23 de maio de 2007

ELOGIO DE MEFISTÓFELES

Será que o “bom selvagem” de Rousseau só era bom por ser selvagem? Será que a Civilização, com as suas promessas de melhor e mais fácil vida para todos, com o incitamento a que ganhemos mais e mais dinheiro, a que sejamos “notáveis”, a que tenhamos importância social, a que deslumbremos os nossos competidores directos, será que esta Civilização nos foi roubando toda a inocência, toda a indulgência, todo o sentido de alteridade, e nos colocou na alma seca o riso sardónico de Mefistófeles? Este Mefistófeles percorreu toda a alta literatura, do século XVI em diante. Ocuparam-se dele espíritos tão cintilantes como os de Marlowe, Shakespeare, Goethe, Thomas Mann e Paul Valéry. Mefistófeles não se limita a ser uma grotesca e primária personificação do Mal. Há nele outra subtileza, outra argúcia, outra vivacidade no modo como nos sonda os sótãos da respeitabilidade. É uma espécie de diabrete bem vestido e culto, que eu gosto de imaginar de monóculo e fraque. Pisa as alcatifas dos teatros da moda, possui as amantes mais capitosas que a grande vida mundana pode oferecer, frequenta os meios mais requintados, bebe champanhe em lupanares de luxo e parece estar fora do tempo porque ostenta um ar de permanente juventude. O meu Mefistófeles, aquele que eu construí com a minha imaginação e aprendi a temer em todos os momentos dos ajustes de contas comigo mesmo, é esta mistura exótica de aparato e de finura. Mas é também um pulha. Talvez o maior dos que pude conceber. Porquê? Porque nos arranca a composta máscara da decência. Todos nós – uns mais do que outros, certamente – possuímos mecanismos de auto-justificação que nos santificam, que nos salvam aos olhos de nós próprios. Conheço gente que é capaz de perpetrar as maiores infâmias sob uma girândola de pretextos, todos eles amarrados à absolvição do moralismo fácil. Assim, todos nos tornamos íntegros, estimáveis, exemplares, sob a caução desta espantosa fraude, que pode escapar a todas as criaturas … menos a Mefistófeles. É indubitável que se o meu Mefistófeles se debruçasse sobre o arcaico e ingénuo comportamento do “bom selvagem” de Rousseau, é seguro e certo que ele lhe haveria de descobrir, nos arcanos mais fundos da alma em bruto, o sedimento, o vestígio da perversidade mais discreta. Mefistófeles fascina-me porque conhece o mundo como ninguém. Não aquele mundo tal como teria sido gerado na primeira manhã da Humanidade. Antes este mundo, o que temos, o que habitamos, o que ajudamos a persistir, tal como foi sendo construído por trogloditas ferozes, primeiro; e depois por fradalhões gulosos, e ainda por Bórgias escondendo venenos em anéis assassinos , e depois por mercadores cúpidos, e agora por politiquelhos manhosos. O que confesso admirar em Mefistófeles é a lucidez gelada, a imperturbabilidade com que descompõe o retrato de Dorian Grey, tal como o esboçou Óscar Wilde. É pouco provável que este texto seja apreciado pelos que adoptam uma leitura optimista da natureza humana. Mas é bom que esses Amigos de Rousseau fiquem bem calados. É que, a não ser assim, teria de pedir ao meu bom Amigo Mefistófeles para lhes fazer uma visitinha de cortesia …

21 de maio de 2007

ÉTICA E SOCIEDADE

Damos o nome de Ética aos códigos formais e informais de comportamento, ou seja, a toda a sorte de directrizes e de normas, assentes no “dever-ser”, a que nos submetemos de maneira voluntária ou coactiva. Através dessas tábuas normativas, dessas imposições colectivas, vamos adequando as nossas acções ao conjunto das finalidades sociais. Mas a Ética distingue-se do Direito porque a sua obrigatoriedade resulta mais de uma anuência íntima, de uma gestão de deveres para com os outros, e menos de uma invocação de vantagens pessoais. Ao passo que o Direito legisla para o mundo dos interesses e dos egoísmos, a Ética estatui para a área da sociabilidade e da alteridade. A Ética é, assim, o domínio do altruísmo e da dádiva gratuita. Talvez não seja aventuroso dizer que o Direito e a Ética dimanam simetricamente dos dois núcleos a que está subordinada a nossa condição de seres humanos. Se procurássemos uma definição antropológica para a nossa verdade mais íntima, talvez que a mais evidente e imediata fosse a das exigências biológicas, às quais se submete forçosamente toda e qualquer possibilidade de sobrevivência. Queiramo-lo ou não, somos uma parcela de Natureza viva e harmonizamo-nos, desse ponto de vista, com os ritmos biológicos que nos dão suporte à continuidade da vida. Nas imposições biológicas há uma ferocidade ilimitada. Pelas Histórias Trágico-Marítimas da nossa epopeia quinhentista foram-nos descritas as selváticas opções que se colocaram aos náufragos, perdidos em hostis paragens, privados de líquidos e de víveres que lhes garantissem a continuidade da vida. Essas crónicas não disfarçam o esvaimento dos mais elementares princípios e o tripúdio dos tabus humanos mais enraizados. Então se praticaram assassínios selectivos para que, com base nos mesmos, se pudessem realizar digestões canibais. Matar para não morrer é a lógica que comanda, no limite, a acção de seres humanos em privação insuperável. Este dado de sobrevivência egoísta é o que deriva do mecanicismo implacável dos nossos suportes biológicos. É a partir da satisfação, por mínima que seja, das suas imposições que o colectivos dos seres humanos pode realizar o salto do Direito positivo para a Ética ideal. Nem Gandhi nem a Madre Teresa de Calcutá puderam dispensar-se da sua parcimoniosa taça de arroz para construírem, depois disso, a gloriosa sinfonia da sua dádiva aos outros. Tudo se joga, então, entre as balizas de um egoísmo que a nossa materialidade física nos impõe e as fronteiras de um altruísmo a que nos incita o acto de vivermos com os outros e ao lado dos outros. É então que, com a fome física saciada, nos podemos consagrar ao sacerdócio social (terminologia cara ao positivismo comtiano) do “viver para os outros”. Uma Ética assim imaginada, assim inferida do equilíbrio precário entre o egoísmo biológico e o altruísmo social, num diálogo lúcido, que não escamoteia o primado do primeiro sobre o segundo, uma Ética assim reconhecida, é seguramente mais profícua do que as prescrições dos códigos sagrados, sejam eles os do Corão, os dos Evangelhos ou os de quaisquer outras doutrinas vocacionadas à salvação da espécie. Por muito que isto nos doa e nos destrua a imagem idealizada de uma “Humanidade regenerada”, de que falam os santos e os revolucionários, por muito que tal nos pareça menos nobilitante ou menos generoso, é sobre a gestão dos egoísmos e sobre a disciplina dos mesmos, decretada a partir da sociabilidade altruísta, que se podem construir tábuas de direitos e deveres compatíveis com a verdade do que somos.

15 de maio de 2007

TOADA GARRETTIANA


No cesto da gávea
O homem do mar
Espia a fronteira
Do seu labutar.

Um cesto suspenso
Num barco vazio
Possui como senso
O seu desafio.

Bate a onda o casco
Igual por igual
Indiferente ao drama
Do Bem ou do Mal.

Olhos de gageiro
Não podem cerrar
Sem verem primeiro
O fim do seu mar.

E fitam, procuram
A norte e a sul,
Guardando do céu
Esse imenso azul.

É o Mal vermelho?
É o Bem azul?
O Bem vai p'ró norte?
Vai o Mal p'ró sul?

Gageiro suspenso
Num cesto de mar
Espia a fronteira
Do seu labutar.

Num cesto suspenso
No meio do mar
Sem orla de praia...
Há que mourejar!


9 de maio de 2007

ALEGORIA DO TEMPO

Em figuração alegórica, gosto de comparar a vida humana a uma escalada a partir do sopé de uma pedregosa mas bela colina. A primeira fase é aquela em que as coisas estão demasiadamente próximas de nós e em que o esforço da subida mal se sente. A vizinhança das coisas que nos rodeiam trivializa-as a um tal ponto que mal reparamos nelas. Estão ali – e é tudo. Esta percepção imediata impede-nos de as relacionar, de lhes procurar conexões e alianças, de as sopesar e até de as valorizar convenientemente. A Mãe está ali ao pé, pronta a proteger-nos e a amparar-nos nas quedas. O Pai repete todos os dias o gesto de abrir a porta, quando parte para o trabalho, e o som de entrar em casa com a pergunta “há gente?”, quando regressa. Os Amigos convocam-se e aparecem invariavelmente, para festejar um aniversário, para ouvir aquela música de sensação, para discutir aquele projecto que surgiu em comum. Estão todos lá, com a naturalidade das paisagens fixas, das realidades alinhadas numa base sólida, tida por inamovível. E no entanto, de longe em longe, a estabilidade desse pequeno mundo recebe o golpe de um pequeno terramoto. A Mãe adoeceu; o Pai partiu por longo tempo; o Amigo – disseram-nos – vai ser operado a uma maleita qualquer. Mas persuadimo-nos de que a doença será breve e curável, a partida durará apenas o tempo de saudades transitórias e a operação correrá muito bem, pois o cirurgião é de renome. De súbito, damo-nos conta que o tempo foi passando e que já nos encontramos a meio da subida. E quando voltamos a olhar, com maior atenção e mais sagaz inteligência, verificamos que no rosto da Mãe se cavaram rugas que outrora lá não estavam; que os movimentos do Pai são mais pausados, mais tacteados, mais cautos, menos ágeis; e que o Amigo já não aparece necessariamente naquela hora de urgência ou de doméstica festividade. Aliás, nós próprios iremos avocar, no galgar íngreme da colina, a posição e o estatuto dessas figuras emblemáticas. “Filho és, pai serás… ” – e com esta cegarrega da sabedoria popular, a progressão da subida, feita com alvoroço nos primeiros arrancos, converte-se num exercício brevemente reflexivo. Debatemo-nos com a falta de tempo enquanto o tempo por nós vai passando, implacavelmente: as urgências que nos conclamam a meio do percurso são demasiadamente impositivas – urgências com a escola das crianças, com o seguro do automóvel, com as compras do mês, com o cumprimento dos deveres profissionais, com o fazer da barba, com a ida ao cabeleireiro, em suma, com as mil coisas que nos assolam o quotidiano. Será apenas no momento em que os Pais já partiram, numa partida sem retorno, em que os Filhos já nos deixaram a casa, para só nos visitarem como Amigos mais próximos, em que os Amigos nos falham à chamada, será nesse momento que concluímos ser já considerável, deveras considerável, a caminhada cumprida, a partir do sopé da vida. Olhamos então à nossa volta e vemos que as coisas de outrora, tão próximas, tão singulares, tão visíveis, se talham, em contorno indeciso, no horizonte da distância. Estonteados, reparamos então em nós mesmos, para descobrirmos no nosso rosto a face rugosa da Mãe que já não está, na vacilação dos nossos passos, o eco (só o eco) alquebrado dos gestos paternos, agora ausentes, no silêncio dos que nos quiseram bem, o sulco discreto de uma saudade só nossa e sem fim. Estamos, finalmente, no topo. Olhamos em todas as direcções e descobrimos, enfim, que a nossa maior sabedoria se acumula naquele cume da vida em que se divisa o tempo de dizer adeus.

4 de maio de 2007

SOBRE A INOCÊNCIA

- As crianças são uma maravilha, não acha?
- Sim, as crianças são uma maravilha quando os adultos o sabem ser também.
- Significa isso que não acredita na inocência?
- Eu não sei se a inocência existe. Acredito, isso sim, na existência da inconsciência. Um bebé enternece-nos porque o vemos abandonado à sua inconsciência. Repare o meu Amigo que alguns estudiosos da natureza humana se negaram a conferir à infância, só porque é infantil, um estatuto angelical. Freud, por exemplo, não deixou de dizer que as crianças são, no seu comportamento sexual, a versão mais acabada da “perversidade polimorfa”. Por outro lado, registam-se frequentemente os mais aberrantes comportamentos infantis para com os animais. Há crianças que gostam de endoidecer cães, atando-lhes chocalhos aos rabos; outras, fazem inflar o corpo de sapos ou de rãs, ao ponto de lhes provocarem o rebentamento; outras ainda, divertem-se com a mutilação de insectos. O que me parece acontecer é que os seres humanos têm uma imensa necessidade de se imaginarem puros, cândidos, impolutos, num qualquer momento das suas vidas. E por não lhes ser possível descortinar, em momentos mais adiantados da respectiva evolução, uma tal e tamanha condição arcangélica, daí que a tenham reportado às fases mais atrasadas do seu desenvolvimento.
- Acha então que as crianças são pérfidas, maldosas, perversas, como queria Freud?
- Não necessariamente. O que acho é que as crianças não têm uma natureza diversa da dos adultos. Nem diversa, nem, necessariamente, melhor. A alegada inocência das crianças resume-se, em meu entender, à latência do seu potencial. E este tanto pode expressar-se numa futura harmonia de valores, num decidido e positivo avanço para a Luz, como numa posterior disfunção de crenças e atitudes, ou seja, num retrocesso sem remédio para as Trevas da crueldade, do egoísmo e da frigidez afectiva. Na maior parte dos casos, a criança irá plasmar no mais íntimo dela própria uma simbiose de Luz e Trevas, dependendo, no concreto, a composição da sua futura personalidade da orientação do respectivo processo educativo. Acho indispensável que, mais do que celebrar no abstracto a mirífica inocência das suas crianças, cada sociedade pergunte, momento a momento, o que está a fazer por elas e como as está a educar. Afinal, tudo (quase tudo?) depende disso.