Damos o nome de Ética aos códigos formais e informais de comportamento, ou seja, a toda a sorte de directrizes e de normas, assentes no “dever-ser”, a que nos submetemos de maneira voluntária ou coactiva. Através dessas tábuas normativas, dessas imposições colectivas, vamos adequando as nossas acções ao conjunto das finalidades sociais. Mas a Ética distingue-se do Direito porque a sua obrigatoriedade resulta mais de uma anuência íntima, de uma gestão de deveres para com os outros, e menos de uma invocação de vantagens pessoais. Ao passo que o Direito legisla para o mundo dos interesses e dos egoísmos, a Ética estatui para a área da sociabilidade e da alteridade. A Ética é, assim, o domínio do altruísmo e da dádiva gratuita. Talvez não seja aventuroso dizer que o Direito e a Ética dimanam simetricamente dos dois núcleos a que está subordinada a nossa condição de seres humanos. Se procurássemos uma definição antropológica para a nossa verdade mais íntima, talvez que a mais evidente e imediata fosse a das exigências biológicas, às quais se submete forçosamente toda e qualquer possibilidade de sobrevivência. Queiramo-lo ou não, somos uma parcela de Natureza viva e harmonizamo-nos, desse ponto de vista, com os ritmos biológicos que nos dão suporte à continuidade da vida. Nas imposições biológicas há uma ferocidade ilimitada. Pelas Histórias Trágico-Marítimas da nossa epopeia quinhentista foram-nos descritas as selváticas opções que se colocaram aos náufragos, perdidos em hostis paragens, privados de líquidos e de víveres que lhes garantissem a continuidade da vida. Essas crónicas não disfarçam o esvaimento dos mais elementares princípios e o tripúdio dos tabus humanos mais enraizados. Então se praticaram assassínios selectivos para que, com base nos mesmos, se pudessem realizar digestões canibais. Matar para não morrer é a lógica que comanda, no limite, a acção de seres humanos em privação insuperável. Este dado de sobrevivência egoísta é o que deriva do mecanicismo implacável dos nossos suportes biológicos. É a partir da satisfação, por mínima que seja, das suas imposições que o colectivos dos seres humanos pode realizar o salto do Direito positivo para a Ética ideal. Nem Gandhi nem a Madre Teresa de Calcutá puderam dispensar-se da sua parcimoniosa taça de arroz para construírem, depois disso, a gloriosa sinfonia da sua dádiva aos outros. Tudo se joga, então, entre as balizas de um egoísmo que a nossa materialidade física nos impõe e as fronteiras de um altruísmo a que nos incita o acto de vivermos com os outros e ao lado dos outros. É então que, com a fome física saciada, nos podemos consagrar ao sacerdócio social (terminologia cara ao positivismo comtiano) do “viver para os outros”. Uma Ética assim imaginada, assim inferida do equilíbrio precário entre o egoísmo biológico e o altruísmo social, num diálogo lúcido, que não escamoteia o primado do primeiro sobre o segundo, uma Ética assim reconhecida, é seguramente mais profícua do que as prescrições dos códigos sagrados, sejam eles os do Corão, os dos Evangelhos ou os de quaisquer outras doutrinas vocacionadas à salvação da espécie. Por muito que isto nos doa e nos destrua a imagem idealizada de uma “Humanidade regenerada”, de que falam os santos e os revolucionários, por muito que tal nos pareça menos nobilitante ou menos generoso, é sobre a gestão dos egoísmos e sobre a disciplina dos mesmos, decretada a partir da sociabilidade altruísta, que se podem construir tábuas de direitos e deveres compatíveis com a verdade do que somos.
21 de maio de 2007
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