As coisas rodeiam-nos, interpelam-nos, afagam-nos, intimidam-nos. Elas são, sob a nossa vista, realidades aparentemente neutras e silenciosas. Por detrás desta aparente neutralidade estamos nós, inteiriços e expectantes. As coisas são a nossa história, a família de parentes com que contamos a todo o momento, mas que ignoramos tantas vezes.
A espaços, remexendo uma gaveta, descobrimos coisas que já nem sequer lembrávamos, mas que nos emocionam: as agulhas de tricotar da Mãe, a cigarreira do Pai, ainda com os cigarros partidos ao meio, para iludir a pressão do vício; a carta de namoro, vinda daquela jovem que hoje é sexagenária e tem filhos de outro; o brinquedo de latão que agora não se fabrica, ainda colorido mas cheio de mossas; a cópia da escola que os “grandes” guardaram porque apresentava as letras bem certinhas e desenhadas, no alinhamento dos cadernos de duas linhas (“vai ser escritor, o pequeno tem pinta de escritor!...” ) ; a fotografia de uma festa de aniversário, com aquele Amigo antigo, ceifado antes do tempo por um absurdo acidente de automóvel.
Tudo está ali, passivo e renitente, na verdade do “em si”, mas dinâmico e mobilizador, na redescoberta do “para nós”. As coisas somos nós, sem que elas o possam saber; somos só nós, que as anexamos em silêncios de tédio ou em gritos de entusiasmo, registos de tragicomédia, notas da sinfonia de uma vida que vai avançando, para que cada um de nós passe a ser coisa. Também.
5 comentários:
MANTAS DE TRAPOS
Na minha mente, em imaginação,
perpassam rostos, mãos que utilizaram
aqueles vários traste que ficaram
de recuados tempos que lá vão.
Olha as colchas tecidas de farrapos
por enrugadas mãos de alguma avó
que para se entreter, vivendo só,
fazia mantas com montões de trapos.
Olha aquelas panelas ferrugentas
de ferro com três pés, aquele leito
de tábuas de castanho carunchentas.
Essas coisas sem préstimo hoje em dia
têm alma própria e trato-as do meu jeito
como se fossem jóias de valia!
João de Castro Nunes
MANTAS DE TRAPOS
Na minha mente, em imaginação,
perpassam rostos, mãos que utilizaram
aqueles vários traste que ficaram
de recuados tempos que lá vão.
Olha as colchas tecidas de farrapos
por enrugadas mãos de alguma avó
que para se entreter, vivendo só,
fazia mantas com montões de trapos.
Olha aquelas panelas ferrugentas
de ferro com três pés, aquele leito
de tábuas de castanho carunchentas.
Essas coisas sem préstimo hoje em dia
têm alma própria e trato-as do meu jeito
como se fossem jóias de valia!
João de Castro Nunes
Meu Amigo,
Será que somos a alma da nossas coisas? Sem nós elas são só coisas que estão para ali.
Um forte abraço
Excelentíssimo Amigo:
Tudo é questão de sensibilidade. Teixeira de Pascoaes sentia a alma das coisas. E soube divinamente expressá-lo. Nem todos, aliás, somos Nerudas ou coisa que o valha, Poeticamente falando e sentindo, tudo tem alma, a sua própria alma. As coisas nunca a perdem. Somos nós que, por falta de imaginação, a vamos perdendo pela vida fora. Feliz de quem chega ao fim com ela! Como as "cousas", que sempre a conservam, ou seja, nunca a perdem.. Para os poetas... pelo menos! Desculpe a fantasia!
Com todo o meu incondicional apreço.
João de Castro Nunes
TRASTES VELHOS
Com a presteza com que o tempo salta,
alheio a toda a espécie de conselhos,
tem razão, Professor, não muito falta
para não sermos mais que trastes velhos.
Dos nossos livros que estimamos tanto
e nos fizeram grata companhia,
que vai ser deles, logo que entretanto
chegar o nosso impreterível dia?!...
De estudos a que estamos procedendo
alguém publicará, já não vivendo,
o respectivo texto inacabado?
De qualquer modo creio, Professor,
que ficará de nós algum calor
em cada traste nosso cá deixado!
João de Castro Nunes
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