gray em que nos vamos transformando, mostrando-nos em cada hora a distorção monstruosa da nossa abdicação. 

Talvez aí resida a última esperança de um resgate improvável. Mas quem quer ver? Quem? 

 

20 de outubro de 2008

ORAÇÃO DOS EXCLUÍDOS


A Humanidade culta apaixonou-se pela morfologia humana desde os remotos tempos da Grécia clássica. Os maiores escultores, como Policleto ou Fídias, apresentaram o corpo humano como se as suas proporções e configuração fossem em si mesmas a própria comprovação da superioridade estética. Esta manifestação de narcisismo prolongou-se e adensou-se no interior do idealismo cristão, que assegurava que a imagem da espécie humana era um símile daquela que a própria Divindade havia ostentado, ao fazer-se carne e Verbo, para nos salvar. “Fomos criados à imagem Dele, à semelhança Dele. Somos, por isso, as mais perfeitas e superiores criaturas, desde sempre e para sempre”.

É aqui que o meu racionalismo engasga. A Natureza, criada ou não por Deus, é uma sinfonia incomparável de formas e cores, parecendo ter sido concebida ou simplesmente articulada para nos deslumbrar. Não estivesse eu tão agarrado à minha casca corpórea e gostaria de possuir as maravilhas cromáticas da cauda do pavão; e bem assim a resistência incomparável da morfologia da formiga, que leva para a sua lura um mantimento várias vezes superior ao próprio peso ; ou então a graça de movimentos das garças, a rapidez de reacção dos tigres, a incomparável elegância das águias, vogando no azul dos céus.

Se eu fosse pavão, ou formiga, ou garça, ou tigre, ou águia – e se tivesse o privilégio de orar ao Deus que me criou (fosse Ele qual fosse) – a minha prece seria talvez assim: - “Obrigado, meu Deus, por me teres criado perfeito. Exactamente à tua imagem e semelhança!”

16 de outubro de 2008

NÁUFRAGOS DA TREVA

Vi, por especial consideração de um Amigo, a representação deste nosso mundo sublunar, colhida a partir de um satélite, à noite. Uma fascinante miríade de luzes, uma bela flor reverberante, uma sementeira de diamantes, aos milhares, ocupa literalmente todo o território da Europa Ocidental, da América do Norte, do Japão. Brilha também a Índia, com a maior parte dos seus luzeiros aninhados junto à costa e tornados menos profusos para o interior. O Brasil, essa parte de nós mesmos, também ofusca junto ao mar, como se todas as suas Iemanjás aí se tivessem concentrado, mas deixando o interior num lume vago e intermitente. Brilha pouco, quase nada, a África, condenada irremediavelmente ao negrume do seu negro, belo e silencioso coração. Vista a partir do ar, esta Terra será para uns a jóia bendita de uma abundância sem limites, como cornucópia exposta nas montras do comércio e na voracidade das vontades de consumo; para outros, porém, ela é só a montra distante, apenas imaginada em sonhos, a promessa virtual, o Eldorado por cumprir. Lá do cimo, lá bem do cimo, não se vêem naufrágios da Medusa de um qualquer Géricault. Mas eles existem. Saem das costas magrebinas ou antilhanas, peregrinam como errantes e improvisados nautas de um injusto Poseidon, são arremessados como coisas das escarpas de Cila às ciladas de Caribdes e apodrecem desmerecidamente no mar, como frutos que não puderam desabrochar, nem sequer num humilde vagalume. É muito bela a Terra, fascinante planeta azul, visto a partir dos longes e do alto. Mas ela mata sem pudor, com eficácia cruel, quando promete a todos os direitos de luz que só alguns conhecem. É por isso que o negrume da negra África se torna mais denso, mais implacavelmente acusatório. Como se assistíssemos ao último bater de um coração fatigado. Até quando?

12 de outubro de 2008

CARNAVAL, OPUS 9, DE SCHUMANN

Um dia, descobri numa velha mala, desde há muito lançada para o desvão de um sótão poeirento, o seguinte manuscrito, incompleto e truncado, quer por lhe faltarem páginas, quer porque a humidade do local o tornara, em certas passagens, ilegível:

 Sim, é verdade, eu odeio-o. Há nele um não sei quê de superioridade que me irrita e desconcerta. Ontem mesmo aproveitou a oportunidade de estarmos sós e perguntou-me: «Conheces o Carnaval, Opus 9, de Schumann?». Forte asno! Como se fosse só ele a gostar de música clássica. Senti-me tão vexada que lhe virei as costas, não sem que antes dissesse para os meus botões – Qualquer dia, pagas-mas todas juntas! Claro que é absolutamente necessário (ilegível a partir daqui)”.

 Texto de uma outra página:

 “ […]  se te apetecer. Sofre muito. Já nem canta pela manhã. E eu estava muito habituada a esse acordar. Sabes que o bicho se me afeiçoou deveras. Não admira, criei-o desde muito novo, era quase um pássaro implume. E habituei-o a vir mordiscar-me o dedo, para pedir comida. Mais tarde, já o podia levar comigo para o banho e ele ficava empoleirado no (grande mancha de humidade, alastrada por várias páginas, impedindo a leitura)”

 Imagina que decidi ir ouvir o Carnaval, de Schumann. Um horror! Não sei como se pode gostar daquilo. E na festa da mamã lá estava ele, cheio de prosápia, rodeado de discípulos meios embasbacados. Passou por mim, quase sem reparar que eu existo e limitou-se a dizer «Olá, está com bom parecer.». Senti vontade de o esbofetear.”

 Mais à frente:

 “ […] Lembro-me como se fosse hoje. Trilhou a pata no bordo da gaiola e, espantado com um gesto que fiz por inadvertência, partiu-a, sem que eu me tivesse dado conta disso. Depois foi o declínio. As minhas leituras deixaram de ser acompanhadas […] e cabeceia muito, talvez por causa da febre. […] isto porque, se a intenção dele é desqualificar-me perante toda a gente, interpelando-me acerca de pintores ou literatos de meia tigela, que ninguém conhece nem quer conhecer, cá estou eu, para lhe fazer a cama sem que disso se aperceba. Infame! Já tenho o meu plano bem meditado e não irei falhar. Assim, […] e depois de […] atraio-o ao meu quarto e acuso-o de atentado ao pudor, em altos berros. O Papá anda com medo dos ladrões e tem um revólver na mesinha de cabeceira. Se eu o segurar bem e não deixar que mostre o rosto, virando-se, o Papá dispara de […] verdadeira dor de alma. Acredita que eu gosto dele, mas irá custar-me muito […] já mal se mexe […]

 Noutra página:

 “ […] pois, como sabes, morreu. Não me culpo de nada. De certa maneira, agora estou muito mais em paz. Ouvi outra vez o Carnaval, Opus 9, de Schumann, e começo a gostar daquilo.”

 O manuscrito não vinha assinado. Apesar disso, decidi comunicar o caso à Polícia e à Sociedade Ornitológica. 

8 de outubro de 2008

A VISITA DE HERACLITO

Creio ter sido Heraclito, o filósofo da permanência e da mudança, que disse que o caminho a subir e a descer era o mesmo. Lembrei-me dele a propósito do imperativo ético. 

A tradição judeo-cristã firma o dever-ser no altruísmo, no serviço para com os outros, ou seja, nas diversas manifestações da filantropia. Isto produz em certas consciências – que alguns apelidarão de burguesas (TGV do marxismo) ou de pequeno-burguesas (via reduzida do neo-marxismo) – um singular complexo de culpa, sempre que as manifestações do egoísmo se impõem às generosidades do viver para os outros. Aliás, o cristianismo e o judaísmo são, visceralmente, “religiões da culpa”. Imputam ao pecado a decadência do Homem, não se chegando muito bem a perceber se esse pecado derivou da fornicação ou do acto de desobediência para com a Divindade. 

Seja como for, a verdade é que estas religiões pariram uma multidão de crentes timoratos, sempre dispostos a interiorizar, sob a forma da culpa, todos os desvios, reais ou supostos, que os teóricos lhes foram imputando. Lembro-me que tive amigos de infância, nascidos no seio de famílias com orçamentos médios, que, após umas leituras apressadas do “Manifesto Comunista”, escondiam envergonhadamente o seu “estatuto de classe” e diziam barbaridades como esta: “O meu pai é engenheiro mas é de esquerda” !!! Era uma miséria verbal muito próxima desta outra forma de cretinice: “A minha tia é beata mas fuma”. 

O complexo de culpa de que padeceu toda a minha geração gerou duas perversões: a dos que foram compelidos a “adorar” as ideologias de esquerda como exorcismo de um pretenso pecado social de origem e a dos que aplaudiram o Estado Novo e se fizeram fascistas, como resposta reflexa a esta forma larvar de chantagem. Dou-me a pensar, hoje, que muito outros teriam sido os caminhos da minha geração se esta tivesse sabido manejar o egoísmo como forma de reivindicação social. É que, a auto-defesa do indivíduo – quando tal individualismo não entra em vertigens doentias – supõe e implica que as reclamações dirigidas aos governos acabem por desaguar em lógicas de Bem Comum. Explico melhor: parto do meu egoísmo e do complexo das minhas necessidades e reclamo escolas públicas competentes (porque me ficam mais baratas), hospitais públicos eficazes e bem equipados (porque preciso deles para tratar as minhas doenças), casas com rendas acessíveis (porque quero instalar os meus filhos recém-casados), crédito não especulativo (porque necessito de ampliar o meu negócio) etc, etc. 

Foi por isso que o enigmático Heraclito me veio visitar. Com efeito, é efectivamente o mesmo o caminho a subir ou a descer. Necessário é que não me venham impingir balelas tolas ou açular culpas imaginárias. Por um lado, porque já sou crescidinho; e, por outro, porque já não estou com pachorra para ouvir o Conselheiro Acácio. 

4 de outubro de 2008

COISAS


As coisas rodeiam-nos, interpelam-nos, afagam-nos, intimidam-nos. Elas são, sob a nossa vista, realidades aparentemente neutras e silenciosas. Por detrás desta aparente neutralidade estamos nós, inteiriços e expectantes. As coisas são a nossa história, a família de parentes com que contamos a todo o momento, mas que ignoramos tantas vezes. 

A espaços, remexendo uma gaveta, descobrimos coisas que já nem sequer lembrávamos, mas que nos emocionam: as agulhas de tricotar da Mãe, a cigarreira do Pai, ainda com os cigarros partidos ao meio, para iludir a pressão do vício; a carta de namoro, vinda daquela jovem que hoje é sexagenária e tem filhos de outro; o brinquedo de latão que agora não se fabrica, ainda colorido mas cheio de mossas; a cópia da escola que os “grandes” guardaram porque apresentava as letras bem certinhas e desenhadas, no alinhamento dos cadernos de duas linhas (“vai ser escritor, o pequeno tem pinta de escritor!...” ) ; a fotografia de uma festa de aniversário, com aquele Amigo antigo, ceifado antes do tempo por um absurdo acidente de automóvel. 

Tudo está ali, passivo e renitente, na verdade do “em si”, mas dinâmico e mobilizador, na redescoberta do “para nós”. As coisas somos nós, sem que elas o possam saber; somos só nós, que as anexamos em silêncios de tédio ou em gritos de entusiasmo, registos de tragicomédia,  notas da sinfonia de uma vida que vai avançando, para que cada um de nós passe a ser coisa. Também.