4 de maio de 2007

SOBRE A INOCÊNCIA

- As crianças são uma maravilha, não acha?
- Sim, as crianças são uma maravilha quando os adultos o sabem ser também.
- Significa isso que não acredita na inocência?
- Eu não sei se a inocência existe. Acredito, isso sim, na existência da inconsciência. Um bebé enternece-nos porque o vemos abandonado à sua inconsciência. Repare o meu Amigo que alguns estudiosos da natureza humana se negaram a conferir à infância, só porque é infantil, um estatuto angelical. Freud, por exemplo, não deixou de dizer que as crianças são, no seu comportamento sexual, a versão mais acabada da “perversidade polimorfa”. Por outro lado, registam-se frequentemente os mais aberrantes comportamentos infantis para com os animais. Há crianças que gostam de endoidecer cães, atando-lhes chocalhos aos rabos; outras, fazem inflar o corpo de sapos ou de rãs, ao ponto de lhes provocarem o rebentamento; outras ainda, divertem-se com a mutilação de insectos. O que me parece acontecer é que os seres humanos têm uma imensa necessidade de se imaginarem puros, cândidos, impolutos, num qualquer momento das suas vidas. E por não lhes ser possível descortinar, em momentos mais adiantados da respectiva evolução, uma tal e tamanha condição arcangélica, daí que a tenham reportado às fases mais atrasadas do seu desenvolvimento.
- Acha então que as crianças são pérfidas, maldosas, perversas, como queria Freud?
- Não necessariamente. O que acho é que as crianças não têm uma natureza diversa da dos adultos. Nem diversa, nem, necessariamente, melhor. A alegada inocência das crianças resume-se, em meu entender, à latência do seu potencial. E este tanto pode expressar-se numa futura harmonia de valores, num decidido e positivo avanço para a Luz, como numa posterior disfunção de crenças e atitudes, ou seja, num retrocesso sem remédio para as Trevas da crueldade, do egoísmo e da frigidez afectiva. Na maior parte dos casos, a criança irá plasmar no mais íntimo dela própria uma simbiose de Luz e Trevas, dependendo, no concreto, a composição da sua futura personalidade da orientação do respectivo processo educativo. Acho indispensável que, mais do que celebrar no abstracto a mirífica inocência das suas crianças, cada sociedade pergunte, momento a momento, o que está a fazer por elas e como as está a educar. Afinal, tudo (quase tudo?) depende disso.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

«(…) as crianças são uma maravilha quando os adultos o sabem ser também (…)»
«(…) as crianças não têm uma natureza diversa da dos adultos (…)»
«(…) a criança irá plasmar (…)no concreto (…) [a] orientação do respectivo processo educativo (…)»

Meu Caro Amigo,
Tomei a liberdade de destacar do seu texto os excertos que antecedem este comentário. Na leitura que faço da sua magnífica postagem sob a forma de diálogo considero-os a chave de toda a explicação do problema que levanta.

Acho lapidar a segunda transcrição, porque em poucas palavras coloca a essência do quanto se pode dizer sobre o assunto. Uma criança só é um adulto em crescimento, nada mais. A marca genética que lhe cabe e o acompanhará ao longo da vida está lá, toda inteira e sem mácula de espécie nenhuma. Diria mesmo mais, sem «distorções» de socialização, porque, afinal, a criança será sempre o somatório de duas parcelas: do inato e do adquirido, sendo que a primeira define características basilares que a segunda pode modificar. Um criminoso não nasce criminoso, mas as «aquisições» posteriores podem fazer dele um fora-da-lei.

Na terceira transcrição o meu Amigo refere o «processo educativo» e há por aí muito boa gente que interpreta de modo redutor este complexo sistema de «aquisição», fixando-se exclusivamente na entidade escola e outros, mais abrangentes, na entidade escola-família. Ora, sabemos que o «processo educativo» pode e deve ser entendido como o «modo de socialização», ou seja, a maneira como o indivíduo vai sendo coercivamente integrado no grupo ao qual pertence (entenda-se que a coacção não passa sempre por formas visíveis de violência, embora seja sempre um processo violento). É um processo que não tem fim: começa no acto de nascer e acaba no de morrer. Mas é um processo de aprendizagem ao mesmo tempo que se trata de uma imposição social.

Dito de outra maneira, o «processo educativo» de que o meu Amigo fala supõe que todo o indivíduo está, por um lado, disposto a ceder à vontade do «uso e costume» do grupo social em que se insere ou foi inserido e, por outro, que o mesmo grupo social tem «valores», «usos» e «costumes» coerentes para lhe impor. Daqui a maravilhosa síntese que faz na primeira frase por mim transcrita.

Se uma sociedade não tem os valores correctos (na perspectiva das restantes sociedades e do senso comum) não poderá nunca exigir que os seus jovens e os seus componentes de qualquer idade se comportem de forma correcta.
Então, caímos, necessariamente, na perspectiva de termos de, em primeira e última instância, analisar criticamente a sociedade, para julgar as crianças.
É assim, à luz da Sociologia (e, também, da Antropologia Cultural) que, sem dúvidas, damos por errada a afirmação do nosso Épico: «O fraco rei faz fraca a forte gente»!
O rei é fraco, porque não foi socializado de acordo com os valores da «forte gente» e não o inverso… O rei fugiu ao processo educativo (ou deixaram-no fugir, transmitindo-lhe valores que não eram consonantes com os da sociedade… alguém andou mal na socialização do rei!). Quiçá, Camões estava, também, enganado, porque terá «lido» sinais de força em gente que era fraca e, no fim das contas, o rei até estava bem socializado!

Meu querido Amigo, como sempre, alongo-me muito para além do razoável. Todavia, cabe-me a oportunidade (já que estamos em maré de culpas e análises) de inquirir se serei eu culpado quando os desafios por si lançados são tão magnificamente aliciantes?