27 de janeiro de 2011

MEMORIAL REPUBLICANO LXII

Machado Santos, o "herói da Rotunda"

LXII - A VITÓRIA DA ROTUNDA (2)

Por esta altura, já o movimento revolucionário era abertamente discutido pelos lisboetas, em botequins e nas raras casas comerciais que se atreviam a abrir, com os taipais meio-corridos. O jornal republicano O Mundo declarara o seu aplauso à causa da Rotunda. Lisboa passou a acrescentar mais um brado ao seu rumor habitual. Por ruas escusas ou avenidas mais largas, começaram a ouvir-se os gritos, ainda por então sediciosos, de “Viva a República!”. Nos primeiros alvores do dia 5 de Outubro, um diplomata alemão, Encarregado de Negócios do Kaiser, dirigiu-se ao Quartel-General monárquico e solicitou uma suspensão das hostilidades durante uma hora, para que, segundo a sua proposta, os súbditos germânicos pudessem sair da cidade com toda a segurança. Era um gesto que apenas visava reforçar o prestígio teutónico, atendendo ao facto de serem quase inexistentes as pessoas de tal nacionalidade em efectivo estado de risco. Para que o armistício tivesse viabilidade, era necessário ser também aceite pelo comando republicano. O general Gorjão escreveu uma carta explicativa das intenções do Encarregado, arranjou-lhe uma escolta militar e aconselhou-lhe a que procurasse entender-se também com a parte oponente. E eis que o Encarregado, sob a protecção de uma escolta que ostentava uma bandeira branca, sobe a cavalo a Avenida, em direcção à Rotunda. Seriam oito horas e quinze minutos da manhã. O povo de Lisboa atribuiu imediatamente à bandeira o significado simbólico da rendição. A partir de então, explodiram incontidamente as manifestações populares de júbilo e a onda da “arraia-miúda”, liberta de recentes medos, inunda literalmente o teatro das hostilidades. No Rossio, populares entusiastas desfazem completamente as formações militares e convivem alegremente com as tropas. Quando o Encarregado de Negócios da Alemanha chegou à fala com Machado Santos, já este tinha obrigado a escolta a bandear-se com a parte republicana. Depois de algumas palavras rudes travadas entre os dois, é cometido a António Maria da Silva o encargo de redigir os termos do armistício. Ficou escrito que a suspensão de hostilidades se iniciaria às oito horas e quarenta e cinco e cessaria uma hora depois. Não havendo já escolta, Machado Santos dispõe-se a acompanhar o diplomata alemão ao Quartel-General. Seriam pouco mais do que oito e meia da manhã. Ao descer a Avenida a cavalo, o comandante da Rotunda é ovacionado por populares lisboetas, arrancado da garupa do animal e levado ao colo até ao destino. Chega ao Quartel-General desalinhado, coberto de pó e sem uma dragona, que lhe tinha sido subtraída pelas efusões apoteóticas a que fora sujeito. Assim se apresenta perante um general Gorjão completamente desalentado, por ter reconhecido a balbúrdia indisciplinada e festiva que se instalara no Rossio. Apesar de tudo, ainda encontra força e dignidade para interpelar gravemente Machado Santos, acusando-o de ter violado o armistício. Ao que este, olhando para o relógio, lhe replica que, sendo oito horas e quarenta e quatro minutos, faltava um minuto para o seu início. Depois, declara-lhe que a República havia sido declarada. Antes de se render, Gorjão manifesta as suas apreensões pela segurança do rei e recebe de Machado Santos uma resposta tranquilizadora.

Enquanto decorriam estes decisivos lances, os membros do Directório republicano proclamam a República e formam o governo provisório, presidido por Teófilo Braga, na Câmara Municipal de Lisboa. Eram cerca de nove horas da manhã quando Eusébio Leão, Inocêncio Camacho e José Relvas, cercados por outros republicanos, se dirigem da varanda do município ao povo da capital, apinhado no largo fronteiro. Leram a declaração da abolição da monarquia, o manifesto de proclamação da república e os nomes previstos para o governo provisório. Cessava o tempo dos militares e iniciava-se o tempo dos políticos. Às onze horas da manhã tiveram fim as solenidades no edifício da Câmara. A festa transbordou para a rua, traduzida em “entusiasmo, bandeiras hasteadas, exclamações, palavras, gritos”, no dizer quase fotográfico de Raul Brandão. Não faltou também a nota romântica, no telegrama com que Guerra Junqueiro saudou o governo. Nele se dizia, nomeadamente: “A alma da Pátria desabrocha, vitoriosamente, em flor de luz, em flor de ideal”.

A República estava feita? Estava. Mas hoje sabemos, talvez mais seguramente do que nunca, que ela, na sua dimensão mais exigente e essencial, está sempre por fazer. A sua perenidade reside precisamente nisto.

13 de janeiro de 2011

A REPÚBLICA E "ISSO QUE AÍ ESTÁ"



Encaminham-se para o fim as celebrações relativas ao centenário da implantação da República em Portugal. Várias conclusões se puderam tirar desta efeméride, que alguns viram como campanha cívica e outros analisaram como assunto de morgue. A primeira e mais gratificante conclusão é a de que a República permanece viva nos seus ideias de pluralismo teórico e ideológico, de convívio tolerante, de reivindicação de igualdade perante a lei, de reclamação de maior equidade na distribuição dos rendimentos e de maior civilismo laicista na vivência social quotidiana. Foram estes os valores que os mais humildes puderam saudar e que se demonstraram exuberantemente, em Coimbra, nesse memorável 5 de Outubro de 2010. No espreguiçar de uma tarde cálida, a Praça Velha e a Baixa de Coimbra, com a Praça 8 de Maio apinhada, contemplaram o desfile das mais variadas organizações populares, desde os ranchos folclóricos às bandas de música, sem esquecer as tendas de artesanato e as locandas de comes-e-bebes. Foi uma torrente de Povo, Povo verdadeiro e anónimo, que se juntou à festa e que se sentiu jubilosa. Uma festa deste jaez teria, seguramente, provocado o incómodo (indisfarçável, em certos casos) de certa gente, dita bem-pensante, do burgo conimbricense. E à Pedagogia dos valores houve quem quisesse contrapor a realidade dos factos, insinuando que “a República é isso que aí está”. Este juízo comprova, de uma só vez, duas coisas: a pusilanimidade dos que confundem os ideais com a perversão dos mesmos pela natureza humana, e o inconsciente pendor dos depoentes para o sarro do conservadorismo mais cego e mais rasteiro.

Imaginemos que um convicto defensor do regime republicano pudesse dizer, a esta casta de gente, coisas como estas: a generalidade dos dirigentes históricos do republicanismo em Portugal deu mostras de uma inconcussa probidade; Teófilo Braga utilizava os transportes públicos e rejeitava as demonstrações de faustosa vaidade; Manuel de Arriaga fazia questão de pagar do seu bolso a ocupação do seu domicílio presidencial; Bernardino Machado foi verdadeiramente exemplar, tanto na sua esfera profissional como na sua vida pessoal; José Falcão ensinou a cidadania aos seus concidadãos. Tudo isto, pensaríamos nós, no reduto da nossa ingenuidade, brilha como ouro e como ouro deverá ser conservado. Mas há quem se compraza com os detritos da “História”. É tudo uma questão de escolher, confundindo paradigma com perversão. E logo alegam o regicídio, de que o Partido Republicano esteve isento. E vem a seguir a instabilidade ministerial, sem se referir que ela apareceu, sobretudo, na ressaca de uma Grande Guerra completamente arrasadora. E metem no mesmo bornal o Pimenta de Castro, o Sidónio Pais e o Oliveira Salazar, como se fossem estes os exemplos mais lúcidos e acabados da mensagem republicana, em vez de terem sido, como foram efectivamente, os falsificadores de todo um trabalho, escorreito e idealista, de honrada propaganda. E tratam de remexer no lixo do passado para concluírem, impávidos mas pouco serenos, que a República é “isso que aí está” …

Levada a lógica destas especiosas mentes às suas últimas consequências, poderemos entrar no campo do mais completo delírio surrealista. A Igreja Católica é pedófila – houve Cristo, sim, o Doutrinador, mas há que atentar “nessa coisa que aí está”. A literatura portuguesa é a Rebelo Pinto, pois ela, a escrevente, é “isso que aí está” e que mais vende, em concreto, nas livrarias. A honradez política – que ainda existe – é uma figura de retórica, porque “isso que aí está” é o “Freeport”, as acções do Cavaco e o cheque do Alegre. Estes “intelectuais” não querem que a República seja uma Demopedia em marcha. Querem-na rameira, vulgar e pulha, mas dentro do velho princípio, convenientemente psicanalítico, do “similia similiabus”. Há, em tudo isto, um ajuste de contas a fazer. E nem sequer serão os republicanos sinceros, intransigentemente aferrados aos princípios fundamentais, a pedirem a satisfação da factura. Quem vai proceder ao balanço final será … a História. E ela, segundo cremos, irá dizer isto: “No decurso da efeméride do Centenário da Implantação da República houve gente que se disse republicana, que se confessou democrata, que se apresentou como cultíssima, e que não fez outra coisa senão acutilar, deprimir e vexar – o melhor que soube e pôde – o Republicanismo e a Democracia”.

No dia em que a lógica e a análise possam provar isto, não haverá outra sanção para estes “Catões-de-meia-leca” senão a justa punição de uma monumental gargalhada.

10 de janeiro de 2011

MEMORIAL REPUBLICANO LXI

LXI - A VITÓRIA DA ROTUNDA (1)

Na madrugada de 4 para 5 de Outubro de 1910, Lisboa dormiu mal. Os canhões da Rotunda troaram toda a noite, cumprindo as ordens de Machado Santos, comissário naval que aí se acantonara para fazer vingar uma revolução republicana. O seu envolvimento revolucionário começara cerca da uma hora da madrugada do dia 4. Nessa altura, sob a sua chefia, uma patrulha sediciosa de militares e civis submetera o Regimento de Infantaria 16, em Campo de Ourique, não sem que se tivesse travado uma rija fuzilaria que ceifou a vida ao coronel Celestino da Costa, comandante desta unidade. O grupo dirigiu-se seguidamente para o Regimento de Artilharia 1, em Campolide, objectivo fundamental para os desígnios republicanos, uma vez que guardava grande quantidade de armas pesadas e munições. O auxílio que a patrulha revolucionária pôde prestar, na unidade de Campolide, ao Capitão Pala e aos seus homens revelou-se precioso. Também este quartel caiu nas mãos dos sublevados, dele saindo três baterias sob o comando do capitão Sá Cardoso e do capitão Pala que teriam as missões de atacar o Paço Real das Necessidades e de forçar à rendição da Guarda Municipal, aquartelada nas alturas do Carmo. Tais resultados não foram alcançados por se ter verificado a falta de apoios complementares inicialmente previstos. Assim, as colunas acabaram por se fundir e, contando novamente com o apoio de Machado Santos, seguiram para a Rotunda do cimo da Avenida. Lá se concentraram por volta das três horas da madrugada e aí resistiram a uma débil tentativa de ataque, desferida pela Guarda Municipal. O balanço que os revolucionários puderam fazer sobre a realização do plano previsto não podia ser mais decepcionante. É certo que se soube que em Alcântara, o Quartel dos Marinheiros passara para as mãos de gente republicana, devido à intrepidez de decisão do primeiro-tenente Ladislau Parreira e dos segundos-tenentes Sousa Dias e Carlos da Maia. Mas também se divulgou que, não tendo sido possível prender o rei nas Necessidades, o aquartelamento sofria agora os ataques das forças monárquicas protectoras do Paço, de localização bem próxima, sobranceira à unidade revoltada. Assim, o Quartel dos Marinheiros ficaria obrigado a uma estratégia meramente defensiva. Nas primeiras horas da concentração na Rotunda, os rebeldes à monarquia também não poderiam saber dos sucessos alcançados pela sua parcialidade nas águas do Tejo. Com efeito, o tenente Mendes Cabeçadas subordinara o cruzador “Adamastor” e um grupo audaz de sargentos e praças tomara conta do cruzador “S. Rafael”, transferindo mais tarde o comando para o tenente Tito de Morais.

Na Rotunda, a manhã veio projectar uma luz fria sobre o ânimo descoroçoado das gentes. Constou que as forças monárquicas se estavam a acantonar no Rossio e que a Guarda Municipal se preparava para carregar, Avenida acima, sobre o reduto insurrecto. A esperança estava na possibilidade de a marinhagem poder tomar o Terreiro do Paço, colocando o inimigo entre dois fogos. Mas mesmo isso aparecia como projecto vago e aleatório. Que fazer, então? O comandante Sá Cardoso reuniu um conselho de oficiais, no qual expôs em palavras cruas a angustiante situação. Com uma excepção, foi decidido aceitar a inevitabilidade dos factos. Muitos militares despiram a farda, envergaram roupas civis e desapareceram na primeira esquina. Porém, Machado Santos não o quis fazer. Ia ficar, contra todos os ventos de descrença e todas as marés de desesperança. A primeira contagem de recursos humanos deixou-o gelado. Estavam com ele apenas nove sargentos, cerca de duzentos militares, uns quantos inexperientes cadetes da Escola do Exército e um magote de civis, na sua maioria desarmados. Do Directório Republicano, repositório de políticos maioritariamente civis, apenas se divisava na Rotunda a presença solidária do Dr. Malva do Vale. Foi aproveitada a boa vontade dos populares para cavar trincheiras e reforçar barricadas. Por volta das onze horas do dia 4, irão ocorrer, em simultaneidade, duas iniciativas de consequências verdadeiramente decisivas. No Tejo, os dois cruzadores “Adamastor” e “S. Rafael”, vão fundear em frente à zona de Alcântara e, cumprindo a ordem de Ladislau Parreira, dão-se ao bombardeio do Paço das Necessidades. A metralha provoca estragos no aposento privado do rei e um dos disparos corta, como que simbolicamente, a adriça do pavilhão real. A criadagem deserta, em completo estado de pavor. Por seu turno, os áulicos próximos de D. Manuel II aconselham-no a retirar para Mafra, onde se lhe irão juntar as rainhas avó (D. Maria Pia) e mãe (D. Amélia). Por vontade do monarca, é transmitida à Escola de Torpedos e Electricidade do Vale do Zebro a ordem de afundamento, por torpedeiros, dos navios revoltosos, a qual fica sem efeito, uma vez que o comandante da Escola se nega a dar-lhe cumprimento. Pela mesma altura, a Rotunda é sujeita a um ataque sob o comando do capitão Paiva Couceiro, o qual coordenou a acção militar da Bateria de Artilharia a Cavalo de Queluz, do Regimento de Infantaria 2 e da unidade de Lanceiros, da Cavalaria 2. Como que miraculosamente, a Rotunda resiste e neutraliza completamente a acção por volta das quatro horas da tarde, obrigando os adversários à retirada.

Este baptismo de fogo da Rotunda teve um notório efeito galvanizador. Pelas oito horas da noite do dia 4, a Rotunda regurgita de gente: são mais populares a chegar e é também o retorno de muitos dos sublevados que haviam despido a farda e que agora novamente a querem envergar. Uma grosseira contagem dá agora conta da existência de quinhentos militares e de mil civis, metade dos quais armados. Por descrença, descoordenação ou tibieza, as forças monárquicas do Rossio não se movem e entram em desmoralização a cada hora que passa. Machado Santos decide então agravar as condições do campo monárquico, pondo a troar ininterruptamente uma boca-de-fogo na dobragem de 4 para 5 de Outubro. Na Avenida, devido a esta flagelação, um prédio arde. Que importa um prédio a arder contra o fogo inextinguível de um Ideal? Pois que arda, pensa Machado Santos. O estampido do fogo dura toda a noite, conforme regista nas suas “Memórias” o escritor Raul Brandão. O Quartel General da monarquia incumbe novamente Paiva Couceiro da missão de ataque à Rotunda, mas este pouco mais adianta para além da colocação de peças de fogo na Praça dos Restauradores e na zona do Torel. Tudo se salda, afinal, por rijos combates de artilharia que, embora inconclusivos para ambos os lados, produzem o efeito antinómico de entusiasmar os da Rotunda e de provocar o desânimo nos defensores do Trono. No raiar da manhã, o fogo republicano é assestado sobre o Quartel do Carmo, provocando no comandante, coronel Malaquias de Lemos, um indisfarçável temor. No Rossio, lavra a mais profunda inquietação entre as chefias monárquicas. O que mais se teme é que os navios surtos no Tejo - agora ainda mais reforçados pela conquista do “D. Carlos”, feita pelo tenente Carlos da Maia - enfiem a metralha pelos eixos da Rua do Ouro e da Rua Augusta e façam depois desembarcar no Terreiro do Paço uma força complementar de neutralização. Fosse por imperativo moral ou por mera covardia, os comandantes dos Regimentos de Infantaria 5 e de Caçadores 5, respectivamente coronel Cristóvão Ribeiro da Fonseca e tenente-coronel Peixoto, fazem constar que, a confirmar-se tal eventualidade, não mandarão abrir fogo sobre os marinheiros. Isto dava razão à análise posteriormente feita por Teixeira de Sousa, chefe do último governo monárquico, que reconheceu que a resistência contra-revolucionária dependeu exclusivamente, nesta última fase do confronto, de forças da Guarda Municipal, aliás dispersas e mal coordenadas.

8 de janeiro de 2011

" NO PASSARÁN !"


Que rumor é este? Que subtil fluido se desprende da vida dos homens concretos, das dificuldades de sermos humanos e livres, do indómito desejo de nos considerarmos parte activa da Pátria, irmãos-gémeos da Democracia, ombro a ombro com Cidadãos iguais-a-nós, no raso plano deste viver contingente, a caminho do fim? Que desafio é este? Cai-nos em cima a matéria fecal do crapuloso latrocínio do Capital, das agências de “rating” (que ninguém sabe de que enxerga podre surdiram), do conluio entre meia-dúzia de ventrudos banqueiros e de outra meia-dúzia de pestíferos e ignaros políticos, e nós, aturdidos com tamanho e pulhostre conluio, declaramos, como Dolores Ibarruri, no auge da guerra civil espanhola : “No passarán!”. Que estranho caminho é este? De um lado as agigantadas pretensões dos que pensam que o viver é um exercício de cálculo, uma empalmação de ilusionismo com que se enganam multidões de ingénuos, sempre prontos ao sacrifício do Bezerro de Ouro. Do outro lado, as inumeráveis multidões dos que nada esperam senão a tranquila sentença de quem dirá : “Trabalhaste, toma o fruto do teu suor e vai em paz!” . Afinal, que estranho caminho é este? Ah, minha “Passionaria defunta”, pudesses tu saber que não morreste quando morreste, que a tua gloriosa rebelião ficou por cá, dormiu connosco, gerou filhos bem nascidos, desbravou gloriosas veredas de amanhã e descobriu sóis radiantes para além do sol que nos ilumina. Sim , Dolores, “no passarán!” . Vencem agora ? Talvez. Aos ombros dos ladinos, mas também dos desprevenidos, às espaldas dos inocentes, mas também dos pobres de espírito, no dorso dos desprevenidos, mas também dos vendidos. Dolores, minha Dolores, “no passarán!”. Sabes porquê, Irmã da minha carne, sacerdotisa da minha Crença, Senhora do meu Coração ? Porque, no auge da guerra civil espanhola, um Homem houve, chamado Hemingway, que descreveu a cópula entre um guerrilheiro e uma Mulher militante e a contou como um terramoto, como uma telúrica experiência de sangue , esperma e vida, como uma Esperança de Futuro, como uma litania de Amanhã, como uma “finalidade sem fim”, à maneira de Kant. Descansa, Dolores, “no passarán!”. E se passarem, Amante, Esposa e Filha, saibas tu que o teu Verbo, como religião intemporal, nos galvanizará numa prece sem distância, renovada em cada Primavera, e que de ti fluirão as torrentes de Dádiva e de Futuro que será o pesadelo de todo o despotismo, a decepção de todo o arbítrio, a execração de toda a lábil conformação. Dolores, estamos aqui, na luta. Como teus Irmãos! Para sempre. Em nome do Futuro!

( No início da campanha presidencial do ano de 2011. Viva Portugal ! )

Post Scriptum - Um bom Amigo fez-me notar que a correcta expressão em castelhano é "No pasarán". Pois que seja. Não vou corrigir. Mas dou a mão à palmatória, desde que ela permaneça íntegra, depois da punição, para saudar a nossa vizinha Espanha.

AMADEU CARVALHO HOMEM

5 de janeiro de 2011

MEMORIAL REPUBLICANO LX

LX - D. Manuel II , o Rei Breve (3)

Em meados de Maio, Venceslau de Lima rendeu Sebastião Teles na chefia do governo. Mas o novo governante não era uma carta forte dos baralhos partidários. Derivava toda a sua importância da confiança do Paço. Era um simples áulico, um palaciano à maneira antiga, um amigo pessoal de D. Manuel II. José Luciano, ao ver-se reduzido a uma pura figuração decorativa, talvez tivesse esbravejado no seu palácio da rua dos Navegantes, sacudindo com acrimónia o lendário gato do seu regaço de velho rabugento. O seu pontificado de bastidor parecia eclipsar-se. E, poucos dias após a constituição do novo governo, Sebastião de Magalhães Lima decidiu fazer uma peregrinação pelas principais cidades europeia, procurando convencer a opinião qualificada desses países sobre as mútuas vantagens que poderiam resultar de uma próxima implantação da República em Portugal.

Entrado o verão, as contradições sociais voltaram a manifestar-se. Entre os vários problemas que permaneciam em aberto no cerne da sociedade urbana portuguesa, o da antinomia entre o clericalismo e o laicismo era dos mais espinhosos. A luta pelo livre pensamento, pelo registo civil e por cerimónias religiosamente neutrais nos momentos mais solenes e representativos na vida do ser humano, como, por exemplo, os do casamento e do falecimento, já tinha entre nós alguma tradição. A Associação Propagadora da Lei do Registo Civil eclodira, embora com existência efémera, nos inícios do terceiro quartel do século XIX, tendo porém ressurgido com renovado vigor a partir de 1895. Esta organização irá manter-se na estacada do combate anticlerical praticamente até ao advento da República, apesar das perseguições judiciais que foram movidas a alguns dos seus dirigentes. Também nos últimos cinco anos do aludido século se difundem os “Círios civis”, curiosas formas de sociabilidade ao serviço do ideal do laicismo. Os “Círios civis” foram a resposta encontrada por camadas agnósticas, livre-pensadoras e materialistas para o fenómeno das romarias religiosas. O espírito de romagem, tendo por alvo um templo, um espaço sagrado ou uma festividade religiosa, quase que constituía uma segunda natureza da população crente. O “Círio civil” partilhava do mesmo espírito de excursão ou de visita, mas expurgava-o de quaisquer contaminações religiosas, funcionando como entidade organizadora de um de turismo popular, mas agora sem implicações de crença. Estas organizações, inicialmente espontâneas, enveredaram mesmo por um esboço de movimento federador, que só não se consumou porque as autoridades monárquicas tudo fizeram para o frustrar. Esta militância laica aprofundou-se no início do século XX, sobretudo devido à ressonância provocada por um episódio que ficou então conhecido pela designação de “caso Calmon”. O Dr. José Calmon era o cônsul brasileiro no Porto, sendo também o pai de uma jovem que insistia, para seu grande desgosto, em se fazer religiosa. Num domingo, à saída de uma missa, ajudada por cumplicidades estranhas ao seu círculo familiar, Rosa Calmon subtraiu-se à vigilância paterna para poder realizar a sua vocação. Falou-se então em rapto, como resultado de uma cabala montada por clérigos regulares. O caso teve no país uma enorme repercussão, chegando mesmo a gerar uma vaga anticlerical e anticongreganista de apreciável amplitude. Foi na esteira deste incidente que se fundou a Junta Liberal, presidida pelo médico alienista Miguel Bombarda, cujo escopo visava defender a ordem social das arremetidas das congregações religiosas. A sua mais visível e imediata reivindicação era a de repor a vigência das leis anticongreganistas do Marquês de Pombal e de Joaquim António de Aguiar.

Esta digressão histórica pretende apenas comprovar que os fermentos laicistas que levedaram no decurso do ano de 1909 repousavam numa consistente tradição anterior. O que então se dizia, nos círculos mais vinculados ao republicanismo e ao livre-pensamento, era que o ultramontanismo dava mostras de querer impor-se. Aduziam-se sintomas inquietantes e probatórios deste recrudescimento da reacção católica. José de Alpoím – que passava por ser, devido a despeitos antigos e abortadas ambições, o mais republicano dos monárquicos – chegou mesmo a questionar, em plena Câmara dos Pares, a actuação de certos bispos, que se permitiam fundar seminários sem darem nota de tais procedimentos ao poder político instalado. Miguel Bombada mobilizou então a Junta Liberal e respondeu com uma impressionante manifestação, fazendo desfilar pelas ruas centrais de Lisboa uma massa compacta de cerca de cem mil pessoas.

Não era pacífico, na capital do reino, o clima social. Qualquer desprevenido observador poderia assinalar a crispação entre a nobreza afecta ao Paço e a burguesia nobilitada, desejosas de assistirem à consolidação do trono de D. Manuel II, e toda uma arraia-miúda de trabalhadores por conta de outrém e de uma boa parte dos sectores da pequena e da média burguesias, apoiando, de modo claro ou subreptício, a estratégia sediciosa. Pelos finais do verão recrudescerá a movimentação revolucionária. O directório do Partido Republicano depressa concluiu que os trabalhos concretos da conspiração e o planeamento das futuras operações militares só poderiam assentar num colectivo profissional, saído das fileiras das forças armadas. Sabia-se que a Carbonária ardia de impaciência para dizer na rua, de armas na mão, a sua última palavra. Mas a organização carbonária gozava da mais ampla autonomia, revendo-se num modelo de tamanha reserva, de secretismo tão cerrado, que o diálogo com as chefias partidárias se tornava pouco praticável. Foi em Outubro que se organizou o primeiro Comité militar revolucionário, confiado a nomes como os do Coronel Ramos Costa, Capitão Afonso Pala e Capitão de Fragata Fontes Pereira de Melo. Neste mesmo mês, os jornais de Lisboa especularam com a descoberta de um cadáver na Boca do Inferno, em Cascais. Em certos botequins e conclaves políticos da capital, aventou-se a hipótese deste apelidado “crime de Cascais” poder ter sido decretado pela Alta Venda Carbonária e praticado sobre um delator da organização. Sabia-se, com efeito, que a Carbonária previa a aplicação inapelável desta suprema punição aos casos comprovados de felonia. Importa salientar que nem todos os chefes republicanos depunham em tal organização o melhor das suas esperanças. Se António José de Almeida via na Carbonária a estrutura mais adequada para a demolição das instituições vigentes – e a um tal ponto que fora mandatado pelo Directório para as funções de mediador entre as duas estruturas – já João Chagas lhe colocava algumas reticências. E era natural que também os directores republicanos não quisessem ver-se subalternizados e ultrapassados por uma estrutura que lhes não prestava contas e lhes era substancialmente desconhecida. Por este motivo, foi a João Chagas e não a qualquer um dos expoentes da Alta Venda Carbonária que o Directório republicano solicitou um relatório sobre as fidelidades políticas dos militares mais em evidência na guarnição de Lisboa. Tratou-se de um tomar de pulso da mais alta importância para a fundamentação de próximas decisões. E João Chagas, diligentemente, apresentou este trabalho nos inícios de Novembro.

O gabinete de Venceslau de Lima ia perdendo força e credibilidade. Como já ficou dito, esta era uma solução forçosamente débil, uma vez que não retirava condições de permanência da natural correlação das forças partidárias mas antes as colhia do acervo de afinidades subjectivas que ligavam um monarca ao seu valido. A previsão de uma queda iminente do governo fez movimentar algumas individualidades, que aspiravam ao mando subsequente. Estava neste caso Júlio de Vilhena, que alcançara a hegemonia no Partido Regenerador após luta porfiada. Uma tal expectativa não se apresentava como desmesurada: Júlio de Vilhena era um vulto político bem conhecido, um publicista de boa cepa e um indiscutível paladino do constitucionalismo monárquico. Além disto, dera provas da sua afeição pelas liberdades fundamentais, quando combatera denodadamente a ditadura de João Franco. Conduzia agora o Partido Regenerador, cuja tradição histórica e implantação nacional falavam por si. O jovem monarca conhecia perfeitamente as legítimas ambições de Júlio de Vilhena e concentrava na sua mão, em larga medida, os meios de as satisfazer. Mas os bons velhos tempos das políticas rotativas, fortemente vinculadas ao jogo eleitoral das maiorias, jogo viciado mas operante, esses tempos malabares, mas de previsão fácil, encontravam-se para sempre superados. Agora preponderavam os pequenos golpes palacianos, os cálculos de pressão sobre esse príncipe introspectivo e tímido, as solicitações dirigidas à sua piedosa mãe, as alianças momentâneas, interpretadas por pequenos Maquiavéis de corte. Júlio de Vilhena bem se esforçava por apresentar, no tablado da política nacional, as suas credenciais de pensador, de publicista e de potencial administrador dos negócios públicos. Mas as suas ambições, embora legítimas, embatiam contra o sólido muro dos interesses opostos e contra o bastião das reticências régias.

Quem não descurava a preparação de uma próxima eclosão revolucionária era João Chagas, que no penúltimo mês do ano apresentou aos directores do Partido Republicano um detalhado relatório sobre as correlações das forças republicanas e monárquicas, no que respeitava à guarnição militar da capital. Chagas conhecia muito bem o Portugal de então e sabia que o ronceiro atavismo da província promovia Lisboa ao palco único de um próximo e decisivo confronto. Por isso, todo o seu engenho se aplicava à tarefa de coordenação das reservas revolucionárias lisbonenses.

Quando rompeu Dezembro, os conventículos dos pequenos potentados com influência no Paço e, através dele, na vida política, movimentaram-se febrilmente. Acreditava-se que o gabinete de Venceslau de Lima estivesse por um fio. Ora, indo falhar um governo “de personalidade” – ou “de favoritismo”, segundo muitos maldizentes -, ninguém duvidava que o próximo elenco viesse a ser encabeçado por um regenerador ou por um progressista. Júlio de Vilhena nem sequer vislumbrava a hipótese de vir a ser preterido neste lance. O Partido Progressista já havia tido um protagonismo mais do que suficiente desde o regicídio, sobretudo se as contas não fossem feitas, por miúdo, sobre a contagem dos dias de efectivo poder, mas antes o fossem sobre a ardilosa capacidade de influenciar o sentido dos acontecimentos, em que se especializara José Luciano de Castro. Era tempo, pensava Vilhena, de D. Manuel II manifestar a sua isenção e a sua equidistância em relação às duas formações partidárias. Por isso, a sua decepção não pôde ser maior quando tomou conhecimento de que o governo fora entregue a Veiga Beirão, antigo ministro progressista. Júlio de Vilhena sentiu-se injustiçado e exautorado, pelo que apresentou imediatamente a sua demissão da chefia do Partido Regenerador. Tudo isto estava a ocorrer nos dias imediatamente antecedentes ao Natal. Foi portanto amarga a consoada do desiludido político regenerador. Mas mais amargo viria a ser o Natal do ano seguinte para todos os que interpretavam ou simplesmente secundavam o poder monárquico em Portugal.